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A maçã envenenada

A maçã envenenada

O tempo no retrovisor

O segundo livro de uma trilogia é quase sempre um pouco refém do título que inaugurou a série. Ainda que à revelia do autor, a comparação é praticamente irresistível. “Maçã envenenada” chega às livrarias, portanto, sob a sombra do magnífico “Diário da queda”, com o qual Michel Laub iniciou a tríade em que investiga o efeito de catástrofes históricas sobre trajetórias individuais.
Em “Diário da queda”, de 2011, Laub descrevia a conturbada relação entre o protagonista e seus ancestrais imediatos: o pai, que registra num caderno as memórias que o Alzheimer começa a dissipar, e o avô, sobrevivente de Auschwitz cujo diário redesenha a realidade em bordas tão perfeitas quanto ficcionais. A máquina de reminiscências era acionada pelo narrador a partir de um traumático episódio da adolescência.
No caso de “Maçã envenenada”, o acontecimento histórico que dá partida à trama é o show do Nirvana no estádio do Morumbi, em 1993. O protagonista inventado por Laub hesita entre viajar para São Paulo a fim de assistir ao espetáculo ao lado de Valéria, a namorada, ou respeitar o expediente no quartel onde cumpre o serviço militar, em Porto Alegre. O Nirvana, então, experimentava o auge do sucesso com “Nevermind”.
“Nos últimos vinte anos é possível que eu tenha ouvido esse disco centenas de vezes, talvez milhares de vezes, e é como se em todas elas pudesse evocar 1993: a saída do quartel de triagem, a umidade e a sujeira do verão em Porto Alegre, o barulho dos ônibus e uma grávida que carregava um saco de lixo”, observa o narrador, ele próprio integrante de um banda amadora de rock.
“Nevermind” e as músicas do Nirvana mapearão, principalmente, o relacionamento com Valéria, marcado por uma intensidade coalhada de conflitos e cobranças, e que deságua em tragédia. Laub tenta conectar o drama pessoal do protagonista com dois fatos também lúgubres, ambos datados de abril de 1994: o suicídio de Kurt Cobain, vocalista do grupo, e o drama vivido pela escritora Immaculée Ilibagiza, sobrevivente tutsi do genocídio promovido por hutus em Ruanda.
No entanto, em “A maçã envenenada” o encaixe entre a perspectiva individual e os fatos externos não se revela tão harmônico quanto no trabalho precedente. Isso se dá, sobretudo, com a história de Immaculée Ilibagiza, que em muitos instantes irrompe no enredo sem reverbério na trama principal. Um solavanco que pouco acrescenta, mas não chega a macular o romance.
Como nos demais livros, a narrativa é sóbria, concisa, sem firulas. Laub não perde tempo com drible a mais. Também se confirmam, em “A maçã envenenada”, as obsessões particulares do escritor, aqueles temas recorrentes que ajudam a formatar a autoria. No caso de Laub, as dores do amadurecimento, a convivência familiar, os ritos de passagem nem sempre rígidos, muitas vezes traduzidos em eventos sem estridência fora das circunscrições da intimidade. Os fatos são iluminados à medida que o tempo passa e aciona o farol retrovisor.
Nas 120 páginas do romance, não são poucas as oportunidades em que o autor se vale de expressões que denotam momentos fundadores. “O primeiro show com Valéria nos vocais”, “o primeiro encontro com o produtor”, “a primeira vez que Valéria cheirou lança-perfume”. Não se trata de redundância, mas reiteração. Em “Diário da queda”, “tudo começa aos treze anos”, quando o protagonista deixa o amigo cair ao chão durante uma festa de aniversário. No anterior “Longe da água”, de 2004, nas férias de verão dos três adolescentes que aparecem como personagens principais do enredo. Em “Segundo tempo” (2006), num jogo de futebol — o clássico entre Grêmio e Internacional funcionará como marco de uma experiência íntima e dolente. Estreias, sempre estreias, que ecoam na lembrança em feitio de cicatriz. E acendem um pavio de causalidades.
“O acidente aconteceu por causa da bebida, a viagem a Londres por causa do acidente, a mudança de profissão por causa da viagem a Londres, a saída de Porto Alegre por causa da mudança de profissão, e as coisas que fiz e a pessoa que me tornei por causa disso tudo”, comenta o narrador de “A maçã envenenada”.
A exemplo de “Diário da queda”, os 101 capítulos do novo livro são numerados, um falso encadeamento na narrativa nada linear. Ao optar por períodos longos, Laub parece repetir, no âmbito da escritura, o movimento do protagonista: uma espécie de escavação em busca da resposta que nunca vem. Mas que não esmorece a insistência. E lembra Sísifo empurrando sua pedra até o cume da montanha, de onde ela invariavelmente volta a rolar, antes de se iniciar a nova subida. Inútil? Como afirma o narrador em determinado trecho: para quem encontra a beleza enfrentando seus demônios internos, “há sempre um preço a pagar”.

 

 

* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (o Globo)


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