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- Editora Record
- 2020
- ISBN 9788501118592
- Capa Tipo Brochura
- 128 Páginas
A paisagem do Rio de Janeiro emerge como uma personagem onipresente – ora principal, ora secundária – nos 13 contos que compõem, feito um mosaico, o livro “Rua de dentro” (Record), do escritor Marcelo Moutinho. Mas não espere os cartões postais mais conhecidos do país, os grandes acontecimentos e nem tampouco experimentalismos formais. A escrita de Moutinho é traçada artesanalmente nos detalhes, com uma beleza lírica sem pressa em se revelar. É transitando entre a poesia e a aspereza de ruas e esquinas ordinárias que formam o cenário urbano do subúrbio carioca, uma geografia familiar a esse escritor de Madureira, que Moutinho encontra a sua matéria-prima; homens e mulheres periféricos, que vivem à margem, e amam e sonham e se desiludem, como qualquer um. São pequenos encontros em meio a uma série de desencontros e a constatação de que a “felicidade sempre teima por acabar”.
Ao descrever pequenos fragmentos do cotidiano, por vezes, um mero instante, Moutinho trata em suas narrativas breves de pessoas e famílias, mas não a tradicional família brasileira. Há também casais separados, amores perdidos, transexuais, lésbicas e gays que vivem à sombra, temerosos de que seus desejos mais íntimos sejam descobertos. O autor nem sempre revela a identidade de suas personagens. De algumas, ele guarda o anonimato, amplificando apenas seus dramas, suas dores e perdas.
“Purpurina”, conto ambientado em Oswaldo Cruz que abre o livro, retrata pelos olhos de uma jovem trans, que se divide entre a prostituição e a faculdade de Direito, a vida das travestis da Zona Norte. Ao som de Maria Bethânia e nas noites abafadas do bairro, Moutinho vai pouco a pouco apresentando as transformações do corpo, os códigos das ruas e as constantes humilhações de uma parcela da população que, como reflete a narradora, “está invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados.”
Na sequência, em “Um dia qualquer”, o escritor conduz o leitor a um passeio quase cinematográfico por logradouros típicos da paisagem urbana carioca, numa sequência de cenas corriqueiras que remetem imediatamente às tais ruas de dentro a que o título da obra se refere. Acompanha-se a rotina da padaria de Seu Risério, cujas portas de ferro “se levantam as sete, como ontem, anteontem, semana passada”. É possível seguir o vai e vem das jovens em seus uniformes escolares, flagrar os camelôs montando logo cedo seus pequenos comércios ilegais e sentir também o aroma de maracujá, manga e caju das lojas locais de sucos.
“Oxê”, por sua vez, é um conto talhado na claustrofobia do desejo amordaçado. O cenário é o jogo da Seleção Brasileira durante a histórica derrota para a Alemanha na Copa do Brasil. No campo, o zagueiro Betão é xingado pela torcida atônita com a goleada. Na arquibancada, um dos seguranças da partida vive um dilema. Proibido de se voltar para o campo para assim manter a atenção nos torcedores mais aviltados, o vigilante, que vive um caso amoroso secreto com o jogador de futebol, enfrenta sozinho toda a sua angústia.
Em outras narrativas, o leitor ainda se depara com a amizade entre dois meninos, que, morando na mesma cidade, vivem em mundos e geografias desconectados, a senhora maltrapilha, alvo de comentários mordazes, que almoça invariavelmente no mesmo restaurante a quilo, e a corrida de táxi que subitamente evoca memórias do passado. Há ainda uma visita um tanto constrangedora do ex-marido a sua ex-mulher, que convivem como “dois adultos civilizados”, e a “militante” sem apego ideológico que empunha a bandeira de candidatos eleitorais apenas na esperança de conseguir pagar as contas do mês.
Como diz o texto de orelha, assinado pela ensaísta e escritora Maria Esther Maciel, Marcelo Moutinho tece, em “Rua de dentro”, “não uma mera recolha de contos, mas uma costura orgânica de histórias sobre diferentes vidas periféricas, sobre pessoas em estado de exclusão (…) E, dessas existências aparentemente ordinárias, o autor extrai uma grandeza extraordinária, capaz de remexer, também, as estruturas de quem entra no livro.”
“Saí de casa três anos depois daquela noite do aniversário da Cláudia. Entre o tapa e o dia em que enfim fiz a mala, mantive o foco em terminar o ensino médio, com escapadas esparsas para brincar de crossdresser com colegas do bairro. Combinávamos por meio de uma sala de bate-papo na internet. Depois nos encontrávamos num prédio abandonado em Piedade, para nos montarmos, trocando roupas e apetrechos. Mas nunca rolou sexo com ninguém do grupo. Minha primeira vez foi ainda no corpo de homem. Uma merda. À medida que novas experiências vieram, fui aprendendo a relaxar, a usar direito o lubrificante, a perder a vergonha. O prazer se apartou da dor pra ser só prazer.
— Travesti é igual purpurina, brilha e incomoda — me disse a Luana numa noite de pista na Lapa. Com o passar dos anos, entendi que a gente está invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados. Da alegria, talvez.”
Se, como já escreveu Carlos Drummond de Andrade, cada cidade tem sua linguagem nas dobras da cidade transparente, Marcelo Moutinho mostra, nos 13 contos deste admirável Rua de dentro, que essa é a verdadeira linguagem que define a cidade do Rio de Janeiro. Daí ele se desviar dos clichês da cidade maravilhosa para privilegiar os espaços menos glamourizados que a constituem, detendo-se nas agruras, complexidades e delícias do cotidiano das pessoas comuns que nela vivem.
Com desenvoltura narrativa e notável habilidade na caracterização das personagens, Moutinho consegue extrair da realidade mais prosaica da vida carioca um lirismo que subverte a própria crueza que nela subjaz. As experiências mais corriqueiras são, nesse sentido, convertidas em pequenos assombros e epifanias, graças a um olhar incisivo que não prescinde da força dos afetos. Tudo, com densidade e leveza, ao mesmo tempo.
Não se trata de uma mera recolha de contos, mas de uma costura orgânica de histórias sobre diferentes vidas periféricas, sobre pessoas em estado de exclusão. Meninas e meninos em plena descoberta do mundo, travestis às voltas com a intolerância familiar e a solidariedade de seus pares, empregados de supermercados, cabos eleitorais que dependem do ínfimo pagamento pelos seus serviços sem convicção ideológica, casais em ruptura conjugal, garçons, torcedores e jogadores de futebol, uma costureira ciente de seu ofício, entre diferentes outros tipos, compõem a paisagem humana das narrativas. E, dessas vidas ordinárias, o autor extrai uma grandeza extraordinária, capaz de remexer, também, as estruturas de quem entra no livro.
Um livro de grande vitalidade, que desvenda, com sutileza e sensibilidade social, as dobras da vida ao redor.
Maria Esther Maciel
Difícil, em tempos atuais, declarar-se um amante do Rio: água contaminada, violência, desmandos, desprezo dos dirigentes por tudo que agrada aos cariocas. Situações que os habitantes podem contribuir para modificar, afinal as eleições estão aí.
Como mesmo assim o escritor é um amante da cidade, trata de outras dores menos conjunturais. É da desigualdade que vai além dos abismos entre o morro e asfalto, do cotidiano polarizado entre as famílias, das dificuldades em cruzar a cidade, da intolerância diante de opções do uso do corpo, do gênero, do sexo, que “A rua de dentro” trata. A intolerância religiosa, a exclusão social ou familiar, a dificuldade de ser jovem entre grupos conservadores, o cotidiano de gays, lésbicas, LGBTS+ fazem com que momentos que deveriam ser simples, como uma viagem de táxi pela cidade ou um jantar em família, possam se transformar em conflito.
Os contos se iniciam pelo sintomático “Purpurina” com a experiência de exclusão do jovem que se transforma na trans e vai circular pela Lapa, Centro, entornos da Glória, descobrindo a solidariedade das companheiras até o reconhecimento emocionado do pai diante da carteira de advogada de Camile, que nasceu Gustavo.
Em “Um dia qualquer”, um homem comum atravessa o centro carregando uma dor profunda e espalha o sofrimento pelas ruas: “Buzina, bordões de venda, o apito do guarda de trânsito. Um cachorro lambe a quentinha que o mendigo acabou de comer, refestela-se com os restos de feijão, enquanto seu dono dorme sobre duas folhas de jornal. A normalidade, por alguns segundos, se revela insuportável”.
São travessias diversas até chegar a “Vanessa”, comovente numa quase secura: a jovem de Lins de Vasconcelos que sonha estudar odontologia e abrir um consultório no Méier, mas que do colégio estadual à casa passa por uma troca de tiros e, infelizmente…
Atenção, Moutinho não fala pelos outros, mas ficcionaliza as histórias que nos mostra, chegando a usar o discurso em primeira pessoa quando essa pessoalidade dá impulso à narrativa.
Na praça sob o viaduto, no restaurante a quilo que lembra os aposentados de Copacabana, no irritante engarrafamento do centro, no estádio de futebol, nas casas de subúrbio ou de comunidades, os contos vão atravessando o que Bruno Carvalho, jovem professor de Harvard e estudioso de cultura urbana, apontou em seu recente “Cidade porosa: dois séculos de história cultural do Rio de Janeiro” . Porosidade, para ele “tem a ver com trânsito, circulação, fronteiras fluidas”.
Na reflexão teórica de Bruno, como nos contos de Marcelo Moutinho, para compreender a cidade é preciso observar espaços que nem sempre enxergamos como pertencentes à ela. Na falta de identificação com o que o poder público nomeia como nação, estado da federação ou município, a identidade dos habitantes, cada vez mais, se constrói pela territorialidade, pelo espaço de trocas e circulação.
Para Carvalho, nesse momento histórico “de desilusão, brutalidade e aparente esgarçamento do tecido social”, é ainda mais importante “ressaltar o protagonismo de grupos marginalizados e a recorrência de mediadores culturais na vida da cidade”. O escritor pode ser um desses importantes mediadores.
Importante observar que os contos de Moutinho adotam uma linguagem que em muito se aproxima da crônica, gênero tão nosso, que partilha com o leitor certa intimidade, espécie de vizinhança, conduzindo quem lê pela mão, caminhando junto. Da cidade maravilhosa à cidade partida, atravessamos juntos o Rio em tempos de decadência de valores, direitos e ideais.
Percorrendo com sensibilidade becos e encruzilhadas talvez possamos, quem sabe, chegar aos caminhos do afeto nesse Rio de Janeiro que já foi de São Sebastião ou Oxóssi.
Marcelo Moutinho revela o discreto charme dos irrelevantes
Escritor lança o livro de contos ‘Rua de dentro’, com 13 histórias
Ubiratan Brasil
Marcelo Moutinho é um escritor com olhar aguçado – enquanto a maioria das pessoas concentra o olhar nas belezas naturais da cidade do Rio de Janeiro, ele, nascido e criado em Madureira, busca as áreas menos privilegiadas, onde vivem personagens comuns, às vezes vivendo à margem, quase na invisibilidade social. É ali em que ele busca inspiração para histórias banais, mas extremamente humanas. É o que se observa em seu novo livro de contos, Rua de Dentro (Record), que ele lança nesta terça (04), em São Paulo, na Livraria da Travessa.
São 13 histórias curtas que privilegiam os detalhes, cuja beleza lírica se revela lentamente. Afinal, seus personagens não despertam imediata atenção, mas, à medida que se conhecem seus sonhos e asperezas, a identificação se solidifica. Moutinho consegue provocar surpresas pela simples forma de utilizar as palavras – como no conto inicial, Purpurina. Sobre isso, respondeu as seguintes questões.
Qual a relação que esse livro tem com o anterior, Ferrugem, que também apresenta o cotidiano de personagens pouco representados na literatura brasileira contemporânea?
As duas obras se aproximam na perspectiva de reunir histórias situadas no universo da classe média baixa, buscando dar protagonismo a personagens que em geral aparecem como coadjuvantes. A cobradora de ônibus, a senhora que almoça todos os dias no mesmo restaurante de comida a quilo, a costureira, o motorista de táxi… Tanto Ferrugem quanto Rua de Dentro trazem indivíduos de existências aparentemente ordinárias, mas a tentativa é de iluminar a potência de suas vidas, para além dos escaninhos limitadores aos quais os estamentos populares costumam ser relegados: o da violência e o da falta de recursos.
No novo livro, trabalho mais fortemente o impacto que a experiência coletiva é capaz de provocar na esfera íntima. As ruas de dentro são aquelas que, a exemplo dos personagens do livro, não têm o glamour da vias principais. Mas são também as ruas que trazemos dentro de nós, como marcas do mundo.
As miudezas do dia a dia normalmente passam despercebidas ao nosso olhar. Para criar seus personagens, você faz qual tipo de pesquisa?
Meu maior campo de pesquisa é a rua. Walter Benjamin dizia que o escritor deve andar na cidade como se estivesse em uma selva. Ele se referia à necessidade de apurarmos os sentidos. Na selva, se você não fica absolutamente atento, a tendência é que pereça.
O espaço urbano, contudo, costuma provocar cegueira. Somos cegos de tanto vê-lo, como cantou o Caetano Veloso em O Estrangeiro. Quando a circulação pelas ruas se dá sob a premissa dessa atenção, conseguimos perceber o manancial de personagens, e ideias, e diálogos, que elas nos oferecem. É uma matéria bruta que serve de base, de inspiração, para o trabalho ficcional.
Você acredita que os personagens de seus contos são mais representativos do Rio de Janeiro? Ou teriam um aspecto mais nacional?
Na época em que eu morava em Madureira, via o Méier, bairro vizinho e igualmente suburbano, como uma espécie de Ipanema. Um lugar mais chique, mais valorizado. A relação periferia/centro se fazia presente, mesmo que no âmbito de um microcosmo. Nas diferentes cidades e bairros do País, isso também acontece, não é algo exclusivo do Rio de Janeiro.
Além disso, a exclusão familiar, a tentativa de normatização dos corpos e do desejo, a intolerância religiosa, os conflitos familiares, são temas que transcendem fronteiras estaduais. Assim como o próprio tipo de personagem que protagoniza o livro, oriundo da classe média baixa. O indivíduo que tem um emprego sem grande charme, trabalha para pagar as contas, toma sua cerveja depois do expediente. Que só quer ser feliz.
O conto é um gênero nem sempre bem compreendido – como explica sua atração por esse tipo de narrativa?
Mais que mal compreendido, o conto é um gênero maltratado dentro do universo literário brasileiro, das editoras às premiações. As exceções só confirmam a regra. Minha opção pelo conto se deve ao fato de que as histórias que imaginei até hoje pediam uma narrativa curta. E são elas que definem sua extensão. Não vou me forçar a escrever um romance porque o mercado assim o exige. Não escrevo ficção para agradar ao mercado.
Em todos os livros, no entanto, procuro certa organicidade. Eles não são um mero ajuntamento de contos, há sempre alguma lógica para o recorte, seja temática, seja de ambiência.
Você acredita que a literatura está dando conta da realidade de hoje, que é tão complexa e acelerada?
A realidade anda tão inverossímil que a literatura está tomando de 7 x 1, como o Brasil contra a Alemanha. Mas acredito, sim, que diante da lógica dual e simplista em vigor, os livros de ficção e de poesia podem trazer uma bem-vinda complexidade no olhar para o mundo. Fora do dogma e da certeza.
A amargura e o tédio são os grandes males contemporâneos?
Difícil não estar minimamente amargurado no atual momento político-social. E, de certa forma, Rua de Dentro é também uma reação a esse momento, ao trazer histórias que tratam de relações homo-afetivas, que se passam no espaço da favela, que mostram as cruéis consequências do machismo e da homofobia na vida das pessoas. São temas incômodos para parte da sociedade brasileira.
Voltando à sua pergunta, talvez um dos grandes problemas contemporâneos seja o mal-estar que nasce do cotejo com a vida alheia. Vidas editadas, diga-se. O sujeito olha para a persona virtual do outro e se sente menor, menos antenado, menos divertido. Aquela alegria de tinta guache não resiste a um escrutínio mais detido, mas é suficiente para causar angústia.
Seus contos têm uma melancolia discreta?
Acho que sim. Talvez porque não acredite nessa alegria compulsória e sem meios-tons que tanto sucesso faz hoje. Como grande fã do gênero, lembro-me dos versos de Vinicius de Moraes e Baden Powell: “O samba é tristeza que balança”. Esse aparente paradoxo está muito próximo do que é a vida da gente. E, como busco uma literatura próxima da vida da gente, a melancolia faz parte dela.
Moutinho e as cores da vida miúda
Nelson Vasconcelos
Alvíssaras! Tem novo livro do Marcelo Moutinho chegando às boas casas do ramo. “Rua de dentro” (Ed. Record – R$ 39,90) reúne 13 contos curtos e muito, muito cariocas, como seu autor, nascido na carioquíssima Madureira e, até por isso mesmo, fiel benemérito do Império Serrano. Coisa fina.
Moutinho vem consolidando com louvor sua carreira de homem das letras numa cidade que sempre foi muito feliz em produzir escritores ocupados em explorar suas belezas e tristezas, doçuras e amarguras.
Além de marcar presença em inúmeras coletâneas, o escritor chega agora à marca de sete títulos seus, sempre bem recebidos. “Ferrugem” (Ed. Record, R$ 39,90) levou o Prêmio Clarice Lispector/Biblioteca Nacional de 2017, deferência que merece respeito nestes tempos tão complicados na hora de reconhecer seus heróis.
Como se vê na “Rua de dentro”, o carioca, nascido em 1972, continua à vontade perambulando pela cidade. Seus livros anteriores, como “Na dobra do dia” (2015) ou “A palavra ausente“ (2011), já sinalizavam essa facilidade para retratar, a seu modo, os personagens e cenários do Rio, que tem sofrido cada vez mais com uma infame imobilidade por parte dos seus moradores.
Mais que isso, Moutinho mostra grande sensibilidade para ouvir e interpretar as palavras não ditas, os silêncios e os olhares dos seus personagens. Numa cidade que esbanja sensualidade e adora mostrar-se gratuitamente, eis aí um talento incomum. Mesmo em seus diálogos com sotaque suburbano, Moutinho deixa de lado o humor fácil das ruas e faz fluir o lirismo que ainda povoa a alma encantadora das ruas, apesar dos pesares.
Os contos de “Rua de dentro” circulam pelos subúrbios e pelas vias periféricas dos bairros. Deixemos de lado a Zona Sul Maravilha para conhecer outras versões da história. Das histórias, melhor dizendo, porque são muitas. Ganham voz, nos contos de Moutinho, travestis, peladeiros, garçons, crianças, costureiras…
Seus personagens são mais vivos do que quando os encontramos nas ruas – e eis outro mérito de Moutinho, que é trazê-los da escuridão, deixá-los falar sem intimidação.
Já os enredos, tão verossímeis, são bem bolados, intrigantes, curiosos – como o do cabo eleitoral que decididamente só está trabalhando numa campanha para garantir uns minguados tostões. Os conflitos são reais – como nas histórias de preconceito, racismo, estupidez.
Empatia é uma palavra-chave para entender o olhar carinhoso de Moutinho pelos seus personagens, os merdunchos de que falava João Antõnio e tanto têm chamado a atenção da literatura carioca mais recente, com autores como André Luis Mansur, Luiz Antonio Simas e Raphael Vidal, entre outros. Assim como esses, Moutinho tem a manha de prestar atenção nas cores da vida miúda.
E o melhor: “Rua de dentro” será lançado sábado (01/02) na mais carioca das livrarias, a Folha Seca (Rua do Ouvidor 37, no Centro). Tudo tremendamente informal, com direito a muito samba, choro e até uma roda de jongo. Mais carioca, impossível.
Ficção delicada
Autores contemporâneos trazem para a literatura nacional histórias com personagens que nem sempre estão em primeiro plano
Nahima Maciel
A grandeza dos pequenos
Geraldo Pena
Em seu sexto livro, “Rua de dentro” (Record), Marcelo Moutinho volta seu olhar para personagens e paisagens menos visíveis da cidade: a mulher trans de Oswaldo Cruz que quer se tornar advogada; a velhinha que apalpa sua coleção de sacolas plásticas enquanto devora o almoço no restaurante a quilo; o menino “do asfalto” que sobe o morro para o aniversário do amigo da favela; a militante de aluguel que abana a bandeira política da ocasião, sonhando conseguir pagar os boletos. Mais do que mirar em personagens das margens, imersos em suas miudezas corriqueiras e na poesia que mora em suas “vidas comuns”, Moutinho reafirma a grandeza de outros pequenos: a dos contos. Neste livro, ele comprova e amplia um amadurecimento narrativo conquistado no título anterior, o premiado “Ferrugem” (Record) – as explicações oriundas do jornalismo, sua primeira formação, deram lugar a uma bem-vinda opacidade, e ela banha personagens e desfechos. O escritor mostra ainda que o conto, muitas vezes desprezado pelo mercado editorial e pela grande imprensa, é o gênero em que a literatura brasileira brilha mais forte – como o sol que acorda os subúrbios para suas maravilhas corriqueiras. Nesta entrevista, Moutinho fala da gênese de “Rua de dentro”, da vida por vezes vertida em ficção e dos projetos futuros.
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O título do livro parece jogar com um ambiguidade. ‘Rua de dentro’ é ao mesmo tempo uma rua que deriva de uma rua principal – esta geralmente uma fronteira entre duas regiões importante de um mesmo bairro – e também uma rua por dentro, isso é, uma cidade que infiltra as subjetividades. Além disso, a foto de capa atiça a memória com um piso de caquinho, típico de um quintal suburbano – que faz a extensão da rua nas casas e vice-versa. Acho que o início de conversa poderia ser por aí, das escolhas temáticas e de personagens que fazem deste livro uma obra sobre as bordas da cidade.
MARCELO MOUTINHO: Sim. No primeiro sentido, o título faz referência ao recorte feito quanto aos personagens do livro. Assim como em “Ferrugem”, meu trabalho anterior, os contos se passam majoritariamente no universo da classe média baixa, e buscam destacar personagens da cidade que costumam estar à sombra dos holofotes. Uma mulher trans que se divide entre a universidade e encontros sexuais nos quais defende algum dinheiro, a garota moradora do subúrbio que sonha ser dentista, o segurança de estádio de futebol, uma costureira… São as chamadas “pessoas comuns”, colocadas aí muitas aspas, inclusive porque a perspectiva de “Rua de dentro” é iluminar suas vidas para além dessa existência aparentemente ordinária. Quanto ao segundo sentido do título, lembro uma das epígrafes, versos de um poema do Ferreira Gullar que dizem: “A cidade está no homem / quase como a árvore voa / no pássaro que a deixa”. Porque, sim, a experiência da vida em sociedade deixa marcas íntimas em nós, as tais ruas “de dentro” que passam a nos constituir.
Como foi a pesquisa para o conto “Purpurina”? E como foi construindo as escolhas que tiram sua personagem principal de uma zona de estereótipos?
MOUTINHO: A pesquisa se baseou na leitura de estudos de antropologia urbana sobre a vida das mulheres trans que trabalham com a prostituição e também em entrevistas. Tenho amigas trans e conversei muito com elas, que chegaram a ler o conto depois de finalizado. A preocupação era fugir dessa zona de estereótipos, mas igualmente que a pesquisa não solapasse a história ficcional. Ao criar uma personagem dividida entre a rotina dos programas sexuais e da faculdade de Direito, busco enfocar tanto a questão da discriminação – que praticamente obriga a mulher trans a se prostituir, já que costuma vedar seu acesso a outros ofícios –, quanto a quebra dessa premissa, inclusive porque elas vêm, com muito esforço e coragem, e à revelia do péssimo tratamento que costumam receber da sociedade brasileira, enveredar por caminhos diferentes. Quero tratar com naturalidade uma mulher trans advogada, porque não deveria haver nada de estranho nisso.
Nos dois primeiros contos do livro, temos a forte presença de mães ausentes – protagonistas com mães mortas. Até que ponto isso ajudou na superação da morte de sua própria mãe, Margarida, que morreu de forma abrupta há 3 anos?
MOUTINHO: No conto “Purpurina”, a mãe aparece como a figura mais compreensiva, dentro do núcleo familiar, quanto à decisão do menino em transformar seu corpo. Porque em geral é assim mesmo. As reações mais violentas vêm do pai que, encapsulado em seu machismo, não admite que o filho ganhe formas de mulher e, pecado dos pecados, faça sexo com homens. A morte da mãe entra na história muito mais como um recurso dramático para destacar a relação pai-filha. No outro conto, “Um dia qualquer”, a alusão à partida trágica da minha mãe é consciente. No poema “Funeral blues”, diante da morte de uma pessoa querida, o Auden escreve: “Que parem os relógios, cale o telefone / jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais, / (…) Que os aviões, gemendo acima em alvoroço, / escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu”. É esse o desejo de quem enfrenta a dor da perda, mas as coisas não são assim. A padaria continua abrindo, os boletos chegam igualmente e, pior, é preciso resolver questões burocráticas em cartórios, funerárias, cemitérios. O conto fala um pouco desse sentimento, traduzido pelo narrador na expressão “normalidade insuportável”. Não sei dizer se escrevê-lo ajudou na superação da morte, até porque acho que a gente nunca supera totalmente a morte da mãe, ou do pai. O fazemos é tocar a vida à frente, porque não tem outro jeito.
A dupla seguinte de contos, “Memória da chuva” e “Militante”, também opera numa reversão de estereótipos, estes nascidos da visão uma esquerda bem intencionada e/ou elitista a respeito, respectivamente, da vida em uma favela, e do trabalho como “militante de aluguel”. O personagem das margens da cidade ainda é para você um desafio como escritor? E para nós, oriundos de uma classe média progressista, como cidadãos?
MOUTINHO: Todo personagem é um desafio, mas penso que uma das grandes capacidades do escritor de ficção é a de ser outro, ou outra, no corpo da história que narra. A pesquisa e as entrevistas podem ajudar muito nesse processo. Mas tão importante quanto elas é a vivência das ruas – e quando falo em rua, me refiro à cidade de forma ampla, em suas diferentes regiões, não apenas ao estreito do nosso bairro. O (filósofo) Walter Benjamin escreveu certa vez que o escritor deve andar pela cidade como se estivesse numa selva. Ele se referia à importância de aguçarmos os sentidos. Numa selva, caso isso não aconteça, possivelmente morreremos. Já no espaço urbano, muitas vezes desenvolvemos uma espécie de cegueira, anestesiados que estamos pelas mesmas paisagens, os mesmos estímulos. A observação do outro, sobretudo daquele que é diferente de nós, é fundamental para a criação literária. E a rua é o lugar onde a gente encontra o outro.
“Memória da chuva” condensa muito bem outras duas características do livro – o silêncio como “fala”, como informação, e os desfechos em aberto. Esse grau de opacidade, que deixa a narrativa sob uma espécie de névoa, foi a meu ver uma conquista de seu livro anterior, Ferrugem, radicalizada, no melhor dos sentidos, em Rua de dentro. Foi uma tarefa árdua se livrar da naturalidade explicativa do jornalismo?
MOUTINHO: “Rua de dentro” é meu sexto livro. Vivemos uma época em que a pressa impera, e o tempo da literatura é outro. Um autor vai sendo construído à medida que escreve seus livros, e sua voz ganha apuro. Então vejo essa marca apontada por você como algo que resulta de uma caminhada de quase vinte anos, nos quais algumas características foram ficando para atrás – entre elas o flerte com o modo de registro do jornalismo –, e outras foram surgindo. A “opacidade” acaba por dar maior participação ao leitor, ele pode completar os espaços vazios com sua própria experiência, com sua particularíssima fruição estética daquele conto. Se a luz é intensa demais, termina por solapar a zona de penumbra que busco no texto ficcional.
De maneiras muito distintas, os contos “Ocorrência”, “Cheiro”, “Retrós e linhas” e “Endless love” também falam de amor transformado em desamor. Esta dor é o terreno mais fértil da literatura, especialmente para as histórias curtas?
MOUTINHO: Não diria que é o “mais” fértil, mas é bastante. Para a literatura, não só nas narrativas curtas, e da arte em geral. Porque é uma dor demasiadamente humana e não raramente desabrocha em mágoa, outro campo muito fértil.
“Endless love” traz o personagem Vidal, enfermeiro gente boa e passional que escuta as agruras de um taxista enquanto tenta chegar a um almoço entre amigos no Largo da Prainha. Vidal parece uma homenagem enviesada ao também escritor Raphael Vidal, dono do bar e espaço cultural Casa Porto, que fica no Largo da Prainha. No seu processo criativo, como ocorre este tipo de apropriação e de travessia entre realidade e ficção?
MOUTINHO: Gosto de inserir locais da cidade real na cidade ficcional, de modo a transformar as duas numa coisa só. E também tenho buscado inscrever, no texto literário, alguns espaços de pertencimento, como a mencionada Casa Porto. É uma forma de mapear a cidade para além dos cartões postais e de suas imagens-clichê. Lembro do dia em que uma leitora do “Ferrugem” veio comentar, espantada e ao mesmo tempo feliz, que nunca teria imaginado encontrar a Polo 1 num livro de ficção. A Polo 1 é uma galeria que fica na Estrada do Portela, em Madureira. Faz parte do cotidiano de milhares de pessoas. Mas é o tipo de espaço que, com algumas exceções, a literatura brasileira contemporânea costuma desprezar, em nome de referências mais conhecidas, ou mesmo de uma espécie de alergia à chamada “cor local”. A “cor local” é parte fundamental dos meus contos, inclusive porque a intenção é lançar luz sobre esses lugares invisibilizados.
Apesar de narrados pela voz ilusoriamente neutra da terceira pessoa, “Fada do dente” e “Nota dez” são histórias inundadas pelas ocorrencias aparentemente triviais da infância e da adolescência, mas que podem se transformar em grandes traumas. Esta também tem sido uma grande formulação na historia da literatura – entender o crescimento-amadurecimento como um acumulo de nossas dores. Para a sua literatura, esta tem sido uma via importante?
MOUTINHO: Sim, e desde o primeiro livro. O universo da infância é riquíssimo, talvez porque seja um momento em que o olhar para o mundo é quase virgem, mais suscetível a descobertas, e também a pequenas ocorrências que ganharão, no futuro, uma dimensão inimaginável. Num de seus poemas, o Robert Creeley escreveu que “dor é uma flor como aquela, / como esta, / como aquela, / como esta”. A gente passa a vida colhendo essas flores, mas aquelas colhidas na infância ficam impressas em nós de maneira mais profunda.
“Comida a quilo” é o conto mais radical do livro em termos formais – com o fluxo ininterrupto da linguagem oral e do diálogo divergente entre dois atendentes de restaurante traçando a personalidade, a história e as acoes da protagonista. Também é talvez a história que faz uma outra síntese possível do livro, pela alta voltagem de solidão, da miscelânea contida no cardápio e na própria existência da comida a quilo, na aura de refugo, de sobra e também de estranheza e repulsa que cobre a personagem principal. Para narrar a cidade é preciso estar atento aos seus restos?
MOUTINHO: A ideia foi justamente emular, no registro formal, a lógica caótica do restaurante de comida a quilo. A solidão da senhora que frequenta o restaurante diariamente quase berra, mas é impossível ouvir esse grito em meio à algaravia ali instalada. Esse conto talvez seja o que melhor espelha o que chamo de discurso da cidade, a barafunda de signos – sonoros, visuais, escritos – que diariamente o espaço urbano erige. E uma cidade se define também por seus refugos.
Em “Oxê” e “Vanessa”, temos, respectivamente, a transformação de um grande trauma no imaginário nacional (a derrota por 7 a 1 na Copa de 2014) e de uma mazela ao mesmo tempo aguda e crônica do Rio de Janeiro (as balas “perdidas” ceifando vidas jovens) como um pano de fundo que é também motor dos acontecimentos. O que a História precisa perder – ou ganhar – para se transformar nas histórias da ficção?
MOUTINHO: Esse olhar para o “pequeno”, para a historia miúda que corre em meio aos grandes fatos, sempre me interessou. E a experiência de ter passado quatro anos escrevendo crônicas semanais o tornou mais agudo. Lembro do Otto Lara Resende contando que, durante uma greve geral, o amigo Rubem Braga lhe telefonou, convidando-o a ir ao Bar Luiz. “Vamos ver a crise de perto”, propôs o Rubem. Ao cronista, interessava mais o impacto da crise no âmbito individual, das pessoas em seu cotidiano. É a perspectiva da vida ao rés-do-chão, para evocarmos a expressão do Antonio Candido. Para o segurança gay que trabalha no célebre jogo do 7×1, em “Oxê”, a dor não vem da goleada sofrida pelo Brasil, e sim do ataque homofóbico que sofre. A bala que atinge a menina, para muito além de se somar à estatística, é a morte de uma vida cheia de sonhos, afetos, expectativas. Acredito que, para se transformar em relato ficcional, a História com agá maiúsculo precisa ganhar rosto, respiração.
O Brasil e a América Latina sempre foram um campo extremamente fértil para os contos. Que autores foram o seus primeiros espelhos?
MOUTINHO: Dentro do gênero conto, Franz Kafka e Clarice Lispector, a quem cheguei por intermédio dos livros do Caio Fernando Abreu. Como não sou oriundo de uma família letrada – meus pais eram comerciantes do subúrbio do Rio –, as primeiras incursões pela literatura se deram de modo bastante intuitivo. Depois, fui ler outros grandes contistas brasileiros, como o Murilo Rubião, a Lygya Fagundes Telles, o Antonio Carlos Vianna, o Luiz Vilela e o Sergio Sant’Anna.
Apesar desta imensa tradição, o conto brasileiro ainda tem dificuldade de encontrar seu lugar nas premiações, no posto de carro-chefe das editoras, sobretudo na visibilidade na chamada grande imprensa. Qual é sua explicação para isso?
MOUTINHO: A pergunta que um contista mais escuta ao longo da carreira é: “E aí, quando vem o romance?”. Como se o gênero conto fosse menor, um estágio até o escritor enfim virar “adulto”. Isso se deve em muito à preferência do mercado – e aí incluo as premiações, que em tese não deveriam se guiar por premissas meramente mercadológicas – pelo romance, o que acaba se estendendo às pautas do jornalismo cultural. São pouquíssimos os prêmios que distinguem livros de contos, sendo que um dos principais do país, e voltado apenas ao romance, se intitula “Prêmio São Paulo de Literatura”. Assim mesmo, “de literatura”. Ainda que exclua as narrativas curtas e também a poesia. As grandes editoras, com exceções que só confirmam a regra, costumam recusar de modo peremptório os livros de contos. O que transforma a questão da vendagem, pedra de toque do discurso dominante, num dilema de propaganda de biscoito: o romance é fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é fresquinho? Lamentavelmente, esse cenário leva muitos contistas promissores a desistir do gênero.
Para terminarmos olhando para o futuro, você está organizando uma antologia de contos baseada nos orixás da mitologia afro-brasileira. Poderia falar um pouco sobre este projeto?
MOUTINHO: Essa antologia, que sairá no meio do ano pela editora Malê, nasce de um projeto solo. Eu alimentava a ideia de escrever um livro de contos inspirados nos arquétipos dos orixás. Seria algo para o futuro, já que ainda estava dando os retoques finais em “Rua de dentro”. O cenário político-social do país, com os retrocessos trazidos pelo governo Bolsonaro, e o clima crescente de intolerância religiosa, que atinge sobretudo a fé afro-brasileira, acabaram fazendo com que antecipasse o projeto. E, para viabilizá-lo em prazo menor, decidi transformá-lo em antologia, convidando autores de todo o país para participar. Serão, ao todo, 18 escritores, cada um deles tendo o arquétipo de um orixá como premissa para o narrativa ficcional. Alguns têm ligação íntima com o assunto, outros não. O objetivo não é fazermos um livro para iniciados. Pelo contrário. Queremos é que essa incrível e pouco conhecida mitologia chegue a mais gente. Ela é parte fundante da cultura brasileira e, como tantos saberes desapartados do eurocentrismo, muitas vezes se vê relegada ao escaninho do exótico, do pitoresco.
A vida dos subúrbios do Rio de Janeiro é retratada como um ambiente pitoresco, composto de casas antigas, salões, lojas e padarias povoadas por uma galeria de tipos curiosos. Esses painéis sociais trazem colorido a filmes, novelas e séries de televisão. Podem lembrar a realidade, mas são artificiais, em geral rodados em estúdios. A caricatura não impede que Marcelo Moutinho, 46 anos, natural de Madureira, descortine uma realidade mais pungente e real do que os quadros simplificados sobre o subúrbio em seu livro “Rua de dentro”, lançamento da editora Record.
“Rua de dentro” traz 13 histórias, interligadas pela tragicomédia humana do bairro. A capa do livro é um piso de mural de cacos, típico dos quintais das casas locais. Desfilam pelas ruas e vielas,à margem das avenidas, os casais trans, os travestis que se prostituem e fazem curso universitário, camelôs, estudantes, torcedores, rufiões e sonhadores. O estilo é direto, mas não coloquial, pois Moutinho tem como referência autores que prezam a língua, como Clarice Lispector, Luís Vilela e João do Rio.
Os encontros vêm dos passeios que faz desde a infância. “Sou um flâneur de Madureira”, afirma. “Enquanto caminho e observo as pessoas, descubro as transformações.” Segundo ele, Madureira ainda mantém a característica de subúrbio da sociabilidade, devido ao comércio e à vida social intactos, ao passo que outros bairros cariocas se esvaziaram e se tornaram subúrbios dormitórios. “O subúrbio virou um aglomerado oco”, diz. “Quero reencontrar o lugar dos sonhos e da vida.”
Crítica: “Rua de dentro”, de Marcelo Moutinho
Sérgio Tavares*
Há dois significados sensíveis para o título do novo livro de contos do carioca Marcelo Moutinho. Rua de dentro faz referência ao desenho dos bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, configurados por vias secundárias nas quais circulam os protagonistas dessas treze narrativas. Mas também exprime um sentido cifrado, incutido na compostura dos textos que guardam um relato vicinal no dorso do relato visível, uma rua de dentro que se mostra para o leitor no curso da leitura ou apenas se sugere numa cartografia fantasma.
Tome como exemplo “Um dia qualquer”. Um flâneur transita pelo centro da cidade do Rio, vencendo ruas e registrando cenas urbanas num ritmo despretensioso, até que as últimas frases revelam o destino do personagem e a história secreta ganha a superfície, causando um efeito de surpresa e instigando o leitor a reprocessar o que havia lido. Mesmo assim esse entendimento não se cristaliza por completo, e a informação elíptica e insinuante se retrai para se retomar o fluxo da história principal.
Tal estratégia de estilo vai reaparecer, em maior e em menor intensidade, em enredos propositadamente sem fechos, mas, sobretudo, como uma forma de investigar a condição humana. Trabalhar com esse movimento de alternar camadas de percepção é acessar um fundo subjetivo onde residem os estados de consciência e os conflitos emocionais. Em “Ocorrência”, um casal de mulheres tem o apartamento roubado, do qual somem dois animais de estimação. É singela a maneira com que o enredo reflete a perda, ainda que em primeiro plano racionalizada, na extensão sentimental do relacionamento, lembrando o conto “Tantalia”, do argentino Macedonio Fernández, em que um casal faz um pacto de cuidar de uma planta como símbolo vivo de seu amor.
O mesmo procedimento se regula no excelente “Purpurina”, que se arma por meio de fragmentos que avançam e recuam no tempo, de modo reconstituir a vida de uma mulher trans, do fascínio pelas roupas da mãe até sua graduação na faculdade de Direito. O expediente clássico de se contar uma história, ditado pela marcha dos acontecimentos, é subvertido pelas tensões internas que dão conta da relação conturbada com os pais e da saída pela prostituição para sobreviver, a partir da qual se desponta uma segunda linha narrativa governada pela ação psicológica, onde a construção de mundo se sintoniza à construção da identidade de gênero.
O texto ainda idealiza um conceito de formação pelo qual a renúncia paterna abre espaço para a entrada de conselhos práticos de uma travesti com mais tempo de pista, pondo a lume personagens socialmente marginalizados. A abordagem, no entanto, não busca um reconhecimento por meio da caracterização da linguagem ou tampouco da temática. Moutinho lança mão do calibrado olhar, de uma sutileza quase poética, para tratar desse corte social, centrado nos dramas e nos gestos interpessoais, a exemplo de “Memória da chuva”, no qual um menino de classe média é convidado para o aniversário de um colega que mora na favela. O trama cita aspectos comuns a esses universos dicotômicos, mas o foco está na reação do menino à entrada num microcosmo particular que demole a visão preconcebida de seus pais.
De fato, a escrita posta com a naturalidade da prosa limpa e enxuta submete-se à experimentação de linguagem em apenas dois contos: “Retrós e linhas”, um discurso mental que vai se alinhavando feito um novelo, e “Comida a quilo”, uma intercalação de vozes em moto-contínuo que visa representar a bagunça sonora no interior de um restaurante self-service. Outra vez articulando o caráter duplo da forma, é interessante notar como o autor plasma a estrutura através da fala que ressoa e da que se interioriza.
Dessa dissonância calculada também saem “Militante”, protagonizado por uma mulher que faz campanha política pensando no ganha pão acima de qualquer ideologia, e “Oxê”, cujo narrador tem um caso secreto com um jogador de futebol. Em ambas as narrativas, o autor acrescente à sua habilidade de construir personagens verossímeis, situados num espaço de marginalização, toda uma verve de inconformidade sociopolítica que há naquele que enxerga os temas necessários de seu tempo.
Contista por excelência, Moutinho é um escritor com alma de cronista, e essa característica se reflete em textos cuja matéria-prima são as interpretações do vivido, do que foi decodificado na distância do olhar e depois convertido numa ficção que, com um caráter afetivo e relativa autonomia, delimita uma geografia particular onde pessoas passam pelo autor e inspiram suas histórias.
* Jornalista e escritor
Franz Kafka, certa vez, definiu o conto como uma gaiola que sai à procura de um pássaro. A citação, apesar do seu caráter anedótico, guarda um significado profundo sobre esse gênero tão debatido e estudado que é o conto.
Eu, particularmente, nunca fui fã dessa definição, e tendo mais a concordar com a de Ricardo Piglia, nas suas Teses Sobre o Conto, de que um conto sempre narra duas histórias. Jamais imaginaria, porém, encontrar o exemplo perfeito para a fala de Kafka em Rua de Dentro, o mais recente livro de contos do carioca Marcelo Moutinho, que acaba de ser lançado pela Record.
Apesar de não serem nem um pouco kafkianos, os treze contos de Rua de Dentro dão continuidade ao estilo e aos temas que o autor vinha explorando no seu livro anterior, Ferrugem (Record, 2016 – vencedor do Prêmio Clarice Lispector/Biblioteca Nacional de 2017), criando histórias do cotidiano de um Rio de Janeiro alheias a tudo pelo que a cidade é conhecida. Os personagens de Moutinho são gente anônima, com a qual se cruza todo dia, mas que fazem parte dessa metrópole, por mais que não percebam (ou sejam percebidas).
Sua escrita veloz e alheia a qualquer excesso faz um trabalho ótimo de caracterização de seus protagonistas e locais: em poucas linhas já estamos naquele pequeno universo privado, na intimidade daquelas pessoas. Isso bastaria para recomendar esse livro, mas é na estrutura dos conflitos que os contos ganham seu brilho.
Seja na história da mulher transexual Camile, em Purpurina, no relato da mulher que caminha para o cartório antes da padaria abrir, em Um Dia Qualquer, ou num lance perigoso de uma partida histórica de futebol, em Oxê, Moutinho segue uma estrutura de construção narrativa que, mesmo sendo semelhante, nos pega de surpresa em cada uma das histórias.
Ao narrar o cotidiano dessas personagens extremamente comuns, o autor nos envolve numa história que não parece ter importância nenhuma a não ser para quem as vive. Como se você narrasse para alguém como foi sua quarta-feira da semana passada. As chances de que nada de notável tenha acontecido são grandes. Mas talvez exista algo ali, algo por trás que você não enxerga, ou que está tão acostumado a ver que não enxerga seu real impacto e significância.
É a história da gaiola que sai atrás do pássaro, e Moutinho faz ótimo uso dela. Seus contos são verdadeiras gaiolas em busca de uma história arredia; um drama ou uma comédia que se esconde por trás dessas vidas que julgamos desinteressantes ao ver as caras cansadas de seus narradores. Mas o pássaro está lá em algum lugar, basta procurar.
Por vezes, os contos conseguem aprisionar essa história maior e colocá-la sob os holofotes, como no já citado Oxê, e em Militante, onde uma mulher desacreditada com a política faz bicos em campanhas eleitorais.
Em outras, os contos conseguem apenas tocar o pássaro de leve, esbarrando na história verdadeira apenas por tempo suficiente de nos mostrar o que de fato está em jogo. É o caso de Retrós e Linhas, um dos contos mais belos do livro, e de Cheiro, ambos explorando dinâmicas de casais conflituosos.
Mas às vezes, como em Vanessa (meu conto favorito do livro), esse pássaro acaba sendo grande demais para a gaiola, e parece ser ele a caçá-la, atravessando a narração com tanta fúria que estoura as barras e segue seu caminho, nos deixando apenas os destroços como prova de que algo maior passou por ali. E não é qualquer um que consegue fazer isso.
Contos unidos pelo fio do anonimato
Ney Anderson
Na comunicação das ruas, os fios invisíveis das histórias se conectam, mesmo sem estarem necessariamente ligados nas mesmas situações. Estão unidos justamente pela ideia da cidade em movimento, com os acontecimentos diários se desenrolando incessantemente, sem fim, provocados por habitantes que fazem a metrópole pulsar. Rua de Dentro (Ed. Record), novo livro de contos do escritor Marcelo Moutinho, é uma espécie de encruzilhada movimentada por onde trafegam todos os personagens que invariavelmente não percebemos, porque (inevitavelmente) também somos peças do mesmo quebra-cabeças.
Produzidos numa aparente simplicidade, de identificação imediata, o autor mostra, através de histórias curtas, diálogos rápidos e observações atentas, personagens que de tão comuns acabam passando despercebidos ao nosso olhar.
Todos os treze textos são ambientados em um Rio de Janeiro muito distante do cartão postal. “Purpurina”, que abre o livro, é sobre a vida de uma travesti, desde a sua gênese, ainda muito jovem, até a maneira de se colocar diante do mundo ativamente, tendo que lidar com o preconceito familiar, culminando no desfecho simbólico, quando ela, de forma emblemática, se reaproxima de quem a recriminou.
“Um dia qualquer” é a rotina alterada de um rapaz indo resolver a certidão de óbito da mãe. Sem choro, nem a aparente tristeza que este fato poderia causar. Apenas seguindo o curso natural da vida. “Memória da chuva” apresenta a divisão de classes. É incrível a história da amizade entre dois jovens de camadas sociais diferentes e as dúvidas dos pais do menino classe média alta em deixar o filho ir para o aniversário do amigo, morador de um dos vários morros que circundam a cidade. O endereço dele, por exemplo, mostra como esse abismo não é pura ficção, pois não está nem na localização do Google Maps.
“O campo visual do aplicativo termina próximo ao limite do asfalto”. Esse conto revela um preconceito entranhado, estrutural, mesmo com a (falsa) ideia do politicamente correto. Enquanto a preocupação dos pais é com a segurança do filho, ou a suposta falta dela, o menino nutre outro tipo de insegurança, que não tem nada a ver com o preconceito dos pais. Esse é um dos melhores contos do livro.
“Militante” é sobre a mulher que trabalha na campanha política distribuindo santinhos e balançando bandeiras dos candidatos, não por ideologia, mas para garantir um trocado no final da campanha. “Deus acima de todos. A verdade é que não costumo olhar para a bandeira, muito menos ler o que está escrito nela. Já agitei bandeira vermelha, amarela, azul, a de hoje é verde. Não tô nem aí. Essas palavras bonitas, de dicionário, são só palavras bonitas. Honestidade, justiça, honradez. Na bandeira do Brasil tem a frase ordem e progresso. Cadê? Palavra não paga fatura”, diz.
No conto “Ocorrência”, um furto no apartamento e a cena guardada nas histórias das personagens que estão se separando. Retrata a violência cotidiana, tratada como mais um caso corriqueiro. E o corriqueiro é uma marca dos contos do autor, também no livro anterior, Ferrugem, que se conecta totalmente com este novo.
Uma consulta ao dentista, que se transforma em suplício para a criança como medo da extração do dente, é o mote de “Fada do dente”. Já em “Comida a quilo”, Moutinho faz experimentação a partir da conversa entre funcionários de um supermercado, só com uso de vírgulas. No conto “Oxê”, a relação homoafetiva entre o jogador da seleção brasileira de futebol e um segurança dá a tônica do enfretamento que ele precisam lidar para não se tornarem relegados, e estigmatizados, pela descriminação.
Rua de Dentro traz também a história do relacionamento entre o ex-casal que compartilha a guarda da filha de forma amistosa, no conto “Cheiro”. E a prosaica conversa entre o taxista e o passageiro sobre amores e desafetos. E os caminhos tortos que ligam os dois desconhecidos no texto “Endless love”. O livro encerra com a violência urbana mais feroz do Rio de Janeiro , cobrando o seu preço dos mais pobres, no emocionante conto “Vanessa”, que termina de forma abrupta, assim como um tiro à queima-roupa.
Os contos de Marcelo Moutinho em Rua de Dentro têm algo muito próximo da crônica. Sobretudo a questão da cidade e dos personagens “invisíveis”. O interessante na antologia do autor é também a “dança” que os textos fazem, sem parar, seguindo um no outro e no outro, sempre passeando por vários lugares e histórias, se encaixando sutilmente, mostrando o “lado B” da cidade dita maravilhosa. Ou seria o lado “real” da dela?
A linguagem direta, simples e sem artificialidades que compõe os contos do livro, mostra que a reflexão maior do ser humano não é “quem somos, de onde viemos ou para onde vamos?”. Mas em entender que os personagens anônimos das cidades são aqueles que, como diz um dos narradores, estão invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados. Da alegria, talvez.
Dos atalhos que nos unem
Marcelo Moutinho reúne narrativas protagonizadas por personagens periféricos em temas densos, mas com bom humor
Valentine Herold
Os contos de “Rua de Dentro”, novo livro de Marcelo Moutinho, são como os pedaços de cerâmica de diferentes cores e tamanhos do piso desenhado na capa: fragmentos que, quando postos em conjunto, formam uma unidade de base sólida. A obra, que está sendo lançada neste mês de fevereiro pela editora Record, reúne narrativas – algumas muito curtas e outras mais longas – protagonizadas por sujeitos periféricos da sociedade brasileira, partindo de temas densos mas retratando-os com leveza e bom-humor.
O cenário das 13 histórias do livro são as ruas do Rio de Janeiro, mas poderiam facilmente ser as do Recife ou de qualquer outra grande cidade brasileira. Os dilemas, as alegrias, os amores e desamores das personagens de “Rua de Dentro” são os mesmos com os quais nos deparamos ao longa da vida e que nos unem enquanto sujeitos.
Marcelo Moutinho consegue captar pequenos momentos do dia a dia e aprofundar esses sentimentos em textos curtos, como se fossem fotografias ou pequenos vídeos caseiros, sem precisar situar a história em um contexto mais amplo. Tudo está posto nas entrelinhas.
Pessoas de classes sociais mais desfavorecidas, LGBTs e mães compõem a maioria dos textos, contados sem a pretensão de seguir as estruturas tradicionais do conto. A literatura do jornalista e escritor carioca traz continuamente tentativas de se libertar de certas amarras líricas. Em “Comida a Quilo”, por exemplo, a única forma de pontuação que o leitor irá encontrar na cinco páginas do conto é a da vírgula. “Eu queria emular mesmo esse ambiente do restaurante, que é esse lugar do feijão com sushi no mesmo prato, meio caótico e onde tudo acontece sem tempo para o descanso para os funcionários”, conta. Outro conto, “Vanessa”, acaba de forma abrupta, no meio de uma frase, assim como a vida de uma de suas personagens.
“Eu nasci e cresci no subúrbio, sou da Madureira. Quando fui fazer faculdade, comecei a escrever e sentia falta na literatura contemporânea brasileira desses personagens suburbanos. Eles pouco aparecem como protagonistas e, entretanto, representam a maior parte da economia do País”, explica. Sobre suas diferentes fontes de inspiração, Marcelo elenca as andanças pela cidade como a principal.
“Circulo muito por diversos bairros. Esse caminhar pelas ruas te dá a oportunidade de experimentar a alteridade, fazer uma outra leitura dos lugares.” Esse ato de colocar-se no lugar do outro às vezes até incomoda em “Rua de Dentro”, tirando-nos de um lugar de conforto.
“Não gosto de escolher contos soltos, escritos em momentos distintos, e juntá-los num livro. Sempre penso em um conceito para então escrever. O próprio título é uma brincadeira com esse fio condutor que une todos os contos, uma rua de dentro, da perspectiva da cidade que está dentro da gente e das pessoas que estão dentro dela.”
Para além das tensões sociais, alguns contos são lembranças de infância, uma valorização poética à memória através de momentos banais como uma ida ao dentista, como em “Fada do Dente”, a primeira dormida fora de casa, no lindo conto “Memória da Chuva”, ou o fim de um relacionamento que culmina na casa do casal invadida, em “Ocorrência”.
Mas a dimensão política está sempre presente, latente nas entrelinhas das figuras inventadas – pero nem tanto – por Marcelo. “Não no sentido partidário, mas justamente em falar de personagens que representam populações sob ataque, sempre partindo dos microcosmos”, finaliza o autor.
Rua de dentro
Olga de Mello
Os contos reunidos em Rua de Dentro (Record, R$ 39,90), de Marcelo Moutinho, inserem o leitor no cotidiano da simplicidade de uma megalópole, que esconde seus preconceitos e dores sob a imagem de sofisticação cosmopolita impregnada em todos os seus moradores – até os mais humildes. A gente “comum” é retratada numa perene e surda luta pelo reconhecimento – a advogada trans espancada pelo pai na adolescência “para aprender a ser homem” está ao lado do jogador de futebol que namora um agente de segurança. Os amores e as sexualidades são camuflados em nome de um convencionalismo rompido, como nas crônicas situadas nos subúrbios cariocas de Nelson Rodrigues. As preocupações em relação à convivência entre o morro e o asfalto vêm dos pais do menino de classe média, convidado para dormir na casa do amigo, na favela, depois de um churrasco de aniversário. Personagens que qualquer um encontra nas ruas todos os dias – camelôs, a moça que é paga para empunhar a bandeira de um partido político, em campanha pré-eleição, embora não tenha qualquer identificação ideológica, costureiras, porteiros – compõem o imenso mosaico humano que dão vida à cidade.
“Rua de dentro” traz mosaico de vida comum
Contos de Marcelo Moutinho jogam luz ao cotidiano
Marina Della Valle
Com uma bibliografia sólida, que conquistou indicações a diferentes premiações de peso, até receber o Prêmio da Biblioteca Nacional em 2017 por “Ferrugem”, Marcelo Moutinho desenvolveu seu trabalho como contista em torno do cotidiano carioca, de imagens e cenas corriqueiras que, engastadas em conjunto, envolvem o leitor na ciranda de vidas que dão alma a uma cidade.
Não é diferente em “Rua de Dentro”, seu novo livro de contos, com 13 narrativas curtas centradas em pequenos dramas, acontecimentos corriqueiros.
A linha de união é a ideia de vislumbrar o que está longe dos holofotes, do glamour que o Rio sabe exercer em quem o observa, e revelar o que pulsa e vive nas vielas e entranhas da cidade, assim como o espaço interno dos personagens que retrata, com muitas narrativas em primeira pessoa, diálogos ágeis e recortes que sublinham o que não é dito e especificado.
O contraste do estilo leve, coloquial, da prosa e do olhar sobre o que é miúdo, que nos remete às crônicas, com o peso que a narrativa por vezes adquire, é responsável por inserir estranhamento e deslocamento na familiaridade das histórias de pessoas comuns.
E elas são variadas. Em “Purpurina”, uma cena de ruptura familiar – o menino que é flagrado usando roupas de mulher – é o ponto de partida da história de vida de transexual, que sai de casa e conjuga a prostituição com a faculdade de direito; “Militante” traz a fala de uma mulher paga para agitar bandeiras de candidatos políticos pelas ruas, preocupada com o pagamento, já que a eleição seria no dia seguinte e ainda não havia recebido.
Os amores são apenas vislumbrados, mas estão presentes, em diferentes momentos. “Ocorrência” começa com um assalto na casa de Ana e da mulher, a narradora, que se furta a explicar ao policial a natureza do relacionamento; já o romance do narrador de “Oxê”, segurança de estádio, e de Betão, zagueiro do time, é velado pela necessidade de evitar preconceito. Em “Cheiro”, o amor está no passado, abrindo caminho não para lamento, mas para uma situação mais engraçada.
As ruas de dentro de Moutinho também são povoadas por crianças, em sua conjunção do eterno e da modernidade. Em “Nota Dez”, a tecnologia muda, mas o medo de ser motivo de chacota na escola é o mesmo de sempre. Em “Fada do Dente”, a troca de dentição desafia os bons modos.
“Memória da Chuva” e “Vanessa” são mais territoriais, mais colados ao Rio de Janeiro e seu cotidiano alegre e violento. O primeiro fala sobre amigos separados pela condição social – e de como essa diferença ganha mais contornos com um simples convite para uma festa de aniversário.
O segundo é menos esperançoso e trata da vida corriqueira de uma família comum pouco tempo antes de virar material para notícia – em uma situação que, no Rio e no Brasil de 2020, infelizmente não pode ser classificada como extraordinária, fora do comum.
Velhas e novas ficções sobre um Rio degradado
Michel Laub
Uns anos atrás, escrevi um artigo de jornal sobre modo como a literatura brasileira retratou o Rio de Janeiro – e foi influenciada por ele – desde o fim do século XIX. Com a pressa e as generalizações desse tipo de texto, tentei traçar uma linha que ia de Machado de Assis a Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca. O critério foi o diálogo entre a forma ficcional desses autores e a gradual decadência da cidade, a ex-capital do Império que ao longo das décadas mergulhou numa espiral inédita de violência, caos urbanístico e anomia.
A análise parava nos anos 1990, quando Fonseca encerra uma sequência brilhante de livros de contos, da estreia com “Os Prisioneiros” (1963) até “O Buraco na Parede” (1995). Como um espelho da degradação institucional pós-1964, e a partir do microcosmo carioca, títulos como “A Coleira do Cão” (1965) e “Feliz Ano Novo” (1975) deram conta de um país que não poderia mais ser retratado apenas com a ironia fina de Machado (em seus flagrantes sutis da insensibilidade das elites) ou o moralismo de Nelson (com sua tragédia – ou melodrama – da hipocrisia da classe média).
Talvez a melhor característica de Fonseca fosse a capacidade de emular vozes de tipos sociais diversos, externos ao universo de um autor letrado e consciente da artificialidade de seu ofício – por meio da qual se chega, como sabemos, à ilusão de vida na página escrita. Numa tradição literária que em geral via a violência “de fora”, seu feito foi escrever sobre o submundo do crime e suas adjacências, para além de eventuais convenções do gênero policial, usando personagens que pareciam falar por si.
Seria possível especular sobre as razões por que a produção fonsequiana se tornou menos vigorosa a partir de “O Buraco na Parede”. O método de imitar vozes, por exemplo, que fez o autor ser percebido como uma espécie de ventríloquo de diferentes classes, raças e gêneros, foi se tornando enciclopédico em excesso, com citações e curiosidades sobre o ambiente retratado dispostas de forma gratuita nos textos, perdendo a notável capacidade anterior de se articular organicamente com as tramas.
Mas não penso que tenha sido só isso. Fala-se menos dessa obra hoje também por razões alheias à qualidade dela. Dos anos 1990 para cá houve uma grande mudança no país, inclusive nos modos de produzir, divulgar e consumir literatura. Aos trancos e barrancos, nossa redemocratização precária botou mais gente na escola, criou o sistema de cotas nas universidades, deu condições a uma maior circulação de ideias – para o qual a internet, com os mecanismos de autopublicação de blogs e redes sociais, foi fundamental.
Daí surgiu um número imenso de escritores(as), cada qual tentando e às vezes conseguindo criar seu público. Junte-se a essa diversidade um maior diálogo com correntes críticas vindas de outros países, notadamente os estudos culturais americanos, e mudou-se a percepção sobre a autoridade da “voz literária” – quem está falando, a partir de que lugar, em nome de quem. É como se, em vez de um Rubem Fonseca sintetizando o vocabulário e a sintaxe de múltiplos tipos sociais, o público passasse a preferir a expressão direta – ou o que soa como expressão direta – desses tipos.
Representatividade social e estética andam juntas na literatura. Ficando apenas no exemplo do Rio, em 1997 Paulo Lins publica “Cidade de Deus”, ainda hoje o grande romance brasileiro sobre a favela carioca. Parte de seu impacto político veio do fato de o autor ser negro e ter sido criado no universo que descreve. Mas isso não pode ser separado de elementos que compõem o triunfo artístico do livro. A experiência pessoal também faz parte da ficção: é ela que faz a linguagem de Lins ser aquela, os personagens serem aqueles, o tom da narrativa ter uma determinada característica.
A História a contrapelo
Contos lançam luz sobre figuras intoleráveis para um Brasil fincado num imaginário colonial e temperado pelo horror
Luiz Antonio Simas*
Ao terminar a leitura de Rua de dentro, o novo livro de Marcelo Moutinho, saí de casa, parei no botequim mais próximo — aqui devo confessar que o bar fica praticamente debaixo da janela da minha sala —, abri uma cerveja e resolvi ver a vida passar. Lembrei-me de Walter Benjamin. O alemão, afinal, escreveu no seu Rua de mão única, publicado em 1928, que o bar é a chave de qualquer cidade; saber onde se pode beber cerveja é quanto basta.
É tentador relacionar o livro de Moutinho, composto de treze histórias curtas, ao pensamento de Benjamin. O filósofo falava em escovar a história a contrapelo e chamava a atenção para a importância dos fazeres cotidianos como caminho para escutar e compreender outras vozes. Benjamin gostava de pensar a historicidade a partir dos vestígios, do residual, daquilo que escapa ao grandiloquente. Não à toa, sonhou com uma história dos brinquedos.
Nesse aspecto, brinco de imaginar um encontro, coisa que fiz em um livro de 2013, entre o filósofo alemão e o Caboclo da Pedra Preta, entidade das encantarias brasileiras que guiava o babalorixá Joãozinho da Gomeia. Para o caboclo, em “Pedrinhas de Aruanda”, seu canto mais famoso, das pedras da aldeia “uma é maior, outra é menor: a miudinha é a que nos alumeia”.
As ruas de dentro são os caminhos por onde circulam as pedras miúdas. Longe dos holofotes, distantes do espetáculo, mais próximos dos rumores que dos brados retumbantes, os personagens das histórias de Moutinho transitam pela cidade sem grandes alardes: são travestis, lésbicas, mães, gays, amantes, trabalhadores da viração; frequentadores de padarias, botequins, restaurantes a quilo. Não há felicidade possível, mas a tessitura dos fazeres cotidianos insiste na vida, ainda que a morte paire entre os que parecem ter, como inexorável destino, o esquecimento.
Nesse ponto, não vejo em Marcelo Moutinho um escritor de periferias ou de personagens periféricos. Cria dos subúrbios do Rio de Janeiro, versado nos segredos de Madureira e seus arredores — Oswaldo Cruz, Rocha Miranda, Vaz Lobo, Turiaçu etc. —, Moutinho coloca em xeque a própria ideia de centralidade. Onde diabos, afinal, fica o centro? O que constituiu a ideia de centralidade? O centro da literatura de Moutinho é qualquer lugar onde a vida acontece.
Ao partir dessa perspectiva, de conferir centralidade a quem não circula pelas ruas principais, Marcelo Moutinho escreveu um livro eminentemente político. Numa conjuntura distópica, em que até mesmo a ideia de bem comum parece se esfarelar diante do avanço de uma extrema direita inimiga da diversidade, fincada em um imaginário colonial gestado nos alpendres das casas-grandes, Moutinho lança o olhar para aqueles cujas existências, para um Brasil oficial temperado no horror, precisam ser aniquiladas.
Pelas ruas de dentro circulam, surpreendentes, os corpos que, pela colonialidade, devem ser controlados pela sombra do pecado e domesticados na lógica do arado e da virilidade, já que não se enquadram nos manuais e credos dos “homens de bem”.
Escrevi no início do texto que Rua de dentro me levou ao bar. Encerro dizendo que, se livros demandassem canções como companheiras, esse poderia perfeitamente ser acompanhado de “O Rancho da Goiabada”, de João Bosco e Aldir Blanc (com o arranjo original do Radamés Gnattali, por favor). Pelas vielas de Moutinho, ressoa a ode de Blanc aos que, à sombra das alegorias dos faraós embalsamados, dançam como lírios pirados pela vida que espanta e comove — quando dela não se espera nada — ao simplesmente acontecer.
* Historiador
“Rua de Dentro” faz uma homenagem à alma do “Rua de dentro” faz uma homenagem à alma do Rio de Janeiro
Livro de Marcelo Moutinho re;une 13 contos com personagens retratados sem clichês, de forma essencial e absolutamente humana
Cíntia Moscovich
Lançado em fevereiro (e com a carreira já marcada pela pandemia do coronavírus), Rua de Dentro (Record), de Marcelo Moutinho, é uma daquelas leituras que se faz com crescente interesse e entusiasmo. Oferecendo uma galeria daqueles tipos humanos que vivem na periferia do miolo glamourizado do Rio, o livro é também uma homenagem à alma da cidade mais linda do mundo.
Reunião de 13 contos formalmente impecáveis, em Rua de Dentro — expressão tão brasileira e que se refere às ruas adjacentes à principal —, Moutinho dribla a Zona Sul, dando sequência a seu Ferrugem, livro de 2017, no qual o material humano também é extraído do subúrbio e dessa classe média que beira o rebaixamento todo o tempo. Travestis, funcionários de um restaurante a quilo, costureiras, seguranças de jogo de futebol (e o ponto de vista de um desses fortinhos que se vê obrigado a ficar voltado para as arquibancadas de um jogo da seleção brasileira contra a da Alemanha, num lamentável escore de 7X1, é um dos achados do livro), cabos eleitorais, cozinheiras, mães de família, todos são aqui retratados sem ceder às facilidades do clichê, de forma essencial, crua, singela e absolutamente humana.
Nascido e criado em Madureira, bairro de boemia e famoso por suas duas escolas de samba, Império Serrano e Portela, Moutinho é imperiano da gema — devoto confesso e alardeado. Sua familiaridade com a linguagem e com a ginga das quadras, dos estádios e das ruas rende passagens memoráveis, momentos deliciosos, em que a fala dos personagens parece absolutamente natural e nos quais a sucessão dos acontecimentos coloca o leitor bem no meio da ação. Com pontuação também de destaque, dosando o ritmo e o andamento das histórias com uma simplicidade digna de nota, o volume é uma aula de estilo.
Jornalista de ofício, um dos melhores contistas em atividade no Brasil (seu Ferrugem mereceu o Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional em 2018), Moutinho tem a sorte de contar com bons profissionais. A capa do livro, que reproduz um piso de cacos de azulejos, é de Leonardo Iaccarino sobre foto de Custódio Coimbra para O Globo. Bonitaça.
Um escritor que ama a vida
Raimundo Carrero
Pode ser, e apenas pode ser, que o leitor não esteja acostumado com este nome: Marcelo Moutinho. Mas não sabe o que está perdendo. Ele não é um desses autores populares que pululam em cada esquina deste país tão desigual. Trata-se de um escritor carioca ainda jovem – não tão jovem que possa ser confundido com um adolescente – com um grande e entusiasmado amor pela vida.
Por isso, é muito comum que os seus contos estejam quase sempre ligados ao futebol, à vida boêmia, ao samba, ao botequim, sem perder de vista aquelas figuras mais dramáticas, que vivem no coração selvagem da vida, entre o amor e o encantamento. Marcelo abre este seu novo livro – “Rua de dentro” (editora Record, Rio de Janeiro) – com uma pequena novela chamada Purpurina – , entre o belo e o burlesco, em que se destaca um personagem impulsionado para a vida incomum. Gustavo cede a todos os impulsos interiores, não trai a alma e enfrenta o pai, numa briga sem vencido nem vencedor, mesmo quando parece derrotado.
Tecnicamente, o conto dá voltas na narrativa, com Purpurina vencendo um pouco aqui, perdendo um pouco ali mas avançando, avançando…O que concede grandeza e leveza à novela…Uma das maravilhas deste livro de Marcelo Moutinho é justamente a construção do personagem, que provocou o elogio do grande escritor Antônio Torres, para quem o autor escreveu “uma suíte para o homem comum”.
Destacando, sobretudo, que o grande francês Gustave Flaubert era enaltecido por ser o criador de uma “epopeia dos comuns”. Isto é, fazer com que aquela existência de quarto e sala passe para os holofotes e para o centro da vida. Para o destaque do ser.
Ao lado disso, Marcelo tem uma grande capacidade para escolha das cenas e dos cenários, com destaques para aquelas em que seus personagens precisam se envolver para definir o caráter e o comportamento. Mesmo assim, um escritor espontâneo, sem se vincular a rigores técnicos e vanguardista, jogado no texto e na vida. O que quero destacar é justamente a sutileza técnica, de quem conhece a intimidade do texto mas não impõe ao leitor.
A força dos seus diálogos pode ser confirmada no conto “Cheiro”.
“Se a gente não tem como ser eterno, imagina se a fealdade vai ser?”
Luigi Ricciardi
Em time que está ganhando não se mexe, diz o jargão popular. No máximo você acerta um detalhe aqui, coloca um jogador novo que apareceu agora e está se destacando, inverte uma posição. Mas, no mais, mantém o esquema tático, dá a bola ao camisa dez e toca o time para frente. Isso pode valer para o futebol propriamente dito como para qualquer outro segmento, inclusive a literatura.
Marcelo Moutinho, em seu novo livro intitulado Rua de dentro, mantém o que funcionou bem em Ferrugem (já resenhado aqui), seu livro anterior. Lançado em 2020 pela Record, o livro tem treze contos que trazem personagens outrora esquecidos ou pouco explorados pela literatura brasileira, gente “comum” que vive seus desejos, paixões, fracassos e esperanças, em realidades bem brasileiras.
Logo no início, um dos principais contos do livro: “Purpurina”, que trata da história de uma pessoa trans. A maneira que o escritor construiu o conto é interessante, pois, no começo do conto, não nos damos conta do gênero do jovem flertando com algo “proibido” para ele. Só vamos entender muitos parágrafos à frente e a descoberta nos desconcerta.
O conto retrata uma história difícil que acontece com muito mais frequência do que se imagina. A descoberta da transexualidade em meio a uma sociedade machista e conservadora que reprime dizendo que “não vou ter filho mulherzinha”. O conto mostra também o submundo no qual as mulheres trans precisam viver, pois, excluídas da sociedade, precisam embarcar no único lugar que as “aceita’.
“Militante” é um conto que mostra como boa parte da população brasileira precisa de subempregos para poder sobreviver (em pesquisa realizada no final do ano passado, constatou-se de quase quarenta milhões de brasileiros estão com subemprego). Em época de eleição, a protagonista do livro se expõe às intempéries para agitar bandeiras para um candidato que é um homem de Deus e cuja bandeira revela que Deus está acima de todos.
“Oxê” trata de um tema muito tabu: a homossexualidade em espaços que têm uma forte resistência ao mundo LBGTQIA+, como o mundo do futebol e de seguranças/policias. A goleada sofrida no Mineirão pela Copa do Mundo, lugar onde um segurança está trabalhando, não é só uma goleada futebolística, mas uma goleada, retratada no conto, de preconceito e ignorância.
Em “Comida a quilo”, vemos a solidão de uma senhora que vai todos os dias, sempre sozinha, comer no mesmo restaurante. O conto foca nos diálogos entre os funcionários do estabelecimento, que conjecturam sobre uma possível vida misteriosa dessa idosa. Alguns funcionários criticam sua presença no local, que dura bastante tempo ocupando uma das mesas. Percebe-se, na verdade, que a velhice incomoda.
Ainda há espaço para contos como: um menino de classe média que frequenta pela primeira vez uma favela; um casal que tem sua casa assaltada perdendo o pouco do conforto que tinham; um taxista que lembra do seu grande amor ao assistir a um programa de tevê, descoberta da sexualidade e bullying de estudantes, entre outros.
Quanto à linguagem, o autor prefere uma norma mais próxima à padrão para os narradores em terceira pessoa. Entretanto, quando dá voz às personagens, se sente à vontade para flertar com a oralidade dando mais verossimilhança a suas criações.
Rua de dentro parece apontar para os caminhos do povo, essa rua interna do país, dessa gente que é mal ou pouco vista, fora das grandes avenidas. Gente excluída que ganha vida, ao menos, nas páginas desse livro. O time de Moutinho vai bem. Futebol de rua é futebol do povo.
‘O Brasil deu certo. O plano era mesmo ser excludente’
Entrevista / Marcelo Moutinho, escritor
Por Marisa Loures
O pai festejou o nascimento do filho. Usou o dinheiro reservado para um imprevisto ou para a tão sonhada viagem aos Estados Unidos e comprou uma caixa de charutos para comemorar. Gustavo era o nome do garoto. Mas o pai não aceitou quando descobriu que Gustavo transformou-se em Camile. A intolerância atropelou o amor. “Mulherzinha. Não vou ter um filho mulherzinha”, disparou raivoso após deixar, no rosto de Camile, a marca de um soco. “Purpurina”, conto comovente que abre “Rua de dentro” (Record, 128 páginas), novo livro do escritor carioca Marcelo Moutinho, escancara a realidade enfrentada por pessoas trans empurradas à prostituição por sobrevivência. Mostra o processo de transformação de Camile, a saída de casa, os programas, a conquista do diploma universitário, o retorno para perto do pai.
Os personagens que por ele transitam frequentam, diariamente, as ruas do subúrbio do Rio de Janeiro. Movimentam-se à margem. Dificilmente, estariam no centro de uma reportagem especial cujo tema são as belezas da Cidade Maravilhosa. Também quase não aparecem como protagonistas de grandes obras da nossa literatura. E é sobre o cotidiano dessas pessoas que vivem em espaços nada glamourizados, ambientes de uma realidade dura, mas também de deliciosas histórias, que Moutinho mais gosta de escrever.
“Clichês são, em geral, imagens reiterativas. No caso do Rio de Janeiro, podemos evocar as praias da Zona Sul, com o desenho sinuoso da orla, os braços abertos do Cristo Redentor sobre a paisagem e tantas outras que formam os cartões-postais. Só que uma cidade – e o Rio não é diferente – se define também nas imagens, nos costumes, no cotidiano de quem não costuma estar sob os holofotes. A expressão ‘rua de dentro’, que dá título ao livro, aponta justamente para isso. Não quero falar das grandes avenidas, de personagens cheios de glamour, e, sim, da vida que se desenrola quase que à margem desses lugares e para além desses tipos humanos. O foco está no universo da baixa classe média suburbana – e também, em parte, no ambiente da favela. Acredito que a cor local, no livro, não é um elemento limitador. Pelo contrário: os personagens que povoam os 13 contos – uma mulher trans, a senhora que frequenta o restaurante a quilo, o taxista, a menina que sonha ser dentista – não são marcadamente cariocas. Poderiam estar em qualquer cidade brasileira”, explica Moutinho, nascido e criado em Madureira, subúrbio carioca.
Entre seus títulos publicados estão, “Ferrrugem” (Record, 2017), livro vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional, “Na dobra do dia” (Rocco, 2015), indicado ao Prêmio Oceanos, e “A palavra ausente” (Rocco, 2011), indicado ao Prêmio Portugal Telecom. Nossa conversa é sobre “Rua de dentro”, processo de escrita, escolha narrativa, invisibilidade, é sobre Brasil.
Marisa Loures – Ao escolher falar sobre o cotidiano dessas pessoas invisíveis, que se movimentam à margem e que, no dia a dia, lutam para sobreviver, acaba levando para seus textos histórias com finais nada felizes, como a do conto “Vanessa”. Sei que se trata de ficção, mas é uma ficção inspirada na dura realidade de quem mora em comunidades onde, diariamente, há trocas de tiros. De onde tirar forças para continuar escrevendo?
Marcelo Moutinho – Essa dura realidade está presente, mas as histórias iluminam também outros aspectos da vida nas chamadas comunidades. No conto “Memória da chuva”, por exemplo, é descrito um animado churrasco de aniversário. Isso porque penso ser importante quebrar a perspectiva de que a existência de um morador da favela se resume a sofrimento, tragédia e infelicidade. Quando a gente aproxima a lente, percebe que não. Mais que isso: percebe que a lógica segundo a qual o cotidiano de um indivíduo pobre que mora na favela se limita a conviver com a violência e a falta de recursos é, na verdade, um estereótipo. Há prazer, há potência, há alegria, há alumbramento ali. Essa lente em primeiro plano serve também, como no conto que você cita, para trazer um olhar além da estatística. Uma coisa é ver na TV que houve mais uma vítima de bala perdida, da violência policial. Outra é conhecer de perto a vida, os projetos, os sonhos que foram abatidos.
– Quando conversamos em 2017 sobre “Ferrugem”, você já havia comentado que gosta de escrever sobre pessoas comuns e que a literatura, às vezes, está muito ensimesmada. Os personagens, normalmente, são escritores e cientistas sociais. Se a imprensa, de maneira geral, não dá espaço para os invisíveis, será que a literatura tem começado a dar sinais de que ampliou a escuta deles?
– Acredito que sim. Nos últimos anos, houve uma maior democratização no que se refere ao espaço no mercado editorial. Existe, hoje, mais lugar para escritores que não sejam oriundos das áreas mais elitizadas ou não se vinculem obrigatoriamente a temas e personagens com recorte intelectualizado ou acadêmico. É claro que não se muda de uma hora para outra um cenário construído ao longo da história. Mas penso que melhorou.
– Tenho a impressão de que, para escrever “Purpurina”, você percorreu as ruas da Lapa e da Glória e conversou com cada pessoa que aparece nele. Conte um pouco sobre o processo de escrita desse conto.
– “Purpurina” demandou bastante pesquisa. Li vários trabalhos de antropologia urbana sobre esse universo e entrevistei algumas mulheres trans sobre suas trajetórias, a pessoal e a profissional. Duas delas, a quem nomeio e agradeço no fim do livro, ajudaram também na questão do vocabulário. Eu queria que, nessa perspectiva de aproximar a lente dos personagens, o conto tivesse verossimilhança e assumisse com naturalidade os códigos daquele grupo social. Sua rotina, sua linguagem, seu cotidiano, as barras que enfrentam, o preconceito, os ritos de passagem da transformação. Daí o relativo estranhamento dos leitores ao se deparar, por exemplo, como termos como “equê”, que significa “caô”. Essa é uma das histórias do livro que mais têm emocionado as pessoas.
“A preocupação em lustrar o próprio perfil tem sido maior do que a de tentar compreender o que tem levado grande parte da população a subscrever um projeto corrupto, misógino, homofóbico, racista e autoritário. É preciso tentar estabelecer um diálogo com essas pessoas. No mais, como costuma afirmar o historiador Luiz Antonio Simas, o Brasil deu certo. O plano era mesmo ser excludente, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua própria gente, intolerante, boçal, castrador, famélico e grosseiro. Nossa tarefa, diz ele e eu concordo, é fazer o Brasil dar errado.”
– Em relação ao conto “Militante”, temos uma cabo eleitoral. Pessoa simples, sem convicção ideológica, trabalha para um candidato ou outro apenas para receber o pagamento pelos serviços prestados. “O seu Botelho repete sempre que o nosso candidato é um homem de Deus, que até na bandeira está escrito Deus acima de todos. A verdade é que não costumo olhar para a bandeira, muito menos ler o que está escrito nela. Já agitei bandeira vermelha, amarela, azul, a de hoje é verde.” Apesar de ter consciência de que as promessas são sempre as mesmas, essa mulher não faz nada para mudar sua situação. Pelo contrário. Quer mantê-la. Somos culpados pelo Brasil que temos hoje?
– Ela não faz nada porque tem uma necessidade mais urgente: pagar as contas. Ou seja, a sobrevivência. Esse conto toca numa questão crucial do país hoje. Ficam os setores progressistas trocando tapas nas redes sociais, numa disputa sobre quem seria mais ou menos vanguarda, enquanto a caravana do retrocesso passa em velocidade acelerada. Infelizmente, as chamadas bolhas estão com suas superfícies cada vez mais grossas, cada vez mais intransponíveis. A preocupação em lustrar o próprio perfil tem sido maior do que a de tentar compreender o que tem levado grande parte da população a subscrever um projeto corrupto, misógino, homofóbico, racista e autoritário. É preciso tentar estabelecer um diálogo com essas pessoas. No mais, como costuma afirmar o historiador Luiz Antonio Simas, o Brasil deu certo. O plano era mesmo ser excludente, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua própria gente, intolerante, boçal, castrador, famélico e grosseiro. Nossa tarefa, diz ele e eu concordo, é fazer o Brasil dar errado.
– No conto “Comida a quilo”, não há parágrafos. Apenas um bloco de texto. Quase nenhum outro sinal de pontuação além da vírgula. As falas dos personagens estão misturadas com a do narrador e com a do locutor que, no rádio, dá notícia dos preços de produtos do supermercado Guanabara. É preciso fôlego para ler. Aquela “confusão” de vozes, gente comendo, garçonete mal-humorada, leva-nos para o ambiente de um restaurante muito movimentado de uma grande cidade. O que o leva a fazer determinadas construções textuais na hora de produzir?
– A narrativa, em “Comida a quilo”, emula o ambiente de um desses restaurantes. Busquei traduzir, no campo da linguagem, aquele universo recortado, fragmentário, caótico. Para que o texto ressoasse o cenário onde a trama se desenrola. É uma barafunda de palavras e sons, uma algaravia comparável – caso queiramos e quisermos evocar uma combinação gastronômica típica desses estabelecimentos – a um prato de feijão com sushi.
– E, segundo você, “Ferrugem” era seu livro mais autoral. Com ele, deixou “o texto um pouco mais solto”, “menos preso ao retrabalho”, que era quase uma obsessão sua. O que pode dizer a respeito disso com este novo livro? A obsessão voltou ou não?
– Sob a perspectiva da linguagem, acho que “Rua de dentro” dialoga com “Ferrugem”. Isso embora haja alguns contos nos quais o trabalho da narrativa é mais ousado. É o caso do já mencionado “Comida a quilo” e também o de “Retrós e linhas”, protagonizado por uma costureira e que reproduz, no âmbito textual, o movimento da própria costura. Frases longas, como a agulha que conduz a linha, alternadas com frases curtas, como o nó que a retém antes do retorno ao outro lado do tecido.
– E desde que estreou na literatura, tem publicado contos. Também escreveu um livro de crônicas, além de um infantil. Por que o interesse pelas narrativas curtas? Por que “Rua de dentro” nasceu em forma de contos?
– No meu caso, o que define a extensão de uma história é seu enredo. Até hoje, os enredos que imaginei suscitaram uma narrativa mais curta. Mas a lógica da montagem dos meus livros têm obedecido à premissa da organicidade. Não se trata de mera junção de contos, mas de uma composição que considera questões como temática e ambiência. Há um fio que enovela as histórias ali reunidas. Nesse sentido, chamaria “Rua de dentro” de “quase romance”. Como a própria capa sugere, é um mosaico montado com os cacos de nossa experiência individual no espaço urbano, seja sob o âmbito das relações coletivas, seja a partir da cartografia íntima que guardamos dentro de nós, a nossa memória da cidade. E é, também, um recorte. Não à toa, o primeiro conto começa com um conectivo (“e”), que sugere a continuidade de algo preliminar e não expresso, e o último conto simplesmente não termina. É como se o livro representasse um excerto de uma miríade de histórias, considerando que antes e depois daquelas 13 há muitas outras a se contar.
Obras para retomar as ruas sem sair de casa
Mateus Baldi
Primeiro foi o cão Augusto, pastor maremano que a primeira-dama adotou e na verdade se chamava Zeus. Depois, um cachorro atacou o ministro Paulo Guedes. Então veio a naja do Distrito Federal, expondo toda uma rede de tráfico de animais exóticos, e o presidente foi bicado por uma ema.
Não tardou para que o Twitter caísse em cima da inegável revolução dos bichos que se anunciava – usuários de oposição criaram perfis para os animais e angariaram milhares de seguidores em pouquíssimos dias. No quarto mês de quarentena, sem ministros na educação e na saúde, é assim que o Brasil vive seus dias, à espera de uma revolução fantástica que o salve do abismo.
Tudo isso para dizer que li Jorge Amado – A morte e a morte de Quincas Berro D’água – e uma passagem me chamou a atenção, fazendo retornar à rotina de máscaras e Covid. Quando ficamos sabendo do rompante que fez o protagonista Joaquim abandonar a postura de funcionário público para se transformar em Quincas, bêbado pervertido, vemo-lo se voltar para a família chamando mulher e filha de “Jararacas!”.
Num primeiro momento, é a cobra que me devolve à vida comum, esse pretenso normal povoado de absurdos, mas continuando a leitura me dou conta de um impulso maior, um desejo genuíno que o escritor baiano catalisa em mim: retomar a cidade. Lendo Quincas Berro Dágua, não só me é restituído o absurdo como também a cidade. Salvador é descrita pela sua gente, pelo que acontece nas ruas.
A tensão entre o apolíneo – a família de Joaquim, suas normas rígidas – e o dionisíaco – os vagabundos amigos de Quincas, livres, pagando o preço da marginalidade – soa quase que uma desculpa para Jorge Amado rezar o terço místico da urbe. De modo que soa imperativo, mas precisa ser dito: se não é prudente retornar à vida comum – pela hipocrisia, pelo cinismo do vírus e as políticas públicas –, que ao menos saibamos reconhecer o tecido urbano sem usá-lo.
Inscrito na melhor tradição de contar a cidade, o Brasil tem em João do Rio e Luis Martins – A alma encantadora das ruas e Lapa, respectivamente – a possibilidade de um rastreio histórico. O Rio de Janeiro que se avista ali é o Rio de Janeiro puro, pouco afeito à limpeza da elite. Como cantava Noel Rosa, palmeira do mangue não vive na areia de Copacabana, e se hoje ainda é a elite que puxa o bonde do contrassenso, talvez valha a pena mantermos o olhar voltado para o que se esconde das ruínas.
Em autores contemporâneos, como Luiz Antonio Simas, Marcelo Moutinho e Jessé Andarilho, as frestas do subúrbio escancaram outra cidade partida – menos pelo crime que pelos costumes. Nas obras de Simas, historiador voltado para uma interpretação originalíssima do Brasil e de seus mitos, encontramos as macumbas, as ruas e tudo aquilo que treme distante do sagrado óbvio: Coisas nossas e O corpo encantado das ruas, para citar dois títulos, estão pouco interessados no comum – importa a cidade viva, que pulsa distante da zona sul.
Esse mesmo procedimento está presente em Marcelo Moutinho. DesdeFerrugem, seu penúltimo livro, há um movimento consciente de iluminar a existência da baixa classe média e seus códigos, seus ritos – o pequeno comerciante, a cobradora de ônibus, a caixa de supermercado. Rua de dentro, lançado em janeiro, consolida seu projeto ao dar voz à favela, às trans – o Rio de Janeiro que resiste e se corresponde com Jessé Andarilho, uma das vozes mais originais surgidas nos últimos anos.
São Paulo também não fica de fora. No momento em que o estado é o epicentro do coronavírus no Brasil, ler autores como Giovana Madalosso e Luiz Ruffato pode ajudar a matar as saudades da rua. Nascidos em Curitiba e Cataguases, respectivamente, ambos conseguiram, com quase vinte anos de diferença, trazer um olhar estrangeiro e fidedigno para a capital.
Tudo pode ser roubado, primeiro romance de Giovana, conta a história de uma garçonete cleptomaníaca contratada para roubar a primeira edição de O Guarani. Apelidada de Rabudinha, ela se vira pela cidade enquanto é absorvida por suas ruas e viadutos. Já Ruffato, em 2001, lançou o primeiro clássico deste século: ao misturar diversos registros, Eles eram muitos cavalos cria um panorama indescritível do que é o dia paulistano – prosa, poesia, santo, bicho: aqui vale tudo.
Seja no sudeste ou na Bahia, não estamos próximos do fim da quarentena, apesar dos que tentam reabrir a vida e o comércio. Mas ainda temos a literatura para nos mandar às ruas.
‘Rua de dentro’: os caminhos óbvios de Marcelo Moutinho
Contos que formam ‘Rua de dentro’, de Marcelo Moutinho, esbarram em lugares comuns e retratos planificados de seus personagens
Jonatan Silva
Em uma das cenas mais famosas de Orfeu, obra máxima de Jean Cocteau, o personagem-título entra em um espelho para escapar de sua realidade de solidão e ausência. É a partir desse ato – a tentativa de escapar da realidade – que Orfeu desce ao inferno.
A literatura de Marcelo Moutinho vai no sentido contrário: é o escrutínio da realidade em seu estado puro. Rua de dentro reúne contos que revelam uma existência partida, calejada pelas dores que a desigualdade coloca no caminho. Como em Ferrugem, seu livro anterior, Moutinho usa a vida de gente comum e a linguagem muito próxima à crônica para tentar entender as lacunas que povoam o Brasil.
Ao mesmo tempo, a despeito das encenações do cotidiano, Rua de dentro é um livro de obviedades. Na contramão de Ferrugem, os contos desse volume acabam por cair em uma espécie de senso comunitário. “Purpurina”, texto que abre Rua de dentro, é uma fábula fácil sobre o amadurecer da sexualidade, colocando na figura da mulher trans uma relação pragmática – e planificada – consigo e com os outros. “Memória da chuva” é um relato sobre as dicotomias do morro e do asfalto, porém, se perde ao expor aquilo que é ordinário sobre a questão. Ambos são movimentos centrífugos de uma tentativa de literatura que aposta em lidar com o diverso e acaba por esbarrar em suas próprias limitações.
Na busca pela banalidade do mal cosmopolita e pelos medos urbanos, Moutinho constrói o frágil “Ocorrência”, um conto sobre delitos morais e afetivos. É, mais uma vez, a realidade escarrada a naufragar em um mar de lama, o mesmo mar de lama que transborda em “Militante” – sobre o aliciamento político e a cegueira ideológica que assombra dia após dia – e em “Fada do dente” – uma narrativa a respeito da ausência em pais, fisicamente, presentes.
Se de um lado há as coincidências da cidade grande – “Endeless love” –, de outro existem o mecanicismo da sobrevivência – “Um dia qualquer”, o melhor texto do livro – e a precarização da vida diária – “Comida a quilo” e “Nota dez”. Sob esse prisma, o autor faz seu caminho por vias esquemáticas, delineáveis, sem exigir do leitor a sua parcela crítica nesse processo de leitura.
Não é exagero dizer que Moutinho materializa a tentação de criar uma literatura que se diz urgente e que esbarra em seus pecadilhos. Conto a conto, o autor faz a fórceps um livro raso, que tenta acertar ao trazer a imagética dos merdunchos de João Antônio. Entretanto, falta ao texto uma tessitura narrativa que vá além da margem, que seja capaz de percorrer, como diz o título, as ruas de dentro de uma sociedade em permanente colapso.
12 melhores livros lançados em 2020
Rebeca Fuks
Gosta de estar sempre a par do que se passa na atualidade? Quer saber mais sobre o que as editoras pretendem publicar esse ano? Tem vontade de ser o primeiro a ler os lançamentos previstos?
Então aproveite, esse artigo é para você! Tome nota dos doze lançamentos mais promissores que devem pintar no mercado editorial em 2020. Quem sabe você não consegue ler um por mês?
1. Um gênio muito estável: a ameaça de Donald Trump à democracia (Philip Rucker e Carol Leonning)
Se você gosta de investigações jornalísticas esse livro é a sua cara! Philip Rucker e Carol Leonnig são jornalistas do Washington Post e receberam o tão ambicionado prêmio Pulitzer.
Amantes do universo da política e com fontes privilegiadas, os dois seguiram os passos do atual presidente dos Estados Unidos – o polêmico Donald Trump – e tentaram montar um puzzle sobre o modo de agir e pensar do homem mais poderoso do mundo.
Para sustentarem essa investigação, os jornalistas tiveram acesso à centenas de entrevistas e fizeram uma vasta pesquisa durante um período especialmente conturbado pela possibilidade de impeachment.
Ler Um gênio muito estável: a ameaça de Donald Trump à democracia é uma forma de conhecer mais sobre a personalidade do homem que alcançou o cargo político mais importante do planeta e também saber mais sobre os meandros do poder.
2. Elis e Eu (João Marcello Bôscoli)
Um livro sobre o amor, a saudade e a infância, esse é Elis e Eu, o relato pessoal de João Marcello Bôscoli, filho mais velho da Pimentinha que perdeu a mãe de modo prematuro e trágico em 1982.
A história, contada pelo agora homem, é permeada de uma série de flashbacks íntimos da infância ao lado da mãe, do pai, do padrasto e dos dois irmãos.
A obra do primogênito Bôscoli nos mostra uma faceta de uma das maiores cantoras do Brasil que nunca tivemos a oportunidade de conhecer. Saudosista, o livro também não deixa de ser duro quanto é preciso: o pequeno João testemunha ao longo das páginas a degradação da mãe, o seu sofrimento e as festas em casa regadas a muito álcool e droga.
O livro conta ainda com o prefácio de Rita Lee, que testemunhou de perto esse lado familiar de Elis Regina (1945-1982).
Se você gosta da cantora aproveite para ler também o artigo Elis Regina: biografia e obra.
3. Martinho Lutero: renegado e profeta (Lyndal Roper)
A historiadora australiana Lyndal Roper aceitou o desafio de compor uma biografia de Martinho Lutero (1438-1546), um sujeito tão importante no mundo religioso e do qual sabemos tão pouco.
Responsável por fazer a Reforma Protestante, não sabemos praticamente nada sobre esse sujeito que foi revolucionário na sua geração. Lyndal traz fatos inéditos sobre a vida do religioso e nos explica como o monge foi capaz de promover uma mudança social tão significativa em tempos tão obscuros.
Com uma oratória incrível e uma capacidade de escrita fora da curva, Lutero foi capaz de atrair milhares de fiéis e conseguiu romper de vez com a Igreja Católica, instituição de onde saiu e para a qual dirigiu uma série de críticas ferozes.
Através do relato de Lyndal ficamos conhecendo aspectos mais mundanos do religioso como, por exemplo, os seus quadros de melancolia (que hoje possivelmente seriam diagnosticados como depressão). Os amantes de biografia foi devorar em poucos dias Martinho Lutero: renegado e profeta.
4. Rua de dentro (Marcelo Moutinho)
O novo livro do carioca Marcelo Moutinho traz uma reunião de treze contos centrados sobretudo na periferia do Rio de Janeiro.
Além do gênero literário, outro padrão que reúne essas breves histórias independentes é o fato do escritor optar por, em muitas delas, não colocar um ponto final deixando as narrativas em aberto, para serem preenchidas ao gosto do leitor.
Interessado em pesquisar a condição humana, as histórias curtas passeiam por temas vulgares como o amor, as relações sociais, a solidão, os afetos, a perda, as tensões sociais e a morte.
5. A última festa (Lucy Foley)
O último livro de Lucy Foley é de deixar qualquer um roendo as unhas de nervoso. O romance policial gira em torno de um grupo de amigos de faculdade reunidos por Miranda e Katie, duas amigas que acham uma boa ideia todos passarem o réveillon juntos.
Se logo no princípio da história reina um saudosismo característico daqueles que partilharam os melhores anos de vida em conjunto, rapidamente eles percebem que já não têm mais nada em comum.
O estopim da história é um assassinato que se dá no dia a seguir da última grande festa do ano. Aparece um corpo morto e, de repente, todos se tornam suspeitos do crime bárbaro. Para completar o clima de pânico, uma nevasca deixa os amigos isolados.
Se você gosta de um livro de mistério então não pode perder A última festa.
6. Escravidão contemporânea (organização de Leonardo Sakamoto)
Lançado no final de janeiro, o livro organizado por Leonardo Sakamoto veio à tona em um ano especial: em 2020 completamos 25 anos de combate ao trabalho escravo no Brasil.
A escravidão tem mudado de contornos ao longo das décadas e, também por esse motivo, vem sendo alvo de uma série de estudos que tentam compreender o fenômeno.
Em Escravidão contemporânea cada capítulo é escrito por um especialista – brasileiro ou estrangeiro – no assunto. Com uma formação diferente, cada convidado dá a perspectiva da sua área de atuação (são desde auditores fiscais, passando por procuradores e ativistas).
Se você quer se colocar a par de um dos problemas graves que assola a contemporaneidade recomendamos fortemente a leitura de Escravidão contemporânea.
7. A fronteira (Don Winslow)
Art Keller, o personagem principal de Don Winslow, acompanha há cerca de quarenta anos o problema do tráfico de drogas nos Estados Unidos.
O protagonista, que subiu de cargo e alcançou a função de diretor da DEA – departamento anti-drogas norte-americano – é obcecado por Adán Barrera, o maior nome do cartel de Sinaloa.
Keller testemunha uma epidemia do uso de heroína no seu país e assiste as consequências devastadoras da droga numa população vulnerável. Determinado a eliminar de vez o problema, ele se coloca em risco físico e mental para tentar conter a atuação do cartel.
O livro A fronteira já teve os direitos comprados e em breve se tornará uma série de televisão produzida pela Fox.
8. O sedutor do sertão (Ariano Suassuna)
Quem é que não conhece a obra do nosso saudoso Ariano Suassuna(1927- 2014)? Seis anos depois da sua morte, ganhamos o privilégio de conhecer uma história inédita narrada por esse mestre do sertão.
A história, originalmente pensada para se tornar um filme, agora foi lançada sob a forma de livro. O romance, inédito, foi escrito em 1966 com o objetivo de ser roteiro de um filme que nunca chegou a ser lançado.
O protagonista de Suassuna é Malaquias Pavão, um sedutor de mão cheia que vive na Paraíba durante os anos trinta.
A narrativa é permeada de cinquenta ilustrações feitas por Manuel Dantas Suassuna, filho do escritor.
Relembre a trajetória do escritor lendo o artigo Ariano Suassuna: vida e obra.
9. A guerra pela Uber (Mike Isaac)
Todos nós temos uma opinião sobre essa nova forma de pensar a mobilidade urbana. Goste ou não goste da multinacional norte-americana, a Uber mudou a nossa maneira de encarar o transporte nas grandes cidades.
O repórter do New York Times Mike Isaac escolheu narrar na sua nova obra os bastidores da polêmica empresa que criou um novo sistema de transporte particular mais barato que os tradicionais taxis.
Ao longo das páginas, vemos como a startup ascendeu e como vem enfrentando uma série de problemas tanto a nível regional quanto mundial.
10. A Odisséia de Penélope (Margaret Atwood)
A escritora canadense celebrada pela obra A história de uma serva traz agora ao público uma narrativa envolvendo uma das personagens mais comentadas da mitologia grega: Penélope, a mulher de Ulisses.
Se na história original a personagem fica sozinha enquanto o marido batalha na guerra de Tróia, na releitura contemporânea feita por Margaret o narrador dá voz a mulher e as suas doze cridas, permitindo que elas contem a versão delas dos fatos.
O livro A Odisséia de Penélope foi publicado originalmente em 2005 e só agora chega ao mercado de língua portuguesa.
11. Uma chance de lutar (Elizabeth Warren)
Você pode não ter ouvido falar muito na senadora Elizabeth Warren, mas tenho certeza que a história de vida dessa mulher poderosa irá te tirar do lugar.
A menina que nasceu numa família humilde – o pai era zelador e a mãe telefonista – cresceu num contexto social em que o objetivo das mulheres era arrumar um bom marido e ponto final.
Elizabeth, no entanto, escolheu um caminho bem diferente: virou professora de Harvard, alcançou o cargo de consultora do Congresso americano e chegou a ser assistente do presidente Barack Obama.
Sua última vitória foi alcançada aos 62 anos, quando se tornou senadora pelo estado de Massachusetts. Conhecer a história dessa mulher é descobrir um retrato das dificuldades que enfrentou e também perceber de que forma é possível superar as barreiras sociais impostas.
12. A ocupação (Julián Fuks)
Um dos grandes nomes da literatura brasileira, o premiado Julián Fuks lança em 2020 o seu novo romance chamado A ocupação.
A história tem como pano de fundo um prédio ocupado na capital paulista. A narrativa nos fala sobre a capacidade humana de resiliência e de lidar com a perda.
Quem conta essa história é Sebastián, um alter ego do escritor que conversa com as pessoas que foram viver no edifício abandonado. Em paralelo, Sebastián enfrenta na sua vida pessoal questões densas como a doença do pai e a eminência de ser pai.
O romance alterna questões políticas e da esfera pública com momentos íntimos de hesitação pessoal.
Escritores renovam a tradição da crônica carioca em livros recém-lançados
O Rio se torna protagonista nas obras de Luiz Antonio Simas, Marcelo Moutinho e Rafael Freitas da Silva
Pedro Tinoco
Em recente terça-feira chuvosa, meio da tarde, dezenas de pessoas disputavam lugar na calçada diante do Bar Madrid. O boteco tijucano oferece cerveja gelada, batidas de respeito e petiscos atraentes, …
Leia mais em: https://vejario.abril.com.br/cidade/escritores-cronica-carioca-livros-lancados/
Carta ao leitor desconhecido em busca de novidades
Rodrigo Casarin
Caro leitor desconhecido, como andam as coisas? Espero que esteja bem, apesar de tudo. Por aqui, sigo tocando a vida da forma que é possível. Engraçado como as coisas mais corriqueiras ficam confusas nesses tempos. Minhas leituras, por exemplo. Estão uma bagunça danada. Tem dias que leio como se fosse esgotar toda a biblioteca; em outros, não consigo passar de algumas páginas. Pelo menos tenho lido uns negócios interessantes. Já ouviu falar da Andrea Jeftanovic, meu amigo? É uma boa contista chilena, viu. Um livro dela acabou de sair por aqui pela Mudaréu, com tradução do Luis Reyes Gil. Chama “Não Aceite Caramelos de Estranhos”. São onze contos, alguns com uma potência bastante p… – Veja mais em https://www.uol.com.br/splash/colunas/pagina-cinco/2020/05/15/carta-ao-leitor-desconhecido.htm?cmpid=copiaecola
De rinocerontes, aranhas e ruas
Três livros da literatura brasileira contemporânea que jogam o leitor no abismo existencial, oferecendo reflexões contundentes e explorando as dores humanas
Jorge Ialanji Filholini
Um bom livro é aquele que te carrega para dentro de uma casa abandonada e escura. Sabemos que ali encontraremos os cômodos, cada qual divididos de diferentes formas, comprimentos e larguras, sabemos que naquela casa haverá banheiro, quartos, cozinha, sala, corredores, etc. O que a convenção social nos demonstrou. Ou o que a arquitetura em sua história propôs. Mas, caminhando virgens no breu, não conseguiremos identificar, à primeira impressão, como estão dispostos esses cômodos. Nem mesmo saberemos chegar nesses espaços. Confortáveis ou não, só teremos noções quando o corpo sentir e responder. Para um leitor, as histórias narradas em O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler, Aranhas, de Carlos Henrique Schroeder, e Rua de dentro, de Marcelo Moutinho, todos lançados em 2020, ultrapassam as conotações atribuídas aos gêneros literários, atravessando as páginas, transformando a leitura em vibrações corporais e mentais.
(…)
Rua de dentro é um marco da geografia literária de Moutinho, a calçada colada com caquinhos de porcelanato, presente na capa do livro, é uma metáfora dos fragmentos narrativos e personagens abordados durante as treze histórias. O mais inventivo na escrita de Moutinho é a sua articulação com o tempo na literatura. Este apontamento está muito bem construído no conto de abertura da obra: Purpurina. Nele, somos levados às tantas fases na vida da protagonista, a travesti Camile. Com cortes temporais abruptos, mas que não deixam a leitura incomodada, Moutinho seleciona fachos de lembranças marcantes da personagem. Os percursos urbanos obscuros e escondidos são iluminados pela lanterna da protagonista. Nesta condução narrativa pelo túnel escuro de um Rio de Janeiro enigmático, presenciamos os diversos momentos de Camile, desde a infância até o trabalho na prostituição, além de trazer reflexões relacionadas às condições preconceituosas:
— Travesti é igual purpurina, brilha e incomoda — me disse a Luana numa noite de pista na Lapa. Com o passar dos anos, entendi que a gente está invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados. Da alegria, talvez.
Outra história marcante na obra é Militante. Moutinho retrata um dia na vida de uma mulher que trabalha na campanha eleitoral de um político, mas sempre com o pensamento no cachê que sua jornada de trabalho proporcionou. Uma explanação dos descasos político e social expostos às circunstâncias de diversos trabalhadores durante as eleições:
A gente trabalhou por quase quinze horas seguidas, à base de sanduíche e refresco de laranja. Sem muxoxo ou cara feia. Mas deu ruim. Um fulano lá acabou vencendo e nosso dinheiro nunca chegou. Não tem papel, assinatura, contrato, é tudo de boca. Vou cobrar de quem?
No conto, Moutinho não prioriza a corrida política pelo escopo do candidato. Aqui, o autor segue a fala dos sujeitos que estão atrás das cortinas dos palanques, entrando com tudo no período eleitoral, no intuito de obter, assim, o ganha pão, e sendo, muitas vezes, desvalorizados da função e sem garantias de salários.
Por via das dúvidas, é melhor mesmo que nosso candidato ganhe. Recebendo o pagamento, tô mais que satisfeita. Resolvo as pendências, reforço a despensa e ainda faço uma graça com o Uéslei. Melhor não arriscar, não. Eleição é fogo. Mas na próxima, graças a Deus, a Giovana já vai ser maior de idade. Pra segurar bandeira também e dar uma moral nas despesas da casa.
Um exemplo da construção de uma narrativa precisa, em que acompanhamos as duas perspectivas dos acontecimentos desenvolvidos pela trama, está em Memória da chuva. Para mim, o conto que mais demonstra o ótimo manuseio literário de Moutinho. Estão nas entrelinhas as pluralidades do debate do enorme distanciamento social na cidade carioca ao contar a história de dois amigos: Maicon é morador do Santa Marta e Rafael é morador de um condomínio de classe média. O curioso, e talvez o pulo do gato, na forma de desenvolvimento do conto é a organização dos fatos que preocupam o pai de Rafael, desconstruindo e apontando hipocrisias em torno de seu discurso:
Raimundo conhece o amigo de seu filho. Levou-o, por mais de uma ocasião, para passar o domingo na piscina do condomínio do Palazzo São Clemente. Ele e a esposa, Helena, têm carinho por Maicon e acham importante Rafael se relacionar com pessoas de fora de seu estrato social.
A trama fica mais particular, no aspecto crítico, quando Maicon convida Rafael para passar um final de semana em sua casa, preocupando Raimundo, pontuando importantes debates sobre as desinformações que são fornecidas em relação às comunidades da cidade, assim como a questão geracional engendradas nos estratos sociais pejorativamente herdados durante a história do país:
— Se ele pode vir aqui, por que não posso ir lá?
— É diferente, Rafael.
— Mas diferente por quê?
Os questionamentos de Rafael são bem trabalhados por Moutinho, pois o autor não se distancia do questionamento da criança e da formação de sua consciência. Para a personagem, o importante é partilhar com o amigo as brincadeiras, como soltar pipa, jogar futebol — desejos deslocados do pensamento segregador do pai.
Rafael subiu a ladeira principal excitado pela paisagem quase barroca do Santa Marta. Biroscas, barracas de comida japonesa e biscoito, uma pet shop vendendo cartões-postais, Kombis de cachorro-quente, o televisor de tubo, ligado e apoiado sobre uma cadeira em plena calçada, um carro abandonado, a murada colorida de grafite e formas geométricas.
No desenrolar deste conto, notamos que Rafael queria apenas ficar perto do amigo, ter novas experiências, sem observar o poder aquisitivo dos genitores de Maicon. São os simples momentos causados pela sua jovem vivência que o distinguirá das suposições e medos proporcionados por um corpo social que resvala na rejeição sistemática em meio à geografia urbana.
Rua de dentro é a cidade do Rio de Janeiro na observação e imaginário de Marcelo Moutinho. Cada pessoa tem em seu interior uma cidade, moradia qualquer, onde constrói as engrenagens que ligam as memórias das dores, dos amores, das solidões, das angústias, das mortes, dos vestígios que contemplam a atual literatura, como nos contos Um dia qualquer, Ocorrência, Fada do Dente, Cheiro, Comida a quilo e Endless love.
Marcelo Moutinho já é um excelente cronista e, agora, com Rua de Dentro, seu quinto livro de contos, consagra-se também como um ótimo contista. Como apontado no começo, na geografia literária, a exemplo do que ocorre nos trabalhos de Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Sant’Anna, Eliana Alves Cruz e Paulo Lins, o Rio de Janeiro de Moutinho garante notoriedade por meio de suas ruas e de seus personagens, guiando-nos, sem precisar de mapas, cada vez mais para dentro da cidade.
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