A banalidade do extraordinário
O engenho narrativo revela-se logo nos dois primeiros capítulos: ao descrever o acidente que interrompe o idílico piquenique do casal Joe e Clarissa nas colinas de Chiltren, interior da Inglaterra, Ian McEwan desenha em 31 páginas um extraordinário prelúdio para a queda do protagonista de “Amor sem fim”. Joe está ajoelhado na grama e segura o saca-rolhas, enquanto Clarissa lhe passa a garrafa de vinho. “Naquele exato instante foi espetado o alfinete no mapa do tempo: estendi o braço e, quando o gargalo frio e o invólucro metalizado tocaram a palma da minha mão, ouvimos um homem gritar”, conta ele, cuja perspectiva o leitor acompanhará por todo o romance, lançado originalmente em 1997.
Ao grito se segue o lamento fraco de uma criança, a quem Joe logo vislumbra, dentro da cesta de um balão de ar quente que se desloca sem controle. O piloto tem a metade do corpo para fora e a perna emaranhada à corda presa na âncora. Camponeses e visitantes do lugar, assim como Joe, se põem a correr na tentativa de acudir, já que o vento empurra o balão na direção de uma escarpa. Os esforços, contudo, não são suficientes para evitar um desfecho trágico, descrito nos mínimos movimentos, atos, perspectivas, e que se estende à vida de Joe.
Isso porque Jed Parry, um dos homens que tentaram segurar o balão, é tomado por uma paixão súbita e patológica, que lhe tem como objeto. Após trocarem apenas algumas palavras, Parry se convence de que o sentimento é mútuo e passa a perseguir Joe, desestabilizando inclusive seu casamento com Clarissa. “Cada gesto, cada palavra que pronunciei, tudo estava sendo armazenado, empacotado e empilhado, combustível para o longo inverno de sua obsessão”, observa o protagonista.
O racionalismo de Joe, reiterado nos artigos científicos que escreve para sobreviver, confronta-se com a religiosidade à beira do fanatismo de Parry, tensão que McEwan alimenta para erigir digressões sobre a aplicação da teoria evolucionista e o embate moral entre altruísmo e egoísmo. “Este é o nosso conflito de mamíferos: o que dar aos outros, o que guardar para nós próprios”, comenta o narrador em certo momento.
Enredado pelo cerco que Parry lhe impõe, Joe diagnostica uma patologia, a Síndrome de De Clérambault — o flerte de McEwan com a Ciência, aliás, viria a se repetir em romances posteriores, como “Sábado”, de 2005, protagonizado pelo neurocirurgião Henry Perowne, e “Solar”, de 2010, cujo personagem principal é Michael Beard, um prêmio Nobel de Física. O principal sintoma de quem sofre do distúrbio de De Clérambault é a convicção de que declarações de indiferença, ou mesmo ódio, daquele que configura o objeto de sua paixão escondem sinais inequívocos de amor. Para o racionalista Joe, “uma síndrome oferecia um referencial de predição e certo alívio”, como ele mesmo admite.
Seu desespero se intensifica à medida que Clarissa recebe os relatos sobre o assédio de Parry entre indiferente e desconfiada. Ela chega a supor que o marido está enlouquecendo, que simplesmente pode ter inventado um personagem. A caligrafia das cartas se assemelha à do marido, os recados na secretária eletrônica são sempre apagados. A polícia tampouco dá crédito ao discurso de Joe. “Um maníaco está tentando me matar e a lei só consegue me mandar tomar Prozac”, pensa ele, ao sair da delegacia.
Com habilidade, Mc Ewan desestabiliza as convicções do leitor, que também claudica quanto à lucidez do protagonista. Afinal, é Joe quem conduz a história, em que pesem os capítulos formados por correspondências de Parry e de Clarissa, e a passagem na qual o narrador tenta analisar as coisas com os olhos da mulher. Sob o ponto de vista da construção do romance, a se lamentar apenas os dois apêndices que acabam por amainar a potência do término da história em si.
“A racionalidade é seu próprio tipo de inocência”, diz Clarissa, numa crítica velada ao radicalismo do marido, que tenta aplicar o método científico na compreensão de tudo o que acontece. Especializada na obra do poeta John Keats, Clarissa é o vértice da Literatura no triângulo proposto por Mc Ewan no romance, levado ao cinema em 2004, pelo diretor Roger Mitchell, com o título de “Amor para sempre”. E parece notar a relativa impotência de Joe quando o imprevisível confronta sua lógica, minando as defesas que julgava ter.
Mc Ewan mais uma vez trata da aleatoriedade do destino, desvendando o labirinto que se espreita na sombra de nossas mais cristalinas certezas, a vulnerabilidade da qual não escapamos e para qual acena na alegoria do balão à solta. “As pessoas frequentemente se surpreendem ao ver com que rapidez o extraordinário se transforma numa banalidade”, ressalta Joe. E as circunstâncias sinalizam: a recíproca é, dolorosamente, verdadeira.
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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