Trégua fugaz entre memória e tempo
Num cenário como o atual, em que a literatura infelizmente se vê cada vez mais restrita a especialistas, é alvissareiro o lançamento de um livro como a “Antologia pessoal”, de Eric Nepomuceno. Isso porque, se variam em termos de qualidade, as 41 histórias reunidas na coletânea nunca abrem mão do vínculo com a matéria quente e caudalosa da vida, nunca se desapegam do mundo e de suas coisas para satisfazer o apetite intelectual de críticos ou vanguardismos de ocasião com auto-referências ou vazios jogos de metalinguagem.
Por oposto, a substância com a qual Nepomuceno preferencialmente trabalha é o barro pleno de esperança que moldaremos ao longo dos anos, desconstituindo promessas, colecionando perdas, somando amarguras, até que a morte faça a sua infalível recolha. A dor da queda inexorável, portanto.
Não à toa, alguns dos melhores contos da seleta são ambientados no universo da infância, quando a noção da decrepitude e do fim é frágil, apenas um leve esboço, quase imperceptível. Como destaca Alfredo Bosi no prefácio, Nepomuceno demonstra uma “sensibilidade aguda” na condução das tramas que envolvem personagens muito jovens.
Bom exemplo é o singelo “Telefunken”, centrado nas digressões de um garoto em torno do rádio que anima a casa dos pais. “Quanto eu era pequeno, achava que dentro do rádio tinha uns homens e umas mulheres bem pequeninos, e que a gente fazia a voz deles sair dando umas voltas no ponteiro. (…) Agora que eu cresci um pouco, quer dizer, que sou muito maior do que quando era pequeno, sei como é isso do rádio. Os homens e as mulheres em outra casa, longe daqui, e a voz deles vem pela tomada”, afirma ele, na ilusão de maturidade de quem começa a deixar para trás a meninice mais remota. Como o pai morreu logo depois de seu nascimento, o garoto imagina que essa é uma regra universal e decide que não quer ter filhos no futuro. Na mesma lógica embaralhada, lembra que o amigo Ivan “não tem rádio, mas tem pai”. E lamenta-se: “Eu acho que preferia ter pai do que ouvir rádio”.
Em diapasão semelhante, “Juramento” se inicia com quatro meninos que, sentados no chão de terra, lastimam o fim das férias, “as melhores”. Resolvem, então, fazer um pacto de eterna união, juntando os pulsos e talhando-os em forma de cruz. No entanto, a aliança entre o grupo se dá de forma menos espetacular: eles fazem um pequenino corte nos polegares, que se tocam por um instante. Anos mais tarde, ao recordar o episódio e pensar na honestidade “estupidamente traída”, não é afeição, ou ternura, que o narrador sente pulsar na ponta do dedo. É solidão.
Movidos por essas reminiscências, os contos de Nepomuceno registram estreias (“Quando o mundo era meu”), encenam ritos de passagem (“Dizem que ela existe”), inventariam sonhos destroçados (“Aquela mulher”). Sua dicção não admite maneirismos – é enxuta, detém-se no essencial – e em muitos momentos remete ao trabalho de Eduardo Galeano, sobretudo em “O livro dos abraços”. Assim como o escritor uruguaio, Nepomuceno tenta recompor histórias estilhaçadas.
Ao organizar a antologia, o autor incluiu dois textos inéditos e dividiu os contos em cinco unidades temáticas, sem alterar as versões originais selecionadas a partir de livros como “Coisas do mundo”, “Quarta-feira” e “Antes del invierno”. Encerrando o volume, há um curto ensaio sobre o ofício daqueles que criam histórias tendo como ferramenta a palavra. É um testemunho de Nepomuceno a propósito de sua experiência como escritor e tradutor de mestres como Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar, Juan Rulfo e Juan Carlos Onetti, além do próprio Galeano, ao longo de mais de três décadas.
Em certa passagem do conto “As cartas”, o narrador anota que “a memória continua viva, e devolve coisas quando quer”. O tempo, por sua vez, “não tem restituição alguma”, como lembra Bosi, em citação de Antonio Vieira. Pois é na zona imprecisa e movediça entre esses dois movimentos – a memória insistindo em trazer (e restaurar) o que é por natureza findo, e o tempo que leva embora, sempre, sem freio ou compaixão – que Nepomuceno trafega. Sem teorias, respostas, conclusões. Apenas a serena impressão de que a literatura é, nesse embate, uma trégua fugaz.
* Resenha foi publicada no suplementoProsa & Verso (O Globo)
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