Franz Kafka, certa vez, definiu o conto como uma gaiola que sai à procura de um pássaro. A citação, apesar do seu caráter anedótico, guarda um significado profundo sobre esse gênero tão debatido e estudado que é o conto.

Eu, particularmente, nunca fui fã dessa definição, e tendo mais a concordar com a de Ricardo Piglia, nas suas Teses Sobre o Conto, de que um conto sempre narra duas histórias. Jamais imaginaria, porém, encontrar o exemplo perfeito para a fala de Kafka em Rua de Dentro, o mais recente livro de contos do carioca Marcelo Moutinho, que acaba de ser lançado pela Record.

Apesar de não serem nem um pouco kafkianos, os treze contos de Rua de Dentro dão continuidade ao estilo e aos temas que o autor vinha explorando no seu livro anterior, Ferrugem (Record, 2016 – vencedor do Prêmio Clarice Lispector/Biblioteca Nacional de 2017), criando histórias do cotidiano de um Rio de Janeiro alheias a tudo pelo que a cidade é conhecida. Os personagens de Moutinho são gente anônima, com a qual se cruza todo dia, mas que fazem parte dessa metrópole, por mais que não percebam (ou sejam percebidas).

Sua escrita veloz e alheia a qualquer excesso faz um trabalho ótimo de caracterização de seus protagonistas e locais: em poucas linhas já estamos naquele pequeno universo privado, na intimidade daquelas pessoas. Isso bastaria para recomendar esse livro, mas é na estrutura dos conflitos que os contos ganham seu brilho.

Seja na história da mulher transexual Camile, em Purpurina, no relato da mulher que caminha para o cartório antes da padaria abrir, em Um Dia Qualquer, ou num lance perigoso de uma partida histórica de futebol, em Oxê, Moutinho segue uma estrutura de construção narrativa que, mesmo sendo semelhante, nos pega de surpresa em cada uma das histórias.

Ao narrar o cotidiano dessas personagens extremamente comuns, o autor nos envolve numa história que não parece ter importância nenhuma a não ser para quem as vive. Como se você narrasse para alguém como foi sua quarta-feira da semana passada. As chances de que nada de notável tenha acontecido são grandes. Mas talvez exista algo ali, algo por trás que você não enxerga, ou que está tão acostumado a ver que não enxerga seu real impacto e significância.

É a história da gaiola que sai atrás do pássaro, e Moutinho faz ótimo uso dela. Seus contos são verdadeiras gaiolas em busca de uma história arredia; um drama ou uma comédia que se esconde por trás dessas vidas que julgamos desinteressantes ao ver as caras cansadas de seus narradores. Mas o pássaro está lá em algum lugar, basta procurar.

Por vezes, os contos conseguem aprisionar essa história maior e colocá-la sob os holofotes, como no já citado Oxê, e em Militante, onde uma mulher desacreditada com a política faz bicos em campanhas eleitorais.

Em outras, os contos conseguem apenas tocar o pássaro de leve, esbarrando na história verdadeira apenas por tempo suficiente de nos mostrar o que de fato está em jogo. É o caso de Retrós e Linhas, um dos contos mais belos do livro, e de Cheiro, ambos explorando dinâmicas de casais conflituosos.

Mas às vezes, como em Vanessa (meu conto favorito do livro), esse pássaro acaba sendo grande demais para a gaiola, e parece ser ele a caçá-la, atravessando a narração com tanta fúria que estoura as barras e segue seu caminho, nos deixando apenas os destroços como prova de que algo maior passou por ali. E não é qualquer um que consegue fazer isso.