A fera na selva

Trágica epifania numa ponte sobre o vazio

O crítico Peter Brooks compara a estrutura de “A fera na selva” a uma ponte sobre o vazio. De fato, o abismo aparece como elemento central da lapidar novela escrita em 1903 por Henry James, que acaba de ganhar uma edição caprichada da Cosac Naify. A história do livro desenrola-se em torno de um casal numa situação aparentemente pueril: o reencontro entre John Marter e May Bartram, a mulher a quem dez anos antes fizera uma grande confidência.
May recorda ao esquecido Marter a oportunidade em que ele lhe disse ter, desde sempre, “o sentimento de estar reservado a algo raro e estranho, possivelmente prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde aconteceria”. Uma espécie de desígnio, que se manteria à espreita, “por trás de uma curva no desenrolar dos meses e dos anos, como uma fera na selva”, e ao qual Marter deveria aguardar até que enfim se desse, “destruindo a consciência de qualquer outra coisa”, alterando tudo, ou terminando mesmo por aniquilá-lo.
Reacesa a lembrança e restabelecido o mistério, May e Marter se aproximarão, estabelecendo um vínculo cujo amálgama será justamente o segredo compartilhado. De forma quase passiva, ela se compromete a lhe fazer companhia até que a fera dê seu inevitável bote, matando-o ou sendo morta por ele.
A espera pelo cumprimento do destino tão marcadamente assinalado é relatada por um narrador onisciente, muito próximo do ponto-de-vista de Marter, o que leva o leitor a experimentar tanto a gigantesca expectativa do protagonista quanto sua trágica epifania. A tradução de José Geraldo Couto preserva as feições intrincadas da prosa de James, diferenciando-se de versão anterior da novela, publicada pela Rocco, na qual Fernando Sabino procurou deliberadamente atenuar a complexidade natural do texto do escritor norte-americano ao vertê-lo para o português.
Em seus longos e densos períodos, James sugere mais do que afirma. Para citar uma das felizes metáforas do livro, sua escritura opera como a “tocha de um acendedor, que transforma em chamas, um por um, uma longa fileira de bicos de gás”. A incursão pelo universo interior dos dois personagens, como num movimento em espiral, revela o egoísmo de Marter, o cansaço e o desgaste progressivos da relação, mas nunca, nem quando o assombro de May sugere que ela já descortinou a esfinge, aproxima-se demasiadamente da ameaçadora “fera”. Com engenho, o plano narrativo espelha a condição do protagonista.
A recém-lançada edição da Cosac propõe uma camada interpretativa complementar, modelando o projeto gráfico ao conteúdo do texto. As folhas ganham gramatura à medida que a trama avança, tornando-se mais grossas, e a cor branca paulatinamente dá lugar ao cinza e ao prata, o que redunda numa diminuição do contraste entre as letras e o fundo da página. É uma pena que, ao contrário do que ocorreu com outros títulos nos quais a editora enveredou por experiência semelhante – “Bartebly, o escrivão”, de Herman Melville, e “O primeiro amor”, de Samuel Beckett -, em “A fera na selva” o recurso acabe prejudicando um pouco a legibilidade.
Por outro lado, a edição é valorizada pelo esclarecedor posfácio de Modesto Carone, que apresenta algumas chaves de leitura bastante originais. É precisa, sobretudo, a analogia entre os nomes dos protagonistas – Marcher e May – e os meses de março e maio. Trata-se exatamente do período em que, na Europa, desdobra-se a primavera – simbolicamente, uma época de promessas. Durante toda a novela, porém, paira uma luz outonal, que sutilmente desvela o contraste entre expectativas e malogro. No embate entre as estações, a tardia consciência de Marcher é devastadora: ele enxerga que as folhas foram ao chão antes mesmo de nascer.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)


  1. Excelente o seu texto sobre o Fera na Selva.

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