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Somos todos iguais nesta noite

Somos todos iguais nesta noite

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  • Editora Rocco
  • 2006
  • ISBN 8532520774
  • Português
  • Capa Tipo Brochura
  • 124 Páginas

Um olhar melancólico sobre o cotidiano dos diversos personagens que vivem em diferentes ambientes de uma grande metrópole é o que Marcelo Moutinho mostra nos 22 contos de Somos todos iguais nesta noite. A infância – com suas alegrias, decepções e temores – é uma das bases para relatos realistas e para outros que se estendem na direção de um universo fantástico, transpondo o leitor até um espaço delineado pela insegurança, cercado de mistério e sensações angustiantes. A solidão durante as festas, os amores platônicos, as paixões que não duram mais que alguns momentos e a procura incessante pela beleza são alguns dos temas desenvolvidos por Moutinho.

A ansiedade da infância está presente em dois contos da coletânea. “Passeio em família”, que abre o livro, conta a alegria e a tristeza de um menino ao sair para a primeira volta no carro novo. Em “Dia de Festa”, outro garoto se desilude com o tio ao descobrir que seu crescimento não é mais motivo de júbilo. Adultos que se comportam como crianças, iludindo uma menina para levá-la a comer em “Jujuba Verde” ou a história de amor que poderia ultrapassar uma festa, em “Fogos”, volta e meia surgem nos contos de Marcelo Moutinho. Aos personagens convencionais, como o velho funcionário que está para se aposentar em “Da profundeza do azul”, e a costureira de fantasias para desfiles de escolas-de-samba em “Comissão de frente”, contrapõe-se o travesti que se prostitui pelas ruas do Rio de Janeiro – que se surpreende com a gentileza de um de seus clientes em “Rosa Noturna”.

Marcelo Moutinho ousa experimentar diversos tipos de narrativas, como o romântico “Dedicatórias”, que mostra o desenrolar de um romance através das dedicatórias que os namorados escrevem nos livros que dão de presente um para o outro, ou na classificação das tarefas da costureiras como se fossem quesitos de um julgamento de um desfile de carnaval. O autor foge também do conto tradicional ao resumir tramas em ações descritas em poucos parágrafos, em dez microcontos. Outra intrigante forma de contar uma história está em “Menino no escuro”, um digno representante do realismo fantástico consagrado pela literatura latino-americana.

Seja nas narrativas mais longas ou nos mini-contos, o leitor e o autor, a vida de fato e aquela descrita pela literatura se tocam e se confundem nos textos de Marcelo Moutinho, transformando a todos em iguais nesta longa noite.

Adriana Lisboa

Entre os velhos gordos travestidos com os vestidos das próprias mulheres, o palhaço errante com a lata de cerveja na mão, a moça que beijava o rapaz de modo tão sôfrego quanto falso, entre as bocas que ali davam o primeiro dos tantos beijos que dariam nos dias que seguiram, entre vendedores de bebidas e salsichões, entre marchinhas desgastadas mas sempre novas e sambas e batuques e tamborins desafinados de tamanha animação, entre a alegria exasperada daquela pequena multidão de pobres-diabos na sacrossanta missão de ser feliz a fórceps, estava eu.

E minha missão, após desistir do sono cedo, após vestir o jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, era apenas mendigar um pouco do que sobrava sobre o chão cinzento da Cinelândia, a praça tomada por sorrisos, os brancos dos dentes contrastando com as fagulhas esparsas dos paetês, a luz fugidia batendo nas roupas baratas compradas no Saara, sobre chapéus, máscaras, narizes, brincos, panos, anéis, pessoas em suas dores domadas. Queria as moedas que eles guardavam nos bolsos. Queria o seu ouro.

Pois ali, em frente ao coreto repleto de senhores de terno e gravata segurando como podem seus cachês de uma vez ao ano, eu era apenas um confete temporão, o confete molhado do depois, largado num canto qualquer do piso que não chegou a secar de todo apesar do sol incipiente de uma manhã da quarta-feira de cinzas qualquer; abandonado após o vôo sublime e ligeiro do saco plástico ao ar, do ar ao rosto do folião suado e de sua pele molhada enfim ao chão. O confete da quarta quando ainda era sexta e o carnaval sequer começara, embora as pessoas transpirassem expectativas.

A pequena multidão e eu, que não fazia parte dela. Éramos dois entes, radicalmente opostos, yin yang, homem mulher, dia noite, glória fracasso. Ela, ritmo; eu, melodia. Bebia do ouro que me sobrava caindo dos bolsos alheios para ganhar forças e procurar, esticando os olhos através de toda a gente, as formas curvas de uma borboleta branca. Encontrá-la: para isso levantei-me da cama, vesti a calça jeans, a camisa Hering com a frase do Sartre e peguei o Metrô. Na praça, meu olhar atravessava a multidão em linhas sinuosas, tentando precisar o desenho da tal borboleta, como se eu pudesse, munido de uma daquelas tesourinhas sem ponta que fingem não machucar a infância, recortá-la com precisão em meio ao caos consentido.

Procurei entre o casal que se lambia, encostado na pilastra. Procurei debaixo do coreto e no oco da corneta do músico de cabelos grisalhos. Cutuquei entre as latas de cerveja recolhidas para reciclagem. Dentro da cartola do garoto vestido de mágico. Investiguei as saias vermelhas das meninas que se queriam ciganas, sob a peruca de palhaço de cabelos verdes. Tentei achá-la na entrada da igreja evangélica voltada para a praça, no banheiro do bar onde os bêbados brindavam a qualquer coisa. Conferi ainda os colares de conchas de uma baiana, o cocar colorido de um índio americano, a vassoura de uma bruxa.

Ela, contudo, não estava. Talvez num próximo bloco, numa próxima festa, num próximo baile, num outro dia de marchinhas, de sambas, serpentinas, confetes, de velhos gordos travestidos com os vestidos das próprias mulheres, de coretos e sorrisos desalinhados, de beijos e trepadas rápidas, bate-bolas e odaliscas, de bebidas e salsichões, de brilhos fugazes roubados do cotidiano, de algazarra e alegrias compulsórias como a casa própria.

Continuaria procurando. A borboleta branca que um dia pousou em meu ombro e se foi, antes que pudesse amá-la. A borboleta que, jurei a mim mesmo, viveria mais do que um dia, contrariando as leis naturais da espécie. A borboleta que batia suas asas delicadamente dentro de mim enquanto permaneci ali na Cinelândia, vestindo apenas minha calça jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, ainda assim fantasiado.

“Os personagens deste livro às vezes dizem palavras com gosto de doce de leite. Noutros momentos têm expressão de quem ainda acredita em Godard e na Revolução. Alguns detestam dormir cedo, hesitam quando a mãe os abraça e gostam de janelas embaçadas. É nesses pequenos traços, nessas pequenas rugas de existência que firmam com o leitor seu pacto de cumplicidade. Olhar depurado sobre o humilde cotidiano, que faz pensar na lição de Manuel Bandeira, Marcelo Moutinho observa o mundo com cuidado. E tem com as palavras aquela difícil e necessária relação inovadora – não porque requente ousadias formais passadas, que já não fariam nenhum sentido, mas porque propõe imagens para além do óbvio, expressões que redescobrem a verdade já banalizada e reificada pelo cotidiano. O que vem a ser, aliás, um dos sentidos da palavra poesia, poíēsis, em sua origem: fabricação, confecção. Somos todos iguais nesta noite reúne contos de boxeador, daqueles que nos nocauteiam no primeiro round, conforme ensinou outro mestre, Julio Cortázar. E também de sensível poeta, seguro de si, de mão já treinada por ótimos livros anteriores.  Meninos, velhos e moços, bêbados, travestis, namorados ingênuos transitam por cenários suburbanos do Rio de Janeiro, choram e celebram suas fantasias de carnaval, se esquecem em botequins, vibram com a perspectiva da visita à casa do tio, são felizes com a nesga de mar que adivinham da janela, ganham a noite na zona de prostituição na Praça Paris – como Teresa, no melhor conto do livro. Desenham-se na sinuosidade da memória, na intransigência da dor e da tristeza, mas sobretudo nessa grave insistência, demasiado humana: o amor. O amor da amizade, o amor da vida, o amor do amor. Seja nas narrativas mais longas como nos mini-contos, relâmpagos curtíssimos, criteriosamente intercalados nas duas partes que compõem este livro: somos, leitor e autor, personagens, vida e literatura, de fato, todos iguais nesta longa noite”.” 

O mundo que se define nas pequenas coisas

Em seu novo livro, Marcelo Moutinho se firma com escrita confiante e serena, marcada por benigna desesperança

“Há um conto em Somos todos iguais nesta noite, o novo livro do carioca Marcelo Moutinho, que deve interessar muito aos biógrafos e a todos aqueles que escrevem na esperança inútil de deter, ou de restaurar a realidade. Chama-se “Fragmentos de um espelho partido” e trata da impotência humana para capturar o real.

O narrador visita o apartamento de uma mulher que acabou de morrer. Busca de uma vela que, ela sempre dizia, desejava ter ao lado de seu caixão. A primeira coisa que vê, no entanto, é o par de óculos da falecida, largados sobre a mesa da sala, a armação aberta, na espera confiante do retorno de sua dona.

Os óculos servem, agora, como uma assinatura da mulher morta, ou uma despedida. Falam também da inocência dos objetos, sempre prontos para atender pessoas que não existem mais. Ao registrar a visita ao apartamento, o narrador anota: “São linhas frágeis estas, frases e palavras frágeis”. A rememoração, seja de uma visita, seja de um objeto, em vez de se referir ao real, fala muito mais da imaginação de quem relembra.

“As linhas que escrevo, elas mesmas quebram espelhos, me desmontam, me assassinam como se a própria literatura fosse para seus operadores um suicídio constante e inevitável”. Escrever não para capturar, mas para matar. Trágico o destino das palavras: trair, desfigurar, assassinar aquilo mesmo que elas se empenham em trazer de volta. Destino funesto, também, o dos escritores, seres condenados a tarefas muito além de suas forças.

Não é comum um jovem escritor que escreva com tanta confiança e serenidade. Há nos relatos de Marcelo Moutinho, alguns tão fugidios que se aproximam da poesia, uma delicadeza, uma benigna desesperança, que raras vezes encontramos em escritores formados. A literatura, com suas pompas e extravagâncias, se aferra a demasiadas ilusões; autores jovens, em geral, escrevem movidos pela insolência e cheios de si.

Os temas de Moutinho, ao contrário, são antigos, vêm de muito longe: a velhice, a morte, a despedida, o desapontamento. “Queria uma liberdade à qual não sabia dar nome; um vôo rasante, um salto impossível”, escreve no brevíssimo “Peso”, um dos quase-poemas que, como sopros de atleta sem fôlego, se esquivam entre seus relatos. “Hoje flutua – lívido, leve como pluma -, sem as enormes asas de ferro”.

Há em seus contos, como recomenda Ítalo Calvino, uma leveza que, em tempos acelerados e fastidiosos, se tornou um bem nobre. A literatura de hoje está sobrecarregada: de vaidades, de fixações no mercado, de antecedentes intelectuais, de dogmas. Não é o caso de Marcelo Moutinho – e é aqui, nessa exceção, que sua vocação se evidencia. Ele não precisa de temas chocantes, ou de estratégias espalhafatosas.

Narra com brandura, sem açodamento, e se detém, aplicado, sobre as pequenas coisas, ciente de que é nelas que o mundo se define.

O livro se divide em duas partes: “Iguais”, com onze relatos, e “”Noites”, com outros onze. A forma bipartida, a disposição clássica, porém, é falsa. Os contos de Moutinho deslocam as expectativas do leitor. Durante o primeiro passeio no novo carro do pai, um menino recebe um castigo pelo que não fez. Ao rememorar o grande amor de sua vida, uma mulher chega não a um desejo apaziguado, mas a uma decepção. Uma velha dama usa suas últimas forças para costurar fantasias de carnaval; tarefa feita, da festa só receberá os reflexos. Um menino visita o tio favorito, orgulhoso dos centímetros que cresceu desde a última vez; seu amor-próprio desaba, contudo, diante de uma parede em branco. Depois de batalhar nas ruas durante a noite, um travesti encontra a felicidade em um ramo de flores que lhe caiu nas mãos por engano.

Os personagens de Moutinho travam lutas pequenas e se apegam ao mínimo para sobreviver. Vivem no mais extremo desamparo, e nele se igualam. Como o garoto de “Menino no escuro”, eles se aferram a “uma precariedade que parecia lhe fazer bem”. Preferem a incerteza da escuridão dentro da qual, por contraste, chegam a ter alguma luz.

“Deus é uma luz que vê”, anotou, em seus aforismos, um gênio esquecido como o escritor francês Joseph Joubert (1754-1824), que foi amigo de Diderot e secretário de Chateaubriand. Não é por acaso que recordo os Pensamentos, de Joubert: também nos relatos de Moutinho a realidade se revela, por fim, pouco mais que um efeito, um golpe do olhar. Isso quando não é o próprio olhar que a extermina.

O narrador de “Menino no escuro” nota que os objetos que procura desaparecem. “Onde vão parar as coisas que somem?”, ele se pergunta. Indiferente, a mãe o tem como um “pequeno neurótico”. Até que ela mesma se apaga, e em seguida as peças do quarto do menino, uma a uma, somem também. Nesse estado de evaporação, que afinal define o mundo contemporâneo, a história sequer se conclui.

Era Joseph Joubert ainda quem dizia que, para escrever bem, se requer uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida. Ambas estão presentes na escrita de Moutinho, o que basta para afirmar um talento. Suas histórias são simples. Para seus personagens, crianças inquietas, velhos sem sonhos, pais atrapalhados, seres excluídos, mesmo o mais banal se torna muito doloroso. Viver é uma luta fadada ao fracasso. Escrever também é – embora, pelo caminho, surjam bons livros como este de Marcelo.

É sempre temerário apostar em novos valores, até porque, como diz o próprio Marcelo Moutinho em outro intervalo, “pescar nada tem a ver com pegar peixes”. Não se captura o real, no máximo sincronizamos com ele e com sua luz fraca, ou nem isso. Moutinho faz, por fim, um breve exercício de crítica literária em “Dedicatórias”, relato que vem a ser a sucessão das dedicatórias que Eduarda e Pedro anotam nos livros que se presenteiam durante uma longa relação.

Ali, nestes livros, surgem pistas das paixões literárias do próprio Moutinho: Carlos Heitor Cony, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Mário Quintana, Fernando Pessoa. Nas dedicatórias, confirma-se sua sábia avareza, seu apego à palavra plena, sua preferência pelas coisas que se dizem com o silêncio e no escuro. Somos todos iguais nesta noite é um livro corajoso. E isso, em si, vale muito. Até porque, está escrito, o medo na maior parte das vezes dá lugar ao fastio, e não à coragem.” 

José Castello

Humanidade e delicadeza nas histórias de Moutinho

“Talvez ainda não se saiba explicar por que a maioria dos leitores prefira o romance ao conto, mas uma das razões é certamente a maior extensão da obra romanesca: o senso comum, parece, tende a considerar que um trabalho mais extenso resulta de um esforço maior de elaboração – tendo, portanto, maior qualidade. A esse propósito, é interessante observar o modo cada vez mais freqüente com que os contistas brasileiros têm se preocupado com a organização “exterior” das suas coletâneas, com o problema da coesão entre as narrativas. É raro o escritor que ainda adota o formato clássico (falo especificamente da literatura ocidental de origem européia), que consiste numa antologia de histórias soltas. Tem predominado, com efeito, a idéia de que um livro de contos deva possuir um “conceito” que lhe dê unidade – para enfrentar o romance e demonstrar que o gênero também decorre de um processo coerente e complexo de composição.

Na literatura brasileira, essa estratégia é relativamente antiga: começa com Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, passa por Pelo sertão, de Afonso Arinos, e chega até O vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan  – que reúne histórias de um mesmo protagonista e se torna muito pouco distinto de um romance. Mas há conjuntos em que o elemento aglutinador é menos aparente. Osman Lins, em Os gestos, dá coesão às histórias pelo emprego dos mesmos processos literários. Essa via tem sido a opção de contistas contemporâneos, como Rubens de Figueiredo (Contos de Pedro) ou Amílcar Bettega (Os lados do círculo).

E é também o caso de Marcelo Moutinho, que acaba de lançar Somos todos iguais nesta noite, sua segunda coletânea de contos. O livro está segmentado em dois blocos – “Iguais” e “Noite” – , cada um deles contendo onze textos: seis contos intercalados por cinco singelos fragmentos narrativos, funcionando com uma espécie de “liga”. Essa disposição, rigorosamente simétrica, é em si bastante para tornar as partes indissociáveis do todo. E vai além: cria um ritmo interno de leitura. São estes fragmentos, aliás, profundamente líricos e não seria exagero aproximá-los da poesia. Como este “Vôo”, por exemplo:

“Quando atirou-se pela primeira vez teve medo. Os pulsos não eram firmes como hoje, nem havia força bastante nos braços. Com os anos, o salto virou afazer: coração a oitenta, suor nenhum, só a espera do banho. Mas o medo dera lugar ao fastio, não à coragem. A expectativa da rede pode tirar o prazer do vôo.”

Como se pode perceber, o estilo de Moutinho é leve e transparente, totalmente isento dos experimentalismos formais que tantas vezes dificultam a apreensão do sentido. O tema da solidão domina o livro: o amor que morre (“Dedicatórias”, “Fragmentos de um espelho partido”); o que não se realiza (“Fogos”, “Sexta-feira de cinzas”); as frustrações da infância ante a insensibilidade adulta (“Passeio em família”, “Jujuba Verde”, “Dia de festa”). São histórias de pessoas comuns, submissas à rotina trivial da vida, tendo o Rio de Janeiro como fundo.
De certa forma, Somos todos iguais nessa noite é um título contraditório, porque – embora esteja debruçado sobre situações quotidianas – Moutinho tenta captar o que nelas há de singular. Em “Desfile”, por exemplo, temos uma velha costureira meio cega que identifica as cores pelo som dos tecidos. Este conto, aliás, é uma feliz inserção pelo universo do carnaval e das escolas de samba, de que tanto carece a literatura brasileira.

Na peça que dá o título e fecha a coletânea, um grupo de pessoas solitárias, que freqüentam o mesmo botequim, tomam a decisão inusitada de seguir um misterioso freguês, que não fala com ninguém. Em “Menino no escuro” (conto inspirado numa tela de Iberê Camargo), objetos desaparecem numa atmosfera aterrorizante e fantástica, na melhor tradição de Cortázar. Em “Rosa noturna”, acompanhamos os programas de um travesti na praça Paris, que se encerram com um incidente inesperado, de que Moutinho extrai uma conclusão belíssima.

Adriana Lisboa, que assina a orelha, diz que “Rosa noturna” é o melhor conto do livro. Eu talvez escolhesse “Da profundeza do azul” – um das histórias mais comoventes que pude ler nos últimos anos. Os leitores, certamente, poderão ter outras preferências. Porque Somos todos iguais nesta noite é uma obra muito humana, muito delicada, que – no panorama atual do conto brasileiro – sobressai.”

Alberto Mussa

Um Rio de Janeiro abençoado por Deus

Marcelo Moutinho retrata a capital carioca com leveza e otimismo

“O que se espera da literatura urbana do Rio de Janeiro: guerra do tráfico, ônibus queimados, medo de assalto, mortes estúpidas? Não é o caso de Marcelo Moutinho, que publica Somos Todos Iguais Nesta Noite (Rocco, 124 págs., R$ 19), reunião de contos singelos, líricos e que em nenhum momento tematizam a violência.

Essa é a primeira coragem do autor de 34 anos, que tem na sua bagagem ainda Memória dos Barcos (7 Letras, 2001). Ele não imita a vida, não usa a literatura como uma forma mimética de produzir desconforto e aumentar o desespero, escapou da cilada das gerações contemporâneas de escandalizar pelo sangue e ser mais real do que o rei.

Não é o Rio de Rubem Fonseca, portanto trash e incontrolável. Nem do Nelson Rodrigues, com as traições à flor da pele. É um Rio possível, um Rio abençoado por enganos e amizades, dos almoços no meio da tarde na casa dos parentes, dos namoros à beira-mar. O Rio da bossa, de Braguinha, de Orfeu da Conceição. Com insegurança, sim, mas também com o devaneio amoroso do mar.

Marcelo Moutinho está longe de ser rotulado de alienado. É um impressionista, como João Carrascoza (O Volume do Silêncio) e Adriana Lisboa (Caligrafias). Um flautista dos fios telefônicos. Pinta as cenas pelo impacto emocional mais do que pela sucessão cronológica e pela ordem tátil das lembranças. Um tapa dado por erro pelo pai na coxa do filho, justamente no dia da estréia do carro novo em um passeio, continua a arder na maturidade, apesar do pedido de desculpa. É uma bofetada comum, leve e relapsa, em que o pai se confunde e pensa que seu filho bateu na irmã. Mas é um ruído na canção favorita e serve como bússola da eterna incompletude do rapaz.

Moutinho inverte as expectativas. Na verdade, ele converte a falta de expectativa em derradeira expectativa. Não há sequer um solavanco, soco, choque no fim do túnel. Há desencanto e amadurecimento em cada desenlace. Uma menina espera a visita de um cantor romântico todo o dia diante da televisão, insuflada pela mãe, que garante que ele vem, e ele não aparece mesmo. Um travesti, Teresa, precisa conseguir cinco clientes para garantir o pagamento das contas. Surge o primeiro, o segundo, o terceiro, já estamos aguardando um desfecho trágico, o quarto, sempre com as minúcias de uma descrição lenta, até que prorrompe o quinto e o trabalho termina, e nada acontece. Ela volta para casa com uma rosa escorregadia do banco de trás do Honda Civic do último programa. Quer mais anticlímax? É justamente a normalidade que deslumbra em Moutinho, a vida que continua sem estrondo. Como um suspiro. Entra-se nos personagens nunca pelo resultado de um obituário, porém para compreender a sensação interminável de sua rotina.

São 20 contos divididos em duas seções, Iguais e Noites, permeados por textos aforísticos, que acentuam o caráter iluminista do volume. ‘Pescar nada tem a ver com pegar peixes’ ou ‘Às vezes, a solidão é a cafeteira vazia’ ou ‘Ignoravam que chorar é um fato, não uma opção’.

Apesar de achados, o único incômodo do conjunto reside nesses respingos de sabedoria em breves pausas, que escancaram o que está implícito nos contos. Não que seja ruim, destoa. A série de reflexões expõe abruptamente as vísceras da linguagem, uma poesia moral, quando a delicadeza do livro estava em não ensinar, mas mostrar e acompanhar com compaixão a evolução das figuras. A autêntica sabedoria encontra-se nas falas dos personagens, no jeito peculiar de lidar com os atrasos e urgências. Ali, o escritor parece se intrometer no território sagrado da fruição.

Um exemplo de como funciona a engrenagem assobiada de Moutinho é no conto Desfile, em que registra a confecção de fantasias do carnaval por uma tradicional costureira. A costureira retarda a entrega até o último momento e fica-se indeciso entre concluir que ela já envelheceu e não acompanha o processo ou é caprichosa e tenta honrar seu passado. É inspirador perceber que, quase cega, ela combina as cores pelo som. As duas conclusões coexistem no final. A câmera de tinta de Moutinho convive, sem reduzir as sugestões. Ela mente que comparecerá no desfile e fica em casa assistindo à cobertura televisava. Sua recompensa é a felicidade dos outros. Um dos diálogos da Dona Dita cabe como norte do livro: ‘Lembrança até quando é boa dói.’

As narrativas concentram-se no ambiente familiar, nas ilusões da infância que deseja mais do que lembra. Emblemática a narrativa em que a criança não entende como desaparecem os objetos de seu quarto. É uma parábola inversa de Peter Pan. O mobiliário infantil some simplesmente porque a criança vai crescendo. E assim a sala, os domínios, os corredores esfumam-se, incluindo a mãe, restando somente a bicicleta. Moutinho torna sua escrita matéria-prima de recalques.

Inteligente e criativo é o capítulo feito de dedicatórias, em que um casal troca livros de presente. Compreende-se a evolução do romance dos dois e o fortalecimento da intimidade pelos recados deixados na folha de rosto. A partir deles – e unicamente deles -, a trama se espirala em contradições, em fugas e falta de tempo, desembocando no término do namoro. O conteúdo das obras presenteadas aumenta o significado de cada carta. Moutinho renova o gosto pela metalinguagem de um jeito irreverente e nada óbvio.

Somos Todos Iguais Nesta Noite merece a seguinte dedicatória: “Ler uma vida já é escrevê-la.”

Fabrício Carpinejar
Fabrício Carpinejar é jornalista e escritor, autor de O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006), entre outros

É preciso mergulhar nas ruas

Integrante da nova geração de escritores brasileiros, Marcelo Moutinho nasceu no Rio de Janeiro, em 1972. Estreou na literatura em 2001, com o livro de contos ‘Memória dos barcos’ (Editora 7 Letras). Autor do recém-lançado ‘Somos todos iguais nesta noite’ (Rocco), também de contos, o palco de suas histórias é o Rio, onde mora. “A cidade é quase um personagem do livro, cujos contos procuram revelar cores inesperadas em seus becos escuros”, afirma o escritor. Para Marcelo Moutinho, escrever no Brasil é dar murro em ponta de faca, “mas talvez tenhamos mesmo uma porção masoquista”, comenta, com ironia, em conversa com o repórter Carlos Herculano Lopes.

Por quais caminhos você passeia em ‘Somos todos iguais nesta noite’?

Por um Rio de Janeiro meio real, meio invenção. A cidade é quase um personagem do livro, cujos contos procuram revelar cores inesperadas em seus becos escuros. Do Centro ao subúrbio, quis ressaltar o que há de belo — e, em geral, está oculto — nas pequenezas. São histórias prosaicas: o passeio de um garoto no carro novo do pai, a madrugada de um travesti na Praça Paris, o paradoxo do folião triste em pleno carnaval, o último dia de trabalho de um homem que se aposenta… Pequenas humanidades, que parecem hoje solapadas sob o recurso fácil da violência. O livro teve como norte uma frase do Ítalo Calvino, em As cidades invisíveis. Ele observa que o inferno, se existe, é aquele que vivemos aqui, dia após dia, estando juntos. A questão, pois, seria procurar, dentro do inferno, o que não é inferno. Meus contos encenam justamente essa procura.

Suas histórias surgem como? Você foi sempre contista?
Sempre escrevi contos. As histórias surgem das formas mais variadas, mas são sempre ligadas à barra dura e deliciosa de se viver. Sou crítico da literatura auto-referente, que se fecha em si e esquece de olhar (e experimentar) a vida. O escritor tem que sair de casa, largar um pouco o computador. É preciso não só olhar a rua, mas mergulhar nela; é preciso estar com as pessoas. Às vezes tenho também a impressão de que a ‘cor local’ foi excomungada em nossa literatura. Na pretensão de assumir uma postura ‘cool’, muitos autores fazem questão de apagar qualquer marca identitária de seus textos. Acham que isso indica cosmopolitismo, quando na verdade evidencia é um indisfarçável complexo de vira-latas.

Como você vê o conto atualmente? Tem muita gente nova escrevendo?
Certamente há muita gente escrevendo contos, e a internet trouxe uma grande facilidade de publicação. Até por conta do tamanho, o conto foi gênero muito beneficiado pela rede virtual – que não comporta, por exemplo, um romance, pela natural dificuldade da leitura demasiado longa. É claro que isso não implica necessariamente qualidade, embora haja ótimos contistas na novíssima geração. Destacaria o João Anzanello Carrascoza, de São Paulo; o Flávio Izhaki, do Rio de Janeiro; o Amilcar Bettega Barbosa, do Rio Grande do Sul; e o Rubens Figueiredo, também do Rio, este já mais veterano.

Escrever te dá algum prazer, ou é pura catarse?
A fase propriamente dita da escritura não é prazerosa, não. Prazer é ter escrito. Depois de pronto, burilar, trabalhar à exaustão. Por isso, não é pura catarse. É catarse, mas também suor. Dioniso e Apolo. Porque a ‘musa’ quase sempre precisa de uma lipoaspiração.

Você pretende continuar escritor? Já tem novos projetos?
Sinceramente, não acredito que ser escritor configure uma opção. Se fosse, quem o desejaria num país como o nosso, em que o não-estrangeiro praticamente não tem leitor, vende migalhas? Escrever no Brasil é dar murro em ponta de faca, mas talvez tenhamos mesmo uma porção masoquista. Ou sejamos de tal forma impelidos a fazê-lo que acaba não havendo escolha. No fim, o que vale mesmo é saber que alguém leu um conto seu e se emocionou, que seu texto foi capaz de tocar uma pessoa da mesma maneira que um dia o texto de outro autor o tocou. É isto o que importa, muito mais do que prêmios literários (em geral, viciados), matérias em jornal ou convites para eventos, essa ‘fumaça’ que às vezes envolve e ilude. Aprendi que devemos ter sempre à vista a noção da nossa desimportância.

Meus novos projetos são um livro infantil, que devo entregar à editora ainda este ano, e um trabalho na linha do Raymond Carver, em que várias histórias (ou vários contos) se interligam. Como diria o Cony, uma espécie de ‘quase-romance’, que se desenrolará numa pequena vila de casas com moradores de classe média baixa. Como não vai se passar em Cabul, certamente não entrará na lista dos mais vendidos.

Longe do óbvio

Em Somos todos iguais nesta noite, Marcelo Moutinho distancia-se da violência urbana e opta pelo amor, a ternura e a infância

“Para situar: em Somos todos iguais nesta noite, Marcelo Moutinho escolhe o óbvio para não despencar pelo lugar-comum. Vantagem? O lugar-comum é pura repetição, cópia; o óbvio às vezes permite algum tempero, logo…

Marcelo Moutinho ambienta seus contos no Rio de Janeiro e o lugar-comum estaria a sua espera caso preferisse bater nas teclas gastas e desafinadas da violência e das belezas naturais – nenhuma das duas merece tanta fama, mas para o deleite e emoção dos leitores, ele prefere o óbvio, as relações humanas, ou melhor, a condição humana e suas mazelas. Não nos equivocaríamos caso preferíssemos dizer que grande parte dos contos de Somos todos iguais nesta noite são honestos recortes do tão falado rito de passagem. Só que com um detalhe que faz a diferença, o autor não opera o corte abrupto, o tal rito é demorado, tem suas nuances e não despreza sofrimento. Não que seja defeito, mas Moutinho conduz seus contos para o anticlímax. Se acaba frustrando expectativas, problema do leitor. Quem mandou imaginar finais mirabolantes, devidamente condicionados pela literatura da repetição? A tal da surpresa para fechar o conto com um golpe de mestre. Caso soe falso, pouco importa, o que vale é o impacto. Trocando em miúdos: a imprescindível violência. O nefasto lugar-comum para o qual, de longa data, caminha a quase totalidade de nossos contistas. A nova geração, sem dúvida, marcha unida.

Marcelo Moutinho não se deixa levar pelo brilho do sangue, dos ônibus incendiados, das crianças arrastadas, não busca escandalizar utilizando-se da escatologia e da tragédia familiar. Aos apressados, e como temos apressados!, pode até parecer alienação um escritor que passe ao largo das notícias de jornal. Moutinho optou por outras possibilidades bastante plausíveis, o amor, a ternura, a infância e suas tonalidades.

Deixou de lado o sambista, a mulata, o traficante, o drogado, o bicheiro, não descreveu a subida pro Cristo Redentor, tampouco satanizou moradores da Barra da Tijuca ou glamourizou a Rocinha. Optou por vidas sem sobressaltos, protagonizadas pelos reféns da rotina.

Com a sua licença, paciente leitor, aproveito a deixa e peço atenção para o livro A solidão do diabo, de Paulo Bentancur, exatamente o oposto de Somos todos iguais nesta noite, no entender deste aprendiz os dois melhores livros de contos lançados no ano que passou.

Em ambos percebemos a opção pela emoção, pelo exame minucioso das questões que a infância suscita, para o bem e para o mal, da evolução da expectativa ao derretimento das ilusões. Conseqüência: a dor inevitável do amadurecimento. Se em A solidão do diabo a surpresa é resultado da quebra da lógica pelo inusitado na maioria das vezes, em Somos todos iguais nesta noite, o estranhamento resulta de sabermos que a perspectiva do amor, da ternura, não está de todo embaçada.

Apesar das diferenças que os coloca nas extremidades, mas que também os aproxima devido ao tratamento dispensado aos seres humanos, a multidão na fila. Para os personagens de A solidão do diabo, a vida vale pouco ou quase nada. O exemplo é a mulher que decide se matar e se joga na frente de um ônibus, mas o motorista consegue frear a tempo. Frustrada, entra no mesmo ônibus. “Se não a matou que ao menos a leve até o centro.” Para os personagens de Moutinho, a vida dá a impressão de valer muito, mas também dá entender que eles julgam não merecê-la.

No conto Rosa noturna, o travesti Teresa precisa realizar cinco programas para efetuar o pagamento das contas. Vem o primeiro e dá tudo certo, com o segundo também, no terceiro o leitor já não se agüenta na expectativa da desgraça. Não ocorre. Surge o quarto e continua dando tudo certo pra Teresa. Então o leitor, já sentindo cheiro da tragédia, reserva todas suas energias para o quinto que não pode falhar. Mas falha. E Teresa conclui sua noite de trabalho com objetivo alcançado e algo mais.

Num ato repentino, o homem escancarou a porta do carro, atirou as flores no chão, engatou a chave e arrancou de forma brusca. Os pneus gritaram por ele. Teresa então notou que, com a rispidez da queda, uma rosa se desgarrara do buquê. Ela se abaixou, pegou a rosa e, ainda agachada, inflou o rosto num sorriso, imaginando quem seria enfim o destinatário que nunca receberia aquelas flores.

Recorda que no começo falei em anticlímax? Pois bem!

Fator de estranhamento e ao mesmo tempo grande qualidade dos contos de Moutinho é a ausência de impactos. As alegrias, as frustrações, as surpresas e as resignações se dão na maciez rotineira do dia-a-dia tão familiar a todos. No entanto, convém um alerta: o autor não busca confundir realidade com literatura, embora as cores e as luzes sejam verdadeiras.

Pra resumir: o livro de Bentancur e o de Moutinho salvaram o gênero de um grande vexame em 2006, o que publicaram de abobrinha no quesito conto foi constrangedor.

Voltando a Somos todos iguais nesta noite, temos 20 contos divididos em duas partes, Iguais e Noites,entremeados por vinhetas ou máximas de grande impacto moral, obviamente, e lírico, mas que fazem com que resida nelas o único problema, probleminha, porém, grave do livro. Esses “minutos de sabedoria” jogam por terra a sutileza dos contos, acabam estabelecendo julgamento quando no conto o autor estava apenas interessado em mostrar. Extremamente desnecessárias, as tais vinhetas jogam baldes e baldes de água fria na sabedoria dos personagens, que cada um a seu modo acaba criando métodos próprios para lidar com ausências, atrasos e surpresas.

O autor conseguiu um equilíbrio perfeito entre seus contos, não fossem aqueles malditos “minutos de sabedoria”, teríamos um livro perfeito. Destaco alguns que considero antológicos e recomendo aos professores das oficinas literárias, por favor, apresente-os aos seus alunos para que possam constatar o quanto o gênero ainda permite de criatividade.

No conto Passeio em família, o pai na “voltinha de estréia” do carro novo desfere um tapa na coxa do filho por pensar que este tivesse batido na irmã. Desfeito o equívoco, pedido de desculpas. O que podia ser uma besteirinha arranhou o coração do menino e as desculpas não foram suficientes para que a coxa, agora adulta, deixasse de arder.

Em Fogos a mulher relata como conheceu o homem da sua vida. Como tudo se deu depois do primeiro telefonema, casamento, logo em seguida o filho, depois a neta. Quando o leitor se acostuma com toda harmonia, a resignação: “Poxa, ele bem que podia ter ligado”.

Desfile é um conto repleto de tensão do começo até quase seu final. Dona Dita, a costureira que está ficando cega, atrasou a entrega das fantasias para o desfile da escola de samba. Enquanto o final não acontece, pairam duas suspeitas: perfeccionista, e por isso a demora, ou então a velhice, está ficando cega e combina as cores pelo som, que não permite atender a demanda. Na verdade, não se pode desprezar nenhuma das possibilidades. Missão cumprida, Dona Dita promete ir ao desfile. Mentira, prefere ficar em casa e assisti-lo pela televisão. A felicidade da sua escola é a sua felicidade.

No conto Jujuba verde, uma menina espera em frente à televisão a chegada de um cantor romântico. Mentira criada e sustentada pela mãe.

Com algum esforço, carregou-a até o quarto, onde deu-lhe um beijo terno, sussurrou um “boa – noite, a menina”, deitou-a na cama e apagou a luz.

– Amanhã ele vem – ainda disse, antes de sair.

EmMenino no escuro nos deparamos com Peter Pan pelo avesso. As fotos da infância e os brinquedos somem sem que o menino perceba que é a infância que está chegando ao fim. Enquanto a adolescência se anuncia, o menino permanece encantado pelas lembranças. Talvez mais tarde entenda as intenções de Dona Dita, do conto Desfile, quando disse que “lembrança até quando é boa dói”.

Inventivo e de uma áspera ternura é Dedicatórias. Está se tornando um hábito nefasto a tal da metalinguagem e resulta daí um borrão de repetições e chatices. Pois então, patéticos inventores do já sabido leiam e releiam Dedicatórias, aqui se transcendem as obviedades, o que se lê é pura criatividade. Coisa feita por quem é do ramo, manjam?

Um casal troca livros e o leitor percebe a evolução do romance pelos recados escritos na folha de rosto. E mesmo com livros a rotina impiedosa corrói o amor. Repete-se a cena inicial – com dedicatória num livro, o romance chega ao fim.

Das profundezas do azul pode ser encarado como o emblema da sensibilidade do autor. Funcionário que está para se aposentar, vive numa quitinete em Copacabana e vangloria-se de poder ver o mar da sua janela. No final do conto o leitor sofrerá com o protagonista no afã de realizar a engenharia que lhe permite ver o mar.

Somos todos iguais nesta noiteé uma aula de literatura. É impressionante o quanto de surpresas a simplicidade encerra!”

Luiz Horácio

Todos iguais em meio ao caos

Os contos de Marcelo Moutinho são como um antídoto literário eficiente contra o cinismo e a brutalidade

“O carioca Marcelo Moutinho, um sujeito discreto, afável e educado, parece ter transposto estas e outras características para a sua literatura. A forma como desenvolve os contos de seu segundo livro (fora participações em antologias), Somos todos iguais nesta noite (ed. Rocco), funciona magnificamente como uma espécie de antídoto contra a brutalidade, a gratuidade e a banalização da vida, da morte e da violência. Moutinho redescobre e explicita a plenitude dos mínimos gestos de seus personagens, contruindo-os e inventando-os a partir daí, desses pequenos nadas que, a rigor, compõem o grosso da vida, do dia-a-dia.

Em meio à situação do mundo em geral e do Rio de Janeiro em particular, de caos e extrema instabilidade, um autor que resolva se voltar para os citados “pequenos nadas” da existência é alguém, sim, ousado e corajoso, mesmo arrojado. Não é que Moutinho vire as costas para toda a desgraça social, moral e política que nos circunda ou nos sufoca. O que ele faz é optar por uma outra via de expressão, avessa a didatismos e demagogias, abraçando as mínimas coisas do cotidiano e reinaugurando, assim, de uma maneira nada óbvia e nunca melosa, alguma possibilidade de esperança – mesmo que forçosamente dolorosa.

Há dor nos contos de Somos todos iguais nesta noite. Há solidão neles, e algum desespero. Mas há uma solidariedade possível, palpável. Há um ideal de união, a possibilidade de comungarmos cada qual com a nossa própria solidão, com a nossa própria dor, mas reconhecendo a dor e a solidão do outro também como legítima, similar à nossa. Todos iguais nesta noite, na vida, em meio ao caos.

Tome-se como exemplo o belíssimo trecho final do conto que dá título ao livro:

“Mal sabíamos que ali, ao dobrar a esquina, meio curvado e já bastante molhado, vencendo cada metro do asfalto com dificuldade e frio, o Rapaz carregava a dor da Gorda de ser gorda, a dor dos jornais e das revistas de Arlindo, a dor discreta de Rodolfo, e também as minhas dores, as mais espessas e permanentes. O Rapaz carregava a dor daqueles que dormiam nos apartamentos da Marquês de Abrantes, dos mendigos sobre as marquises, dos porteiros dos prédios, de suas esposas, de seus filhos. Carregava a dor dos que beberam oito ou dez chopes, dos que beberam apenas dois, a dor dos que não bebem. A caminho de casa, ensimesmado, ante o ruído dos grossos pingos da chuva sobre as poças e do vento que fazia mexer levemente as folhas dos canteiros, o Rapaz carregava a dor de cada criança, de cada mulher, o Rapaz carregava a dor de cada homem dessa cidade (página 124).”

A aparente simplicidade do texto potencializa o seu impacto emocional e empresta a ele uma sobriedade comparável à dos contos do norte-americano Raymond Carver, cujo trabalho inspirou o celebrado filme Short Cuts – Cenas da Vida (1993), de Robert Altman. Embora Moutinho afirme não ter ainda lido Carver, há afinidades gritantes entre os estilos dos dois autores. Em ambos, coisas aparentemente ínfimas servem como matéria-prima. No conto que abre o livro de Moutinho, Passeio em família, essa capacidade de, por assim dizer, “desbanalizar o banal” já aparece: o narrador nos conta um passeio no carro novo do pai, no qual um incidente quase bobo ganha dimensões dolorosamente gigantescas. Tanto quanto a violência, o lirismo de Moutinho é comedido, e é isso que impede o livro de resvalar no melodrama rasteiro, no sentimentalismo torpe.

Há algumas semanas, rascunhei algumas palavras a respeito dele no meu blog, Canis sapiens. Creio ter sido feliz ali ao me colocar muito, mas muito menor do que os contos que integram o livro, abraçando, por alguns instantes, as imagens que resplandecem nas páginas de Somos todos iguais nesta noite. A humildade intrínseca aos contos de Marcelo Moutinho é contagiosa. Logo, termino transcrevendo as minhas cruas, mas sinceras e firmes, impressões de então:

Não que Raymond Carver precise disso (está muito bom do jeito que está), mas o lance é que se ele, Carver, tivesse um lirismo assim escorrendo de cada linha, bem, Raymond Carver se chamaria Marcelo Moutinho. Não que o Marcelo precise de uma comparação dessas também, mas foi a primeira coisa que me ocorreu quando li o primeiro conto desse livro. Assim como o pai do referido conto, o livro de Moutinho parece despontar no jardim de banho tomado, tênis, bermuda, camisa sem mangas e Hollywood na mão. Ele parece não querer nada do leitor, e no entanto entrega tudo feito um fantasma bacana. A cada conto, como quem cultiva o anverso (que é sempre mais bonito), leva as nossas lágrimas de volta pros olhos. São contos às vezes insuportavelmente brancos que nos fazem contemplar o chão com toda a saudade de nem sei o quê. O lirismo de Marcelo é lindamente comedido, como se nenhum de nós, jamais, precisasse morrer de câncer ou de solidão.”

André de Leones
André de Leones é escritor, vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e colabora com o Caderno Ilustrado.

“O jornalista e escritor Marcelo Moutinho acaba de lançar seu segundo livro. Somos Todos Iguais Nesta Noite (editora Rocco, 128 págs., R$ 19,00), seleção de contos suburbanos, vai na linha da tradição carioca de retratar a cidade a partir de pequenos textos que desenham, como em óleo sobre tela, painéis de uma humanidade possível — negligenciada pelos donos do poder e tratada com deboche pela nova geração de autores brasileiros. Aos 34 anos de idade, Moutinho é tratado como um dos melhores contistas cariocas da atualidade. Talvez seja prematuro fazer tal afirmação, mas seu primeiro livro,Memórias dos Barcos (7 Letras, 2001), prenunciava um autor gabaritado para falar da cidade como falaram, por exemplo, Carlinhos Oliveira e outros escritores egressos da imprensa. Em Marcelo Moutinho se nota a mesma verve boêmia que deu a melhor literatura de calça a e balcão.

Somos Todos Iguais… é um livro curto, para ler numa sentada só, mas nem por isso simplista. Cada um dos 22 contos é permeado por um lirismo comedido que, em alguns momentos, nos lembra de que o Rio de Janeiro ainda é possível — apesar da insegurança pública e da bandalheira política que assolam a população local, sobretudo a mais pobre. Não se trata de poesia ingênua feita atrás das lentes do bairrismo. Moutinho sabe que o título de Cidade Maravilhosa já não cai bem à sua aldeia — o que não o impede de ver beleza nos acontecimentos triviais das ruas. Mesmo quando tristes ou trágicos, os dramas pessoais são carregados de sentido e não cedem ao cinismo dos que colocam todos os homens no mesmo balaio. Para o autor, a única saída do inferno é a aceitação de uma vida íntegra, baseada nos melhores instintos e sentimentos.

O livro é dividido em duas partes: Iguais e Noites. Na primeira, o autor reúne textos solares, com temas que remetem à infância, à família e ao amor romântico. A passagem para Noites é feita por um conto erótico: Rosa Noturna, que conta a história da travesti Teresa, que “tinha um pênis de vinte e dois centímetros, contados na régua”. Assim, de uma antiga recordação do pai — que “despontou no jardim de tênis, bermuda, camisa sem mangas e com o seu Hollywood na mão” —, Moutinho costura a primeira metade com a precisão da velha costureira, incumbida de preparar as fantasias para o Carnaval, que aparece no sétimo capítulo. Todos os personagens criados por Moutinho — isto não está claro — provavelmente moram no mesmo bairro e se conhecem de vista. Talvez morem em Madureira, ali nas imediações da Carvalho de Souza com Dagmar Fonseca.

A delicadeza extraída de instantes banais será sempre o melhor termômetro do conto, cuja função é emocionar ou chocar o leitor. Marcelo Moutinho consegue fugir ao morno quando dá aos seus textos um final arrebatador ou imprevisível. Há sempre uma surpresa reservada — como a presença de microcontos entre um texto e outro, fazendo a ponte entre um personagem e outro, entre uma solidão e outra, entre um drama e outro. Dessa forma, o rapaz calado, que toma oito cervejas todos os dias sem falar com ninguém, pode muito bem ser o mesmo que recorreu aos serviços da travesti Teresa ou que saiu a procura do amor num bloco carnavalesco. Somos Todos Iguais Nesta Noite é um livro de contos profundamente ligado ao Rio de Janeiro, mas que pode ser lido e compreendido por qualquer leitor, em qualquer parte do mundo. Apesar de geográficos, os temas explorados por Moutinho são atemporais e universais. Leia, a seguir, trechos da entrevista com o autor:

De que maneira os contos são iguais?

Marcelo Moutinho: Meu objetivo foi costurar um conto no outro, de modo que eles contassem uma só história, mas sem deixar de dialogar. Os contos podem ser lidos separadamente, mas estão amarrados por pequenos pontos comuns que levam o leitor a pular de um texto para o outro sem perder o ritmo da respiração. Sob essa perspectiva, o conto Desfile, que traz a costureira de escola de samba como personagem, é uma espécie de síntese da proposta do livro.

Ainda há espaço para o conto e as crônicas na nova geração de autores brasileiros?

MM: Quando organizei a antologia Prosas Cariocas – Uma Nova Cartografia do Rio (Casa da Palavras, 2004), percebi que existia uma produção intensa, reveladora de carga afetiva com a cidade. Um amor e um compromisso com a cidade que não vejo tanto, por exemplo, entre os autores paulistas — com nobres exceções. Talez porque a crônica, por ser um gênero literário nascido na imprensa carioca, tenha deixado marcas profundas no imaginário dos nossos criadores. O espaço existe mas, se não fossem os blogs, estariam restritos aos leitores do Rio. Porque a literatura contemporânea está cada vez mais fechada em temas estilísticos e munida de discurso que reivindica para si uma vanguarda vazia, que não existe da maneira como dizem.

Como você enxerga sua geração?

MM: O escritor, entendido como aquela figura do observador da rua, está morrendo. A maioria dos novos escritores que estão em foco dos cadernos literários é formada por pessoas mais preocupadas com a forma que o conteúdo. Os temas estão cada vez mais egoístas: giram em torno da própria literatura ou do umbigo dos autores. A única marca perceptível, se é que existe uma que identifique esta geração, é a aproximação com o neo-naturalismo e com o roteiro de cinema. Os grandes dramas humanos pescados no cotidiano das calçadas não têm mais importância. A literatura está desumanizada porque muitas vezes os escritores não saem de casa, ficam o dia todo sentados na frente do computador.

A blogosfera contribui para o aparecimento de um novo tipo de leitor e de literatura?

MM: Não sei se esta contribuição chega a tanto, até porque a maioria dos textos veiculados é ruim. Acho que a maior contribuição da blogosfera foi propiciar o encontro de pessoas que pensam e escrevem sobre as mesmas coisas. Antes, éramos ilhas. Cada qual em seu canto, achando que estava escrevendo para ninguém. O blog está recriando a vida literária, propiciando a troca de informações e a associação de autores, além de democratizar o acesso à produção e à leitura de novos textos.

Apesar da melancolia de seus contos, você é otimista em relação ao Rio?

MM: A melancolia é fruto de uma constatação: a de que a humanidade se perdeu e caminha para a extinção. É um caminho sem volta. Porém, sou otimista em relação a uma vida que pode renascer a cada dia, nos lugares mais improváveis do Rio ou de qualquer outra cidade. Ítalo Calvino dizia que o inferno é a vida que levamos e que a única saída é viver da melhor maneira possível. Ou seja, estamos no inferno, mas não precisamos fazer de nossa vida um inferno. E o Rio de que gosto e conheço está do outro lado do túnel, onde o dono do armazém vende fiado e o cliente faz questão de pagar no fim do mês. Acho que a cidade pode se salvar a partir do resgate dessas relações de confiança e solidariedade, que ainda existem no subúrbio.”

O retorno de um suburbano

Marcelo Moutinho lança coletânea de contos inspirados na sua volta a Madureira, onde nasceu

“Quando voltou a freqüentar a quadra da Império Serrano, há quatro anos, Marcelo Moutinho mergulhou no lapso entre a Madureira de suas lembranças e o bairro atual. Assustou-se com o êxodo de comerciantes e saudou a permanência da alegria na quadra da verde-e-branca. Despejou saudade, críticas e traumas em 22 contos que compõem o recém-lançado “Somos todos iguais nesta noite”, editado pela Rocco.

Como adianta a orelha do livro – a segunda coletânea de contos do autor – o leitor deve esperar encontrar “meninos, velhos e moços, bêbados, travestis e namorados ingênuos que transitam por cenários suburbanos do Rio de Janeiro, choram e celebram suas fantasias de carnaval, se esquecem em botequins, vibram com a perspectiva da visita à casa do tio”.

– Nesse livro, a visão do subúrbio está presente de forma mais direta. É o clímax de várias histórias. Os contos são inspirados pelo meu retorno ao bairro, mas também pelo espanto que senti em ver tantas transformações. Sinto saudades de uma Madureira sem tanto verniz – desabafa.

O verniz, para Moutinho, é pincelado pela mídia e intelectuais que só enxergam no subúrbio o que há de exótico, de interrupção. A crítica é evidente no conto “Jujuba verde” que se passa em um bairro onde o tempo estancou. Bairro “afastado do centro da cidade, e com a distância parecia que tudo ia desacontecendo à medida que suas ruas se aproximavam”.

Ao lado dos protestos há homenagens como um conto dividido pelos quesitos de julgamento de uma escola de samba: da comissão de frente à dispersão. Que também relembra um dos ídolos do Império Serrano, o sambista Roberto Ribeiro. Obcecado pela infância, Moutinho descreve doces recordações, como um passeio pela praia de carro novo, e a paixão pela prima mais velha. Delícias que se misturam a dores do crescer como um tapa injusto ou uma demão de tinta que decreta fim de festa. Apesar de admirar escritores como Lima Barreto e João do Rio, que trilharam o cotidiano dos subúrbio décadas atrás, Moutinho se inspira em Clarice Lispector e Dostoievsky. Em Kafka e Caio Fernando Abreu:

– Gosto da cidade, de observar a interseção de caminhos e pessoas. Como no poema de Ferreira Gullar: “todas as coisas de que falo estão na cidade entre o céu e a terra”.”

Vivian Rangel

Três autores em vôo solo

Em 2004, três novos autores se reuniram no projeto Prosas cariocas. Dois anos depois, coincidências os reúnem novamente, agora com o lançamento de três livros individuais. O Portal Literal reuniu Ana Beatriz Guerra, Henrique Rodrigues e Marcelo Moutinho para um papo sobre literatura, discutir o acesso ao mercado editorial para novos autores, traçar um panorama dessa gente nova que vem fazendo literatura no país. Ana Beatriz estréia com o livro de contos (e quase contos) Amor em pílulas(Íbis Libris). Henrique Rodrigues é autor do livro de poemas A musa diluída (Record) e Marcelo Moutinho lança Somos todos iguais nesta noite (Rocco). Leia ainda trechos de seus livros.

Como vocês chegaram à literatura?
Ana Beatriz Guerra. Para mim, começou em 2003. Sempre escrevi, mas você nunca pára pra pensar “ah, posso escolher isso, posso tentar viver disso”. Me formei  em jornalismo, mas nunca cheguei a trabalhar em redação, escolhi trabalhar em editoras. Faço revisão há muito tempo, sobretudo de livros técnicos. Aí começou a bater uma vontade de escrever as minhas coisas. E comecei a fazer cursos, como os da Casa da Gávea, até tomar coragem e assumir que eu queria escrever. E uma coisa foi levando a outra. Comecei com um blog, conhecendo outras pessoas que também escreviam, e foi se formando essa comunidade. O Paralelos surgiu nessa época, e também teve muita importância, deu mais visibilidade para esses novos autores. Cheguei a eles através da Rosana Caiado, fazíamos um curso de romance juntas, no fim de 2003. E ela me apresentou ao Augusto Sales, editor do Paralelos, comecei a enviar uns contos para ele, que publicou. A partir daí comecei a publicar em outros sites, alguns que nem existem mais, como o Patife, Bestiário. Tem que dar o pontapé inicial. Depois que a pessoas passam a te conhecer, te ler, fica mais fácil.

E por que você falou em coragem para assumir? Dúvidas se era ou não a hora de publicar?
Ana Beatriz. Exatamente. Achava que não era a hora, que de repente não estava madura o suficiente. Tudo bobagem. Medo puro, de ouvir o que os outros vão achar. Mas o mais legal é o que os outros acham, porque aí você tem visões totalmente diferentes. Depois de escrita a história não é mais sua. E cheguei à Ibis Libris através do Paralelos, me chamaram para resenhar um livro publicado por eles, do Fernando Paiva. Adorei o livro, uma novela, fui entrevistar o Fernando e resolvi entrar em contato com editora. E eles toparam. No início, apresentei um romance, que está engavetado. Depois pensei que seria melhor começar com os contos. Tem contos mais antigos e também mais recentes. O pior momento foi escolher o que entraria ou não.

E você, Henrique?
Henrique Rodrigues. Aos 17 anos eu desisti do serviço militar para estudar literatura. Eu optei por estudar Letras porque queria aprender as técnicas de escrita às quais eu não tinha acesso. Como toda família menos aquinhoada, eu não cresci cercado de livros, com essas leituras iniciais que as pessoas têm. Na faculdade, fui alfabetizado para a literatura. Foi onde tive contato com excelentes professores, como o Ítalo Moriconi, e grandes amigos, com quem aprendi a compartilhar leituras e escritas. Desse modo, aprendi que o texto literário é para ser lido. Não consigo então guardar texto, escrever e pôr na gaveta. A não ser que seja um processo consciente de que aquele texto vai ser trabalhado daqui a tanto tempo. Não sei escrever para não ser lido. A partir dessa minha formação, que depois emendou em um mestrado em literatura também e uma pós em jornalismo cultural, onde conheci o Marcelo [Moutinho], as possibilidades foram se abrindo lentamente, com a publicação em periódicos, como a Poesia Sempre, e daí veio a internet depois, tudo isso foi contribuindo até chegar nesse ponto em que a gente está hoje, com o lançamento desse livro de poemas.

Mas antes desse livro, li um conto seu na antologia Prosas cariocas. Como é essa relação da prosa e da poesia, você sempre produziu em ambos os gêneros?
Henrique.
Uma decisão muito consciente na minha formação universitária foi dominar todo tipo de texto escrito, seja de ficção, seja ensaístico, de prosa ou verso. Então experimentei textos de teatro, experimentei roteiro de televisão. Acho que as diferentes formas de escrita são muito interessantes de você poder dominar e brincar com elas. No meu blog, na verdade, me divirto escrevendo paródias, imito o estilo de alguns escritores, Raduan Nassar, Graciliano, Guimarães Rosa. É um exercício complementar para mim. A partir dessa imitação consciente de outros estilos, a gente vai, mesmo que lentamente, buscando a nossa própria voz. Participei do Prosas cariocas, uma coisa muito bem-vinda, um privilégio participar, porque ali eu consegui me ver como parte de um grupo, de um conjunto de escritores de uma cidade, mesmo que cada um com o seu estilo, cada um com a sua linha, mas pertencendo ao mesmo tempo.

Ana Beatriz. O mais curioso do Prosas é que a gente escreveu sob encomenda, cada um no seu quarto fazendo o seu processo, e o livro tem uma cara. Por exemplo, o conto do Henrique, sobre Jacarepaguá, é antes do meu, que é sobre a Barra [da Tijuca]. É como se a gente traçasse um mapa.

Marcelo Moutinho. Não tínhamos uma rota prévia, sair daqui para chegar ali. A idéia era liberdade total para os autores. O que mais discutimos foi isso, que rota fazer, porque tem que ser uma rota possível para o leitor, uma viagem possível. E termina no Cosme Velho por causa do Corcovado. Óbvio que não se sai direto do Leblon direto para Copacabana, tem Ipanema no meio. Mas Ipanema não entrou, paciência. Foi o que mais perguntaram na época, como fazer um livro sem Ipanema?

Como se partiu para esse livro?
Marcelo. Partimos dos autores para então decidirmos os bairros. O Flávio Izhaki [que organizou o livro junto com Marcelo] tinha um conto sobre o Catete, e conversando vimos que isso dava um livro. Mas para onde a gente vai?, ele me perguntou. Eu disse para levarmos o projeto para uma editora, e levamos na Casa da Palavra, que aprovou. Aí começamos a procurar na internet, no Paralelos e outros blogs, e demos dois meses pro pessoal entregar os contos, quem não cumprisse esse prazo estava fora. Era uma encomenda.

Henrique.  Isso é interessante – o prazo de criação –, demonstra certa postura profissional, não precisa ficar na dependência de inspiração. Isso é uma coisa já bastante ultrapassada, e você tem uma perspectiva séria diante da literatura, da criação.

Marcelo. O Millôr fala uma coisa parecida, prazo é a maior musa inspiradora. Tem que entregar, você faz coisas inimaginavelmente boas.

Henrique. O Henfil falava que a inspiração é um doberman atrás de você. Isso é inspiração.

Marcelo. Todo escritor contemporâneo tem seu trabalho, sua outra ocupação. Muitas vezes, é difícil você sentar a bunda na cadeira para escrever. São horas roubadas do cotidiano, do que faz você pagar as contas etc. Uma encomenda faz você roubar mais horas. Meu livro anterior Memória dos barcos já tem um tempo que saiu, em 2001. Tinha dado uma desanimada. Estava falando com a Adriana Lisboa, que havia gostado dele, vou fazer o que gosto, continuar fazendo resenhas, porque nada acontece. Existia uma desmobilização no Rio, que não repetia o que estava acontecendo em São Paulo, nos anos 1990, em relação aos novos autores. E isso é desestimulante, se você não tem “vida literária”, de convivência, de troca, de sentar no bar e conversar sobre literatura, mandar e-mail com contos, leia o meu que eu leio o seu. Ela é fundamental, um combustível para a própria criação. Estava todo mundo escrevendo em suas casas – eu, o Henrique, a Ana, o [João Paulo] Cuenca –, mas o grau de desânimo era crescente. Porque não quero ser lido postumamente. Quero ser lido hoje, agora. Escrevo para ser lido. Por ser jornalista, ter uma produção textual constante, eu só guardo o que acho relevante. Se alguém me pedir um conto para alguma publicação, vou sentar e escrever, não tenho material de sobra, zero guardado. Esse livro novo Somos todos iguais nesta noite tem apenas dois contos que já haviam sido publicados, um na revista Ficções, duas encomendas. Pensei nesse livro de contos como quase um romance, que tivesse um clima, uma característica ligando todos os contos, que poderia ser lido cada conto separado, mas também dentro de uma lógica. Por exemplo, tem um conto sobre um telefonema que nunca aconteceu, e o anterior fala da secretária eletrônica, de um telefonema que não é atendido. Outro fala de uma pessoa que morreu e o outro, de uma pessoa que foi embora e se transformou em um fantasma na vida de outra. Tem uma ambiência que está no livro, que dá uma identidade que procurei a priori.

E o começo, como se descobriu escrevendo?
Marcelo. Comecei escrevendo adolescente, cometendo poesias horríveis, horríveis. Daí um amigo meu publicou pela 7Letras um livro. E perguntei como era essa brincadeira. Ele disse que a editora entra com metade, você com a outra metade e a editora tem que aprovar o teu texto. Eu procurei a 7Letras, eles aprovaram e publiquei [em 1998], mas o livro é uma merda, muito ruim, de contos. Mas que nada se aproveita, com exceção de um, que reescrevi e está nesse novo. Foi algo sem maturidade para publicar, mas acho que não tem que censurar. Acho ruim o livro, mas acho bom eu ter lançado. O fato de eu ter lançado me deu critério maior. A covardia não é um refúgio bacana para você se esconder de si mesmo. Curiosamente, o livro chama-se Um certo medo da noite, e tem uma relação com este, que chama-se Somos todos iguais nesta noite, tem uma brincadeira aí. Em 2001, lancei o Memória dos barcos, aí bastante empolgado, estava na pós de jornalismo cultural, conversávamos bastante sobre literatura.

Henrique. O diálogo é fundamental, você estar entre iguais, ter um interlocutor.

Marcelo. Eu, Flávio Izhaki, Cuenca, Francisco Bosco, sempre mostramos muito um para o outro, pedimos opinião. Porque quando você acaba de escrever, na quentura ali, você acha aquilo genial. A gaveta é um filtro interessante, nessa dormida na gaveta o conto se revela ou não.

Henrique. E tem que ter intimidade o suficiente para ser sincero.

Marcelo. No livro, agradeço ao Henrique, ao Flávio e ao Chico, que leram o livro enquanto ele era gerado. Claro, você nem sempre concorda com tudo, mas essa troca é fundamental. O que acontece no Rio hoje, quando o Paralelos surgiu – porque havia um vazio literário na cidade, mais de publicação que de produção, os autores chamados contemporâneos eram Sergio Sant’anna, Rubem Fonseca, autores dos anos 1970 –, esse movimento teve uma importância para o escritor daqui. É óbvio que nem todo mundo é genial, nem todo mundo é bom, não. Mas o fato de estarem escrevendo para ser publicado é fundamental. Depois tem a seleção natural, alguns ficam, outros não. Porque até hoje há um julgamento, sobretudo da imprensa do Rio, de um sentimento de inferioridade. Talvez pelo fato de o Rio ter sido a capital cultural por muito tempo, o jornalismo cultural carioca vestiu a fantasia da inferioridade. Há um julgamento do Rio por tudo o que se faz fora, como se fosse cabotino olhar para o próprio umbigo. Claro que olhar para o próprio umbigo demais é algo escroto, mas o contrário, que está acontecendo agora, também não serve. O fato de nós sermos criadores não pode diminuir o tamanho e nem o valor da nossa crítica. Não se pode achar que toda a crítica tem um segundo interesse. É uma confusão que se faz. Já ouvi isso, que seria ressentimento, pelo fato de autores daqui do Rio não serem capa do caderno tal. Não se trata disso. E é evidente que tem mudanças.

O que levou a essa mudança de cenário?
Marcelo. A internet tem um papel macro nisso, não só por expor os textos, mas também por aproximar os autores. Dificilmente de outra maneira se chegaria a isso.

Ana Beatriz. Sem essa efervescência proporcionada pela internet, de um círculo de pessoas escrevendo, que trocam experiências, opiniões, dificilmente teríamos esse renascimento da literatura carioca.

Marcelo. O Paralelos surgiu como uma reação à uma apatia completa, de um estado importante historicamente na formação cultural do país, que estava meio isolado em um segmento fundamental da cultura, que é a literatura. E não que estivessem calados, mas não havia ressonância. E no processo da gente chegar às editoras, as antologias tiveram um papel importante nisso. Claro que hoje há um exagero de antologias, mas nunca seria possível a gente ter lançado tantos nomes de outra maneira. E essas pessoas estão chegando aos seus livros solo agora.

Henrique. Esse momento de efervescência é nacional. Por conta do meu trabalho, tenho acompanhado um pouco a produção de vários pontos do país. Estamos num momento muito feliz de produção. Infelizmente, a gente não está num momento muito feliz de número de leitores, de consumidores de literatura. Ele não tem crescido na mesma proporção do número de autores e das facilidades editoriais, que é um outro ponto que vem facilitando a divulgação de novos autores. Esse momento se deve a um natural processo histórico de levantada da literatura depois de um tempo de sono. Na segunda metade da década de 1980 e na década de 1990, a produção foi bem tímida.

Marcelo. Houve uma ressaca da ditadura. Teve uma produção forte ainda, com Sérgio Sant’anna, Rubem Fonseca nos anos 1970, uma reação frontal à ditadura. Depois, no meio dos anos 1980, tivemos Caio Fernando de Abreu e outros autores, mas também uma ressaca das utopias, tudo aquilo que a gente esperava, onde é que vai dar?, e não deu em nada. E essa ressaca, depois que os grandes temas nacionais se diluem, parece uma total falta de assunto.

Henrique. Talvez a repressão tenha sido uma grande musa que tenha se pulverizado, se esfacelado, e agora talvez as pessoas estejam encontrando outros motivos.

Marcelo. Acho que hoje os olhares são mais singulares e objetivos, não existe mais a grande característica da literatura dos anos 00. Isso é uma coisa que não existe. Acho que o que tem são leves, suabilíssimas nuances. Por exemplo, vejo na literatura do pessoal que mora, vive em São Paulo, uma relação com uma literatura mais realista e urbana, e transitando entre uma chamada vanguarda literária. E no Rio, vejo uma literatura muito simbólica, existe uma relação que passa por um lirismo, uma delicadeza. Não é uma avaliação qualitativa, mas estética mesmo. São nuances, não há um grande tema a mobilizar uma geração, e acho bom que não haja. A literatura tem que fazer por si, não tem que ficar em defesa de idéias e ideologias. A literatura perde muito quando está ao lado da ideologia. Existe um deslumbramento esquerdista – e posso falar, pois fiz parte do movimento estudantil – por uma literatura que trate de determinados temas, e muitas vezes ela trata destes temas de uma forma que você concorda no âmbito da idéia, mas ela empobrece a partir do momento em que ela se pretende te convencer de alguma coisa.

Henrique. O utilitarismo, ou é muito eficaz, ou uma metáfora boba. Hoje é perigoso você trabalhar com as alegorias, você se torna panfletário, tendencioso, você entra em algum “ismo”, e os “ismos” são perigosos, bem limitadores para a produção artística.

Há uma diferença no mercado editorial para absorver essas literaturas díspares?
Marcelo. De uma forma geral, as editoras têm aberto espaço, temos chamado alguma atenção, sejam médias ou grandes editoras. A nossa literatura, de nós três, não transa com essa literatura dos autores da hora. É ruim de eu citar nomes, hahahahaha. Não qualificando, dizendo que são maus autores, longe disso. Mas é curioso, difícil e interessante, nesta ordem, fazer uma literatura que não está na crista da onda. Por mais que digam “Adriana Lisboa ganhou o Prêmio José Saramago”. Ganhou, lá em Portugal. Outro autor que adoro é o João Anzanello Carrascoza, de São Paulo, pouquíssimo conhecido, que escreve uma literatura burguesa, sim, do casamento, separação, do filho, é o tema dele. Então estamos na contramão desse momento, do que interessa como pauta. Essa pauta que você está fazendo aqui está na contramão do momento, pode ter absoluta certeza disso. E é muito curioso estarmos os três lançando seus livros juntos.

Mas o que movimenta essa pauta?
Henrique. O privilégio do personagem do autor sobre a obra dele.

Marcelo. Na Flip, 90% dos autores [nacionais] tomavam tarja preta. Eu não tomo. E não vou dizer que tomo.

Ana Beatriz. Ainda aquele mito do autor autodestrutivo. O maluquito que futuramente vai se suicidar.

Não é uma característica dos tempos em que a gente vive, de uma literatura muito autobiográfica como reflexo dos tempos de superexposição? Muitos fazem isso de forma consciente, outros nem tanto, talvez.
Marcelo. Muitos nem tanto. O problema não são os autores. Muitos destes são autores bons. O problema é que o holofote não pode ficar só sobre isso. Isso não é o central, ou não deveria ser o central.

Henrique. Chama a atenção, você num evento de grande porte dizer “eu não sei escrever, faço isso que está aí”. Uma atitude meio blasé com relação ao próprio esforço que existe na literatura, que não é uma arte fácil, não é uma coisa que cai feito chuva. São polêmicas muitas vezes dissonantes da própria produção escrita. Eu faço questão de não me encaixar nesse tipo. A gente está indo na contramão, por não querermos ser reconhecidos pelo personagem que somos, pelo que fazemos ou deixamos de fazer.

Marcelo. A Adélia Prado, por exemplo, fala a partir da sua experiência de vida, das emoções que passou, divide com o leitor estas emoções, sentimentos. Para mim, é isso, quero que as pessoas se emocionem quando lêem um conto meu, que nem seja o mesmo motivo, mas é isso que busco. Não me interessa questionar as estruturas sociais.

Ana Beatriz. Ninguém aqui quer ser imortal. Perguntam-me muito duas coisas, se vou ser imortal e se vou virar tema de tese. Não me interessa isso. O que temos em comum é não estarmos atrelados ao real, como aqueles atrelados à imagem, que querem vender a imagem antes de vender o texto. Mas podemos usar o real como ferramenta para escrever.

Marcelo. Não vejo a literatura fora disso: narrar uma boa história, suscitar sentimentos, raiva, ódio, compaixão, é isso que interessa.

Vamos falar um pouco sobre os livros que estão sendo lançados. Ana, no próprio título e nas primeiras histórias, o tema é o amor, mas tratado de uma maneira que não estamos acostumados a percebê-lo. O improvável do cotidiano, algo de tragicomédia, ceticismo e ironia permeiam o livro.
Ana. Na minha idéia, a pessoa vai olhar para capa, com bolinhas, coração, ler o título, Amor em pílulas, e vai achar que tem aquela idéia do amor romântico, fofinho, aquela coisa Júlia, Sabrina, e não é por aí. Na minha cabeça, são todos contos de amor. O primeiro, “Amor em pílulas”, é sobre uma relação que termina e vira outra coisa, um discurso sobre o amor que está virando uma coisa diferente. Mas há também um conto, “Compro, vendo, troco, financio”, que fala do amor na ausência dele. O cara se encontra numa encruzilhada e não vê outra solução para vida dele a não ser vender a alma, ele que não sabe se ela existe ou não. Todos eles – inclusive os quase contos, umas brincadeiras com as palavras – estão falando sobre o amor, até os mais violentos, e aí é fisicamente a ausência do amor. Então ele tem uma lógica, mas não é de jeito nenhum romântico. Romântico é, mas não do ponto de vista tradicional. Fala de quem tem e de quem não tem amor, como o cara que o procura numa boneca inflável.

Henrique, em seu livro de poemas você retoma o verso clássico, mas o título, A musa diluída, e o poema em que trata dela, fala da inspiração, que pode ser buscada em lugares onde não era comumente encontrada. Percebi também um ceticismo e uma ironia.
Henrique. Existe uma relação muito clara de aproximação e distanciamento entre estes três livros. Acho que a gente vive um tempo de grande tensão entre aproximação e distanciamento, isso em todas as esferas, artística, amorosa, social. No meu livro isso se aplica como uma busca a um elemento líquido, evocado justamente porque a água tem essa metáfora de poder transitar entre todas as formas. E numa brincadeira formal, tentei trabalhar os diferentes formatos literários. Busquei trabalhar os versos clássicos, sonetos de formas fixas, que hoje muita gente associa a um passado já remoto, o que é uma bobagem. Essas formas fixas sempre tiveram e sempre vão estar na literatura. E, ao mesmo tempo, brincando com a transição e diluição do próprio poema. E daí que você encontra versos livres também, poemas que vão ser colocados ali junto com sonetos, barcarolas, sextinas, poemas pequenos, quase hai-cais. A idéia foi fazer essa transição entre diferentes formatos, com a intenção de marcar um sentimento que tenho diante do mundo, de que as coisas são diluídas, mas ainda são vislumbradas. Talvez seja uma tentativa de vislumbrar ainda algo que poderia, que pode estar se perdendo.

Gostei muito do poema em homenagem ao Manuel Bandeira, “Gazal para Bandeira”. Não conhecia o gazal [ou gazel, gênero de poesia amorosa dos persas e dos árabes, estruturado em dísticos, com a mesma rima funcionando para os dois versos do primeiro dístico e para o segundo verso dos demais].
Henrique. É exatamente o mesmo número de versos, redondilhas, dísticos, sempre com a mesma rima. Nesse poema, é uma estilização homenageando o poeta que faz um poema que é antigo também, um jogo de espelhos. Esse poema passa bem a idéia de remissão a outros poetas. Manuel Bandeira, que é uma grande influência para mim, foi um grande poeta da intertextualidade, talvez o nosso grande poeta da intertextualidade do século XX, aquele que dialogou com vários formatos, vários autores, várias épocas, e com isso ele se valeu de paródia, de paráfrase, de pastiche, de estilização, todos elementos da poesia moderna e contemporânea. E o Hafiz [do poema de Bandeira, “Gazal em louvor de Hafiz”] era um poeta persa, rejeitado pelas mulheres. Ele até termina o poema dizendo: “As bem-amadas ingratas/ são pó; tu vives, Hafiz!”. Presta uma homenagem. E o próprio Bandeira teve uma trajetória similar. Ficou doente muito cedo, achou que fosse morrer, e achei interessante fazer essa brincadeira.

Já o seu livro, Marcelo, volta-se mais para a infância, a memória, a melancolia. Mas você joga com o samba, no conto da costureira, com a própria literatura, no conto “Dedicatórias”, e também no “Menino no escuro”, com um estilo meio Cortázar.
Marcelo. “Menino no escuro” foi inspirado num quadro do Iberê Camargo. Essa coisa da infância, o livro tem muitos elementos suburbanos, que remete a uma infância vivida no subúrbio, que acho importante registrar, pois está havendo uma perda. E tem uma frase que todo o livro se constrói sobre ela, do [Italo] Calvino, que está no final de As cidades invisíveis: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos”. O que a gente precisa é, no meio do inferno, achar o que não é inferno e preservar, abrir espaço. Essa a metáfora de Somos todos iguais nesta noite. A noite é a mesma, o que dentro dessa noite não é inferno? É buscar o sublime, a epifania no banal, no aparentemente banal, no cotidiano. O conto que dá título ao livro é inspirado no Carlinhos de Oliveira, tinha acabado de ler as crônicas dele, e estava de fato num balcão de bar, vendo as pessoas que chegavam, e quis falar dessa figura emblemática, do cara que vai pro bar beber. Essa figura está de forma implícita no livro todo, está na escola de samba, está no travesti da Glória que vai tomar uma cerveja no meio da noite. A melancolia é uma característica da minha literatura, influência direta dos meus pais literários, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, um traço autoral. E o livro tem a pretensão de ser mais que uma coletânea de contos, mas um retrato possível do que não é inferno, dentro daquela visão do Calvino. É isso.

E a partir de agora?
Ana Beatriz. É um privilégio e uma maldição. Porque a gente quer ver no que vai dar, mas ao mesmo tempo quer continuar escrevendo. Então não importa se fica no ostracismo ou vai pra capa da revista, o que pode ser uma conseqüência, não que a gente vá procurar. O mais interessante é você fazer o exercício, ser vanguarda para você mesmo, evoluir através das suas palavras. Daqui a dois, três anos ter a capacidade de colocar outro na rua, ver os erros que ele tem e tentar superar.

Marcelo.
A gente está diante de um nó maior que todos os outros, que é levar o leitor contemporâneo a ler os seus pares. Esse é o grande nó da chamada nova literatura brasileira.

Essa é a questão: o brasileiro não lê ficção brasileira.
Marcelo. Pois é, mesmo os medalhões têm dificuldades. Mas nisso a crítica cultural também tem culpa. Na última Flip, por exemplo, os destaques [na imprensa] eram somente os estrangeiros. Mas aí dizem que a novidade para a imprensa era o acesso aos estrangeiros, que dificilmente aparecem ou concedem entrevistas, e que os brasileiros são mais acessíveis. Tudo bem, mas a lógica não pode ser o de que é mais importante do ponto de vista da dificuldade de você conseguir falar com a pessoa. Se for por essa lógica, uma palestra arrebatadora, como foi a da Adélia Prado em Parati [na Flip], vai ter que receber menos espaço que, por exemplo, a do mexicano, David Toscana, criador de grandes enredos, mas que na palestra não foi isso tudo. Na da Adélia, vi pessoas saindo chorando. E um dos grandes jornais brasileiros não tinha mandado repórter para cobrir. E aí quatro, cinco dias depois, fez uma matéria por insistência dos leitores, de ouvir dizer. Porque Adélia Prado não importa, importa menos que um autor estrangeiro. Isso é uma visão colonizada. Esse é um ponto. O segundo ponto é que as editoras investem um dinheiro razoável em determinados autores de fora – o que não é o caso de autores brasileiros –, fazem estratégias de marketing, então é claro que vai vender mais que os autores nacionais.

Bruno Dorigatti

Menino do Rio

“A palavra certa para definir o conjunto de narrativas enfeixadas em “Somos todos iguais nesta noite”, o novo livro de Marcelo Moutinho, é singularidade. As narrativas têm o ponto comum da lembrança afetiva, e partindo dela estabelecem relações com a realidade. Outro ponto importante é a presença de um subúrbio nostálgico, idealizado na mente do escritor e recriado através de sua lembrança, resgatando fatos julgados imprescindíveis para a formação de sua memória.

Marcelo Moutinho investe sobre a cidade. Esquadrinha a alma dos subúrbios cariocas à moda de um Ribeiro Couto. Soma à investigação um olhar cinematográfico um road movie do menino que no modelo de automóvel novo do pai acompanha a movimentação dos anônimos que cruzam seu caminho.

O lirismo bêbado de Moutinho não esquece dos clowns. E tampouco dos sonhadores. O pescador jogando sua tarrafa nas estrelas metaforiza nossa incessante busca através da vida de um sentido, e nele podemos enxergar a tarefa do escritor, mergulhado no irremediável de si mesmo.

“Rosa Noturna” e “Dedicatórias” são os dois pontos altos do livro. Ambos versam sobre a dissolução do humano e atravessam a própria crise que engendram para recriarem a si mesmos no ambiente inóspito de um futuro sem esperança. Marcelo Moutinho é franco como o próprio sorriso estampado em sua fotografia. E cada conto de seu livro é este mesmo sorriso, em todas as possibilidades e significados. E por cada sorriso passeia uma imagem do Rio, um enigma. Basta entrarmos para começarmos a decifrá-lo”.
Mariel Reis

Memórias e noites: o livro de contos de Marcelo Moutinho

 “O livro de contos Somos todos iguais nesta noite, de Marcelo Moutinho, se destaca pela delicadeza extraída a partir de situações aparentemente banais, sobretudo na primeira parte, “Iguais”. Neste conjunto, é possível perceber elementos de uma memória social que pontuam cada um dos contos, lembrando, em muitos momentos, trabalhos acadêmicos como Memória e sociedade, de Ecléa Bosi. Convém destacar que o livro de contos não somente resgata, mas partilha com o leitor; o título (tirado de uma canção, creio eu), muito feliz, nos envolve na construção das tramas: “somos todos iguais…”. Na segunda parte, “Noites”, há um pouco do elemento fantástico, algo do realismo mágico, porém sobressai temas que muitas vezes, são ou foram agregados ao mito da “noite”, como, por exemplo, a solidão, o mistério, entre outros. Tal título, da segunda parte, não agrega uma experiência singular, antes diversifica. A singularidade ocorre no termo “nesta”, no título do livro, momento único em que autor e leitores agregam-se sob o manto indefinido da memória e do noturno. O melhor conto do livro que traduz todas essas possibilidades aqui destacadas, em minha opinião, é “Rosa noturna”. Também gostaria de pontuar o conto “Desfile”, não somente pelo tema do carnaval (e sobre carnaval e literatura temos pouco), mas principalmente pela construção dos diálogos, que permitiu uma fusão entre forma e conteúdo bem elaborada. Quem acompanha o trabalho de Marcelo Moutinho percebe o crescimento e o amadurecimento literário em Somos todos iguais nesta noite.”
Marcelo Alves

Sobre as coisas simples da vida

“O desejo de encontrar um grande amor, a alegria de comprar um carro novo ou de ganhar um livro, as dificuldades da aposentadoria e a dor do fim de um romance, a ânsia de conhecer um ídolo ou a responsabilidade de organizar um desfile de escola de samba. Em seu segundo livro de contos, Somos iguais nesta noite, Marcelo Moutinho trata dessas situações que parecem íntimas de todos nós, mesmo que não as tenhamos vivido. Intercalando contos e mini-contos, o autor vai aos poucos compondo um universo tão familiar que se torna poético, e justamente o que há de poético nessa aproximação excessiva gera uma espécie de movimento contrário, um afastamento, como se as coisas familiares demais guardassem certos segredos. Ou como o personagem que, em “Da profundeza do azul”, afirma poder ver o mar de sua janela, ainda que todos saibam que o conjugado em que vive não dá vista para a praia.

O livro está dividido em duas partes, “Iguais” e “Noites”. Ainda que não haja diferenças significativas entre ambas, a organização dos contos segue uma lógica interessante. Na primeira parte, “Iguais”, estão mais presentes temas mais singelos e mais alegres. São bem freqüentes, por exemplo, as histórias sobre crianças, cuja leveza marca, sobretudo, uma postura de certa maneira esperançosa, e até mesmo carinhosa. Já na segunda parte a “noite” cresce, prevalecendo temas adultos e personagens mais noturnos. A amargura então se torna latente nas variadíssimas situações que se vão desenvolvendo, numa progressão que se estende até ápice no último conto, homônimo do livro.

Nessa segunda parte estão certamente os melhores contos, como “Da profundeza do azul” e “Sexta-feira de cinzas” – cujos próprios nomes já sugerem a melancolia de que se revestem. Essa melancolia, porém, longe de marcar alguma desesperança, traduz uma espécie de amor para com a humanidade, como se, com todas as suas tristezas e dificuldades, ainda houvesse no homem algo que vale a pena cultivar. Esse algo, que se vai delineando ao longo da leitura das histórias, é precisamente a poesia. Não a complexa e rebuscada, mas a que transparece numa rosa recebida ao acaso após uma dura noite de trabalho. Essa poesia, a das coisas simples da vida, perpassa o livro por inteiro e lhe dá o tom. É ela, afinal, que nos faz todos iguais.”

Victoria Saramago

“Não sei porque vivo com essa mania de recordação, recordação…lembrança até quando é boa, dói”, afirma a personagem de “Desfile”, um dos contos do ótimo livro do jovem escritor Marcelo Moutinho, uma das boas revelações da literatura feita no Rio de Janeiro nos últimos anos.

Marcelo já havia publicado “Memórias dos barcos” (“7Letras”, em 2001) e organizado e participado de algumas coletâneas. Criado no subúrbio carioca de Madureira, “entre a Carvalho de Souza e a Dagmar da Fonseca”, coração do bairro, o autor, que hoje mora no Jardim Botânico, zona sul do Rio, faz da saudade do subúrbio um dos seus temas preferidos nos dois livros. Sem ser piegas, ele mostra o que a região tem de melhor, mesmo nos tempos violentos e estressantes de hoje.

Sua visão, quase sempre, é a da criança, e neste caso ele desenvolve ao máximo o lado lúdico da infância, o mundo todo próprio que as crianças constroem e que hoje, com tanto apelo à falta de ingenuidade, vai se perdendo. Isso acontece em “Jujuba verde”, “Dia de festa”, “Noites” e no conto que abre o livro, “Passeio em família”, quando a estréia do carro novo do pai vira uma grande festa. Um pequeno trauma dá o toque dramático à história, recheada de observações singulares sobre o pai. “Eu não podia entender como podia preferir cerveja, aquela bebida amarga, a churros.”

“Dedicatórias” traz uma estrutura toda especial, na qual um relacionamento amoroso é contado através das dedicatórias dos livros que os namorados trocam entre si. Mário Quintana, Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e outros escritores acabam assumindo o papel de coadjuvantes neste conto em que o autor mostra que para ser criativo e original não é preciso desenvolver “inovações” de caráter altamente duvidoso, como escrever parágrafos inteiros sem pontuação ou apenas com letras minúsculas. Outra estrutura interessante se encontra no conto “Desfile”, em que os prazos apertados de uma costureira de escola de samba são narrados em capítulo nomeados pelas alas de uma escola.

O conto que dá título ao livro (que também é uma música de Ivan Lins e Vitor Martins) se passa numa mesa de bar, este ambiente perfeito para se observar caracteres e criar personagens. “Quem senta nos bancos ao redor do balcão de um bar é sempre a solidão”. Entre figuras decadentes e solitárias, está o Rapaz, que quase não fala, toma oito long-necks todas as noites e desperta a curiosidade dos freqüentadores, que um dia resolvem segui-lo após a saída do bar. O que eles descobrem não tem nada de extravagante, mas é profundamente revelador – como nos demais contos do autor, que em nenhum momento seguem a linha da grande revelação no final.

“Rosa noturna”, que mostra a rotina de um travesti no bairro da Glória, destoa um pouco dos outros contos, mas nem por isso perde a qualidade. A ânsia de Teresa em “ganhar a noite” e pagar as dívidas é o mergulho numa vida de imprevistos arriscados. A linguagem é explícita, porém longe de ser chula, mesmo quando entra em detalhes impregnados nos quartos de hotel. “Faço de tudo, amor. Menos beijar na boca”. A surpresa positiva com um cliente dá o toque redentor àquela vida difícil. “Hora de ir para casa: a noite estava ganha”.

Entre diversos minicontos que sempre trazem algum momento de reflexão (“Ignoravam que chorar é um fato, não uma opção”), a história que melhor sintetiza o estilo de Marcelo Moutinho, a meu ver, é “Da profundeza do azul”, em que o autor narra a despedida do trabalho de um funcionário prestes a se aposentar. “A velhice chega assim, sem aviso, sem fanfarras, sem eventos, num olhar banal lançado ao espelho do banheiro para conferir a barba antes de sair”. A euforia do início dá lugar à melancolia do final, quando um pequeno espelho no meio de uma selva de pedra cheia de antenas parabólicas, roupas dependuras e aparelhos de ar-refrigerado reflete um mínimo de vida.”

André Luís Mansur

Francisco Bosco


“Descobri, com surpresa, que você é uma mistura de poeta parnasiano com Wong Kar Wai! Brincadeiras à parte, digo isso porque você tem uma habilidade especial quanto às ‘chaves de ouro’: seus contos quase sempre dirigem-se a um final imprevisto, que os reorganiza retrospectivamente e provoca no leitor um pequeno e delicioso susto. É assim logo no conto de abertura, em que aquele tapa traumático continua ardendo, muitos anos depois, como os membros mutilados, dizem, no corpo daqueles que os perderam. É assim no ótimo e mametiano ‘Fogos’, em que compartilhamos com você o prazer meio masoquista de tirar a carta mais sustentadora de um castelo tão minuciosamente montado quanto abruptamente derrubado. É assim, ainda, em ‘Dia de festa’ (um de meus preferidos), quando a parede pintada é o ‘correlato objetivo’ (Eliot) exato e contundente de uma pequena catástrofe afetiva.  esse final, especialmente, me emociona. Mas todas essas torções finais estão ligadas à questão do instante: é sempre um instante que as causa. Daí eu ter brincado com o Kar Wai, pois no cinema deste há sempre um instante em que as coisas poderiam ter acontecido, e tudo se realizaria; mas não: esse instante é deceptivo – os personagens quase esbarram um no outro, porém sem se tocar, em câmara lenta – e engendra toda uma série de desacontecimentos. Qm seus contos, entretanto, o instante é iluminador, e não dissolvedor do mundo. De resto, não sei se você conhece a conferência em que Borges, citando Montaigne (‘não leio nada sem alegria’), afirma que ‘a literatura é uma forma de felicidade, e que a felicidade não deve requerer esforço’ (por isso, ele prossegue, ‘considero Joyce um escritor fracassado’). Não vou entrar propriamente no problema, imenso, como vc deve saber, quero só sublinhar a legibilidade de seus textos, que nunca criam resistência à leitura, sem deixar, entretanto, de buscar surpreender o leitor. Talvez, Marcelo, você devesse dar a essa plena legibilidade uma dose de estranheza um pouco maior; digo isso só porque o conto que mais gosto em todo o seu livro é aquele a partir de Iberê: nele, a legibilidade é envenenada, desde dentro, por um inapreensível, um irreconhecível. Exatamente como na figuração espectral do último Iberê, a legibilidade, sem deixar de ser legível, consegue captar um certo ilegível, irrepresentável. Enfim, talvez a economia de sua escrita ganhasse em radicalidade nessa direção. Tenho que dizer ainda que gosto muito da idéia da alternância entre os contos curtos e os pequenos flashes: dá ritmo à leitura. Parabéns e grande abraço”.

Vinícius Jatobá
“Li seu livro ontem. Achei ele ótimo, do começo ao fim. Ao que parece vou ficar com Irajá e Madureira apenas para mim enquanto território ficcional, mas o que você está criando é uma literatura muito diferente daquela escrita por nossa geração. Essa estória de geração é uma bobagem, diria que diferente do que se publica hoje no país. É claro que há uma aproximação com aquilo que a Lisboa faz, senti isso em cada pequena linha, e também creio que você bebeu mais nos bons cronistas do que nos contistas de nosso passado. É uma pena que jornais não contratem mais cronistas, porque você certamente possui o talento para dar belos textos breves à nossa cidade maltratada. Por uma questão óbvia tenho me eximido esses anos todos de escrever sobre autores brasileiros, e me dói não escrever sobre gente como Figueiredo, Bracher ou até Mirisola; acho que poderia contribuir de alguma forma com minhas leituras, mas a política é pesada e prefiro escrever sobre literatura estrangeira, assim fico longe de problemas e pressões. E me dói não poder escrever nada sobre seu livro, porque ele é um ponto luminoso na prosa nacional hoje: um pequeno tomo que aponta o possível retorno do breve e cotidiano e desimportante como tema de livros. Os escritores pararam de se dedicar à vida de todos; é isso que seu livro parece apontar. Acho apenas que você pode mais, pode extrair mais de muitas situações que você cria. Acho que irá apreciar sobremaneira a literatura da canadense Alice Munro. Ela escreve sobre coisas banais e delas retira tudo, tudo: só fica o bagaço. Mas você é novo, a própria Munro só publicou o primeiro livro dela com 39 anos, então o que está fazendo hoje já é muito, bastante. Mas não pare. Continue.”

Márcia Novaes
“Seu livrinho (carinhosamente falando) é um falso-magro. Na verdade é um livrão. Não me espantei totalmente ao lê-lo porque já li seus outros dois livros e diversos contos em antologias e sei que você escreve muitíssimo bem mas, convenhamos, lhe daria a grande revelação do ano. Seu livro é amplo como um mundo que se expõe. E se reparte, multiplica, apresenta diversas visões como se espelhado fosse. Escolher um conto específico que tenha mais gostado é impossível. Senti a mão queimando na coxa direita e me lembrei do fusca azul anil em que minha própria família viajava para acampar em Cabo Frio ou visitar os avós em B.H. Um conto com gosto de ar no rosto.

‘Jujuba Verde’ eu já conhecia pois havia escutado de sua própria voz naquele encontro no teatro em Ipanema em uma noite de chuva onde várias pessoas leram seus textos. Lendo-o pela primeira vez me pareceu mais denso, mais emotivo, mais expectativa (minha e da menina, pela vida).

‘Desfile’ foi muito interessante. Sentia pelas linhas toda a movimentação, a correria pela preparação pela hora da largada, a ansiedade, mais uma vez a expectativa, era visual puro. Os diálogos, então, simplesmente perfeitos. ‘Dia de festa’ me fez quase colocar as mãos na cabeça quando Fabinho corre na expectativa, na voracidade de ver as marcações. Era como se eu o visse, correndo por uma escada, pulando dois em dois degraus para chegar mais rápido. ‘Rosa noturna’ é estupendo. Engraçado, trágico, romântico e cheio de esperança. Nunca havia lido um conto como esse, que misturasse tantos ingredientes diferentes e não perdesse a delicadeza. ‘Menino no escuro’ eu já conhecia. Novamente o li e ratifiquei meu gostar.

‘Vermelho’ foi um tombo. Seis linhas que me fizeram parar, fechar o livro com os dedos marcando a página e fechar os olhos, sentindo um oceano brotando sob minhas pálpebras. ‘Da profundeza do azul’ teve, para mim, um gosto de nostalgia. Não me pergunte por quê… ainda não descobri.

‘Dedicatórias’ foi uma delícia de referências maravilhosas dadas de mão beijada para quem procura por um bom itinerário. Felicidade em ver livros e autores que me encantam, ali personificados quase. Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Fernando Pessoa, Vinicius e João A. Carrascoza… Que timão! De todos eu sentia a sua escrita, uma mistura de carnes, estilos, cortes, delicadezas, precipícios, ensimesmamentos, sutilezas. ‘Dias Raros’ é belíssimo…você já leu ‘Duas tardes’? E os infanto-juvenis? Ontem comprei três desse Carrascoza danado de bom, direcionados para crianças e adolescentes, mas como não acredito que boa literatura seja estanque, compartimentada por idade, estão aqui na fila de livros a serem lidos ao lado da cama. Enfim, ‘Dedicatórias’, para mim, foi como uma declaração à Arte, à Vida, à Escrita.

‘Fragmentos de um espelho partido’ me tocou – novamente – fundo (tenho seus livros pela 7 Letras e reencontrar seus contos é um reencontro de antigos amigos). ‘Somos todos iguais nesta noite’ me soou como se fosse a Crônica das crônicas, a grande mãe de todos os observadores, o imenso coração que bate em todos nós. Como se estivéssemos em rede, interligados, conectados ao mesmo tempo de vida, diferentes porém iguais nessa cumplicidade que é o sentir. É isso, meu caro amigo Moutinho, se é que posso chamá-lo de amigo mesmo nunca tendo conversado muito ou trocado muitas idéias… acredito que posso já que ninguém que não seja um grande amigo traz tanta coisa boa, sincera e bonita para alguém. Parabéns pelo livrão, seja feliz com seu amor e inspirado, sempre, para nos abençoar com tanta gentileza.”

Ieda Magri
“Acabei de ler o livro. aAinda estou meio anoitecida e só quero adiantar esse bichão que se instalou aqui dentro. Tenho que discordar de Adriana Lisboa: não posso escolher o melhor conto entre ‘Rosa noturna’, ‘Da profundeza do azul’ e ‘Somos todos iguais nesta noite’. Aliás, o livro não tem nenhum buraquinho. Todos os contos são o melhor. Difícil fazer livro assim, só de coisas boas, difícil manter o tom, difícil, enfim, alcançar profundidade. E os minicontos, visualmente, pareciam a pausa pra tomar respiro antes de novo mergulho: que nada! Uma Atlântida… Um beijo e obrigada por esse mergulho!”

Lúcia Bettencourt
“Adorei o seu livro. Mal recebi a sua dedicatória e subi para jantar lá em cima. Só que o que devorei mesmo foram os seus contos. Excelentes. (…) Estou de corrida, fazendo as malas. Mas volto a te escrever. Só queria que você soubesse que seus contos foram fundo nas minhas próprias experiências: sangraram.” 

Raimundo Carrero

“Em princípio, agrada-me muito o equilíbrio estético de seu livro, algo que parece desprezado hoje pela maioria dos escritores brasileiros. Não é que deva ser linear ou harmônica, mas até o caótico tem uma ordem. Tem uma severa ordem interna. E seu livro logo ressalta sua força justa pela maneira como está organizado intimamente. O conto “Somos todos iguais nesta noite” é todo uma peça de exatidão e de beleza, na busca deste desconhecido, que termina sendo mesmo a dor de todos nós. Ali, o que vai se curvando na noite são todos os nossos fracassos e as notas vitórias, toda a angústia de carregar nos ombros a angústia de viver. É um conto antológico. No entanto, há um conto que me agrada particularmente,- além daquelas histórias breves, que parecem dividir o livro em momentos, quadros, seqüências, sei lá – : o primeiro – “Passeio em família”. Sei que isso pode parecer que não tem nada com literatura. Mas lembro-me de uma palmada que dei no meu filho – Rodrigo – quando era menino: não passou nunca mais. Não me perdôo. Pois é: não sarou. Guarde este segredo, camarada: você á um baita escritor”.

Luiz Ruffato

“Estava em viagem, Curitiba, e só cheguei hoje pela manhã – e seus livros foram companhia agradabilíssima. Sim, li ambos os livros e gostei muito. Em “Somos todos iguais nesta noite”, fica evidente a sua capacidade de fabulação e uma criatividade rara. Eu gosto muito da força de seus contos sobre a infância (nesse sentido, “Dia de festa” ou “Passeio em família” são memoráveis) e da novas possibilidades que você encontra na ficção, como em “Dedicatórias”. E a idéia de entremear o livro com minicontos, que funcionam como uma espécie de comentários aos contos mais longos, é genial.

“Memória dos barcos” também é um livro magnífico. Adoro essa prosa que extrapola conceitos – a poesia encharcando a prosa, como, por exemplo, no conto homônimo. Enfim, seus livros me acompanharam e continuarão ecoando, porque trata-se de pedaços da vida.”

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