Lágrimas de que destruíram a Muralha
Em “O poder do mito”, Joseph Campbell define a mitologia como uma música que dançamos mesmo quando não reconhecemos sua melodia. Essa espécie de “canção do universo” faria ressoar seus refrões tanto na ladainha de um curandeiro do Congo quanto num poema de Lao Tse; em um argumento de São Tomás de Aquino ou na lenda de Meng Jiangnü, que, com seu choro, destrói parte da Grande Muralha. Pouco conhecida no Ocidente, a dolente história dessa jovem data da época de Huandgi, o Imperador Amarelo, e vem sendo transmitida oralmente na China há mais de dois mil anos, de geração em geração. Em 2007, pelas mãos do escritor Su Tong, virou livro.
No romance “A mulher que chora”, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Tong reconta o mito chinês com o filtro da literatura. Já no prefácio, ele adverte que pretende “reimaginar” as vidas emocionais dos personagens, sobretudo a da protagonista, mas sem enfumaçar a essência mítica do enredo. É o que efetivamente acontece.
Jiangnü recebe, no livro, o nome de Jiang Binu. De início, sabemos que é órfã e mora na aldeia do Pêssego, onde os habitantes são proibidos de chorar. Por não conseguir obedecer a essa lei, acaba marginalizada, e só consegue se casar quando conhece Qiliang, um criador de bichos-de-seda cujos pais também morreram. O rapaz, no entanto, é recrutado para trabalhar na elevação da Grande Muralha – e parte. Então ela decide cruzar o país a fim de reencontrar o marido e entregar-lhe um casaco que o protegeria do rigoroso inverno do Norte.
Cada etapa de sua trajetória de herói – no caso, de heroína – é cumprida com sofrimento e persistência. De início, Binu padece frente aos próprios moradores da aldeia, que a julgam louca por ter vendido os poucos bens para comprar o agasalho. Criticam, também, o fato de almejar ir tão longe. “Por acaso sua alma foi embora só porque seu marido saiu de casa? Quando um homem vai embora, as mãos vão com ele, os pés e até mesmo aquele penduricalho entre as pernas”, debocham as mulheres.
Adiante, ela será obrigada a suportar os sucessivos entraves da viagem. Na Ravina da Grama Azul, desconfiam que sua trouxa de roupas esconde um fantasma. No Terraço das Cem Nascentes, é atacada pelos meninos-cervos, vê-se obrigada a se unir a um cadáver e termina perdendo o casaco que levava para Qiliang. Na Cidade dos Cinco Grãos, é presa, condenada à decapitação e exposta à pilhéria pública. Sua única reação, por todo o tempo, é dizer a verdade – que está indo atrás do marido. E chorar.
Autor do romance “Lanternas vermelhas”, levado às telas com sucesso por Zhang Yimou, Tong descreve essa jornada com tintas fantásticas e uma narrativa fortemente visual. O texto é coalhado de pequenas metáforas, que prestam reverência ao caráter mítico da história e não chegam a atravancar a fluência.
Como afirma o próprio Tong, trata-se de uma “lenda sobre status e classe social”. Mas, também, de uma crítica ao absolutismo e de um elogio à perseverança – ainda que sem promessa de recompensa. À postura ativa de Binu, decidida a levar adiante e sob qualquer hipótese sua quimera particular, opõem-se quase todos os demais personagens, passivos e submissos ante os ditames do rei – e mesmo do poder local.
Duas passagens são especialmente ilustrativas. Na primeira, logo após saber da morte do rei, Binu pergunta a um senhor por que continuam a erguer a Muralha mesmo com o desaparecimento de quem ordenou sua edificação. “Por que não estariam? O velho rei pode ter morrido mas há um novo rei sentado no trono. Todos os reis querem construir muralhas”, o homem responde.
Na outra, Binu está na beira da estrada, encontra um pequeno grupo e o convida a caminhar com ela rumo à montanha da Grande Andorinha. O efeito de tais palavras “chega a produzir centelhas nos olhos” das pessoas, que por um segundo hesitam – talvez também saudosas dos parentes convocados a labutar na Grande Muralha -, mas logo desistem de acompanhá-la. “Para eles, esperar era a melhor alternativa. A multidão preguiçosa havia abandonado tudo, exceto o ato de esperar”, ressalta o narrador.
Em alguns momentos, Binu até consegue riscar uma faísca nessa frieza resignada dos que a cercam. Capturada pelos meninos-cervos, ela desata a chorar, e os garotos são então dominados por um abissal ataque de tristeza. Lembram-se de “uma aldeia distante, um cão, um par de cabras, três porcos, colheitas nos campos”, imagens de casa e da infância que retornam num espetáculo crepuscular, naquela que talvez seja a mais bela cena do livro.
“Ninguém consegue ver a tristeza melhor do que as pessoas tristes”, observa o narrador. A tristeza de Binu é consciência e ao mesmo tempo luta contra a inexorabilidade do destino, um tour de force permanente, cíclico, entre esses dois polos. Ao enfim se aproximar da Grande Muralha, ela é aconselhada a procurar uma pedra, transportar consigo e depositar na Grande Muralha, para garantir proteção da Divindade da Montanha a si e a seu marido. A circunstância faz recordar outro mito. Mas, ao contrário de Sísifo, cujo encargo é desalento e condenação, Binu leva sua pedra como quem carrega a esperança.
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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