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- Editora Rocco
- 2015
- ISBN 978-85-325-2981-7
- Português
- Capa Tipo Brochura
- 232 Páginas
“O Rio é uma cidade com muitas cidades dentro, já dizia Marques Rebelo, e o texto de Marcelo Moutinho vai transitando por todas elas, sem preconceito de turma, um abraço em Bide e Marçal no Estácio, outro em Lima Barreto no hospício do Engenho de Dentro, um beijo respeitoso nas mãos de Rubem Braga na Barão da Torres – e ele vai assim, chapéu de lado, a coroa do Império Serrano na camiseta, tamanco arrastando, malemolentemente carioca, mas evitando essas palavras enormes, porque o bom cronista, como ele, leva a viva no papo reto e na filosofia do flanelinha da Lapa: deixa solto, Marcelo”.
Joaquim Ferreira dos Santos
Craque do conto e da crônica, Marcelo Moutinho trata a menina, digo, a palavra, com dengo e amor – como na recomendação do gênio Didi para o bom zelo com a bola no futebol. Daí é só deixar rolar o assunto, no desdobramento do dia, na ordem natural da pauta do botequim e de outras miudezas que fazem a grandeza do cronista. Moutinho passa a régua e faz do lirismo um “pindura” ao avesso, um crédito para o freguês-leitor que vai voltar sempre ao seu estabelecimento lítero-carnavalesco. Também pudera. No tal recinto gira sempre em torno do sol do Rio de Janeiro um vinil do João Nogueira. “Mais uma”, pedimos em coro. Foi o que senti ao dobrar e desdobrar as páginas deste livro”.
Xico Sá
Na dobra do dia
Marcelo Moutinho
Existe uma hora imprecisa no dia. Em todos os dias. Impossível definir se está claro ou escuro, se ainda é tarde ou a noite já chegou, cobrindo tudo com sua manta pesada.
Da janela de minha sala, vejo a copa das árvores do Aterro do Flamengo, os barcos estacionados na Marina, o Museu de Arte Moderna. Os carros e ônibus correm pelo minhocão próximo ao aeroporto marcando seu trajeto com faróis de vaga-lume. Passam, mais ligeiros que o tempo, na ânsia de simplesmente chegar em casa, ou num ponto qualquer onde alguém espera. Uma esquina ou mesa de bar, e serão bebidas as horas que acabaram de morrer embora ainda respirem na memória, ofegantes.
Ao fundo, em meio a um tapete verde, o Outeiro da Glória acena com sua imponência tímida. A cidade que permanece. Minha mãe sempre se benze quando avista uma igreja, eu não. Minha mãe não vai à missa, eu tampouco.
Passam-se alguns minutos e a noite é por um triz. Ainda não. Posso enxergar em lusco-fusco a fileira de prédios da Glória e do Catete formando uma parede compacta e feia. As luzes acesas dos apartamentos, fagulhas numa boca banguela. E as favelas de Santa Teresa, uma, duas, três, tantas.
Olhando daqui, o Cristo é uma miniatura, suvenir. Os braços estendem sobre a paisagem seu zelo de pedra.
Aos poucos, o azul se mescla ao laranja num céu de poucas cores, muitos matizes. Não há chuva à vista.
Um tom a mais, e basta um tom: a cidade perde contornos, ganha contraste, fica mais bonita. Mais bonita do que sob o sol estourado do meio-dia. Mais bonita do que sob a lua redonda da meia-noite. Na dobra do dia, quando é melancolia e alarido, fadiga e promessa de descanso. Quando a cidade é borda.
Na bifurcação da pista da Avenida Marechal Câmara, a estátua de Manuel Buarque de Macedo parece orientar o trânsito. Um guarda de bronze, em fraque imponente.
A redação começa a se esvaziar e os vidros grossos da janela me garantem silêncio. Adivinho o olor da maresia que volta e meia sopra do Aterro. Adivinho o mau cheiro da baía. E escurece ainda mais.
“Não é ainda, mas é quase”, como escreveu Paulo Mendes Campos, aquele mesmo que nos ensinou o que sempre soubemos: que o amor acaba. Assim como acabam os dias, para então recomeçar.
* Esta crônica integra o livro Na dobra do dia (Rocco, 2015)
Em seu primeiro livro de crônicas, Marcelo Moutinho mapeia memória das ruas do Rio
“Penso se não somos, todos, a mescla das ruas em que habitamos”, escreve Marcelo Moutinho a certa altura de “Na dobra do dia” (Rocco). A comunhão entre o escritor e a cidade, entre memórias pessoais e coletivas, é um dos temas centrais de seu primeiro livro de crônicas, que será lançado dia 28, terça-feira, às 19h, na Travessa de Botafogo.
Autor de volumes de contos como “A palavra ausente” (2011) e “Somos todos iguais nesta noite” (2006), Moutinho desenha em suas crônicas um mapa afetivo do Rio. Nessa cartografia pessoal, ganham destaque o bairro de Madureira, onde o escritor de 42 anos passou a infância, a Lapa e o Centro, com seus bares tradicionais e personagens coloridos nas ruas.
Dividido em duas partes, “Na dobra do dia” começa com textos de tom memorialista, que evocam o subúrbio dos anos 1970 e 80, terra de carnaval de rua, doces de Cosme e Damião e peladas no asfalto. Na segunda parte, o olhar do cronista se volta para o presente, mas sem deixar de lado o efeito da passagem do tempo sobre a cidade, seus habitantes e tradições.
— A primeira parte do livro resgata um subúrbio que talvez já não exista mais. A segunda se concentra em personagens e cenários que tendem a desaparecer. Falo do Bar Brasil, por exemplo, como símbolo de outra época que resiste numa Lapa em transformação. É uma luta inglória contra a finitude, como se, registrando em papel esses emblemas da cidade, eles de alguma forma continuassem vivos — diz Moutinho.
Cada parte do livro leva no título uma frase de um autor que representa uma vertente da crônica brasileira. A primeira, “Pequenos amores da armadilha terrestre”, remete ao lirismo intimista do mineiro Paulo Mendes Campos. Nesta seção, em meio a reflexões sobre separações e recomeços, sobre a companhia dos gatos e a solidão das casas vazias, vai se revelando aos poucos um personagem do livro, o pai do cronista. Seguindo as lições de Campos, Moutinho ilumina sua personalidade com detalhes simples e marcantes: era um homem retraído, que “só chutava de bico”, mas também um pai zeloso que, ao volante, numa freada brusca, sempre lembrava de estender o braço para proteger o filho.
— Paulo Mendes Campos é meu cronista preferido. Ele consegue no texto uma simplicidade difícil de alcançar. “O amor acaba”, para mim o melhor texto já escrito sobre o fim do amor, é só uma enumeração de situações, mas as imagens são tão poderosas que ficam com o leitor. Parece simples, mas é muito sofisticado.
A segunda parte é batizada com um lema de outro mestre da crônica nacional, o carioca João do Rio: “As ruas pensam”. Esta seção está repleta de tipos da cidade, dos mais conhecidos, como Alfredinho, dono do bar Bip Bip, em Copacabana, aos anônimos, como um rapaz que passa os dias na esquina das ruas Mem de Sá e Gomes Freire, na Lapa, soltando uma pipa imaginária, enquanto as pessoas passam sem dar atenção.
— João do Rio é o exemplo do cronista que observa os personagens urbanos, que tenta destacar do fundo chapado da cidade as suas miudezas. A crônica enxerga o que está lá, mas nem sempre é visto — define Moutinho.
As cerca de 50 crônicas de “Na dobra do dia” foram escritas ao longo dos últimos quatro anos e publicadas no site “Vida breve” (www.vidabreve.com), onde Moutinho tem uma coluna semanal, ao lado de escritores e cronistas como Humberto Werneck, Ivana Arruda Leite e Henrique Rodrigues. Para o autor, a internet tem sido um espaço de sobrevivência para um gênero literário que já ocupou mais espaço na imprensa:
— A crônica brasileira nasceu nos jornais e aos poucos ganhou os traços que se tornariam sua marca, o tom de conversa, de papo que vagabundeia pela rua. Mas hoje, nos jornais, ela é minoritária. A maioria das colunas é de opinião, o que tem sua importância, mas é diferente. A crônica não está preocupada em convencer o leitor de algo. Como disse Antonio Candido, a crônica é um gênero literário menor, graças a Deus, porque assim fica mais perto da gente.
Mário de Andrade defendia que se deve “escrever para jornal como se fosse para livro”. Nesta coletânea de crônicas, Marcelo Moutinho atualiza a recomendação, reunindo textos originalmente publicados na internet. O autor carioca não segue a crônica lírica à la Rubem Braga, que ilumina o cotidiano ao encontrar sentidos epifânicos até em guarda-chuvas.
Antes, partindo de uma letra de música, de um filme, de um livro, ou mesmo de uma fotografia, parece seguir a linhagem de uma crônica capaz de desacelerar o tempo a tal ponto que faz parecer fácil extrair daí os instantâneos de uma experiência prosaica, com os detalhes pequenos e duradouros guardados na memória.
E chega a nos convencer de que nós também, em nossas vidas pacatas ou agitadas, no subúrbio ou com vistas para o centro da metrópole, somos feitos de matéria essencialmente literária, “como um balão de São João que enfeita o céu e depois provoca incêndio, para enfim se apagar”.
Marcelo Moutinho estreia na crônica com livro “Na dobra do dia”
Há um espaço cinzento entre a ficção e o jornalismo — um lugar, na verdade um estilo literário, chamado crônica. Curta por natureza, e sempre recebida com ressalvas por meio da crítica, é por meio dela que os leitores conseguem enxergar detalhes da cidade que, quase sempre, parecem invisíveis.
Nele, nomes como João do Rio, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga descreveram minúcias, pessoas, comportamentos, locais, traições, amores e lembranças que formam uma espécie de radiografia detalhada das ruas. E é nesse campo que Marcelo Moutinho — após o lançamento de quatro livros, três de contos e um infantil — começará a jogar a partir da próxima terça, às 19h, na Livraria da Travessa em Botafogo, quando ‘Na Dobra do Dia’ (Editora Rocco, 232 págs., R$ 34,50) for lançado.
“Sempre gostei e li muitas crônicas, que costumavam ser comuns em jornais e revistas. Hoje em dia, esse tipo de leitura migrou quase que totalmente para o meio virtual”, explica Moutinho. Dentro dessa realidade descrita pelo escritor, muitos dos textos que compõem ‘Na Dobra do Dia’ vieram do site ‘Vida Breve’, no qual ele e outros escritores exercitam a arte das formas curtas, sejam crônicas ou contos.
Os textos de Moutinho são ambientados no Rio de Janeiro. A partir desse cenário geográfico, ele mergulha tanto em viagens sentimentais, que remetem às lembranças da infância no subúrbio da cidade, quanto na observação de personagens anônimos da metrópole, como o homem que mexe os braços de força ritmada e intensa, no cruzamento da Rua Mem de Sá com Avenida Gomes Freire, na Lapa. “Isso me instigou. O livro consegue ser pessoal e familiar e também voltar os olhos para a cidade.”
Aquarela carioca
Há um fascínio amedrontado que paira sobre o subúrbio carioca. Poucos são aqueles que, ao desembarcar no Aeroporto do Galeão, olhando a igreja da Penha perdida numa montanha longínqua e cercada pelo Complexo do Alemão, não tenha um sentimento de comoção. É como se a paisagem com seu horizonte de montanhas tivesse a capacidade de transmitir tranquilidades, mas logo surge o medo medonho, a lembrança dos jornais a noticiar as tantas guerras que circulam por aqueles becos inatingíveis.
Estamos na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com seu misto de terror e êxtase, enfim, como definiu o cronista José Carlos Oliveira.
O novo livro de Marcelo Moutinho, a reunião de crônicas Na dobra do dia, no entanto, quebra estereótipos e imagens pré-concebidas para mostrar uma outra cara do subúrbio carioca, onde ele foi criado. Ali vicejam as rodas de samba e as amizades sinceras. Com o tempo, o cronista mudou para a Barra, no outro lado da cidade, e aprendeu a circular pela elegância da Zona Sul — Ipanema e Copacabana. E antes de enxergar uma cidade partida, como viu Zuenir Ventura, abraçou uma comunidade unificada pelos mesmos dramas cotidianos, pelas mesmas paixões eternas e fugazes.
Como João do Rio, Moutinho vasculha todos os cantos do Rio de Janeiro. Como Rubem Braga, sabe catar a poesia desenhada em cada uma de suas calçadas, e como Nelson Rodrigues, arranca os dramas gregos de cada cidadão comum e os conta com lirismo e graça, como fez Fernando Sabino. Em outras palavras, Marcelo Moutinho retoma uma das mais sólidas tradições de nossa crônica, o texto feito para falar de uma cidade e não apenas o olhar individualista e petulante que tanta grassa nos cronistas de plantão.
Aliás, as crônicas de Na dobra do dia, involuntariamente, levam o leitor a se perguntar pelos caminhos ora seguidos pelos cronistas em atividade. Em geral esta gente se prende ao espaço para falar de suas preferências políticas, de suas queixas com o espaço urbano onde vivem, dos incômodos que atropelam suas vidas nem sempre interessantes. Já aquele ponto de respiro que merece o leitor em meio às notícias terrificantes dos jornais está cada vez mais negligenciado. Não que tudo esteja perdido, afinal Luis Fernando Verissimo e Ignácio de Loyola Brandão, entre outros, ainda estão aí para nos alentar.
Voltando ao texto de Marcelo Moutinho e ao Rio de Janeiro, o cronista desenha uma cidade idealizada, com seus problemas e suas mazelas, sim, mas tudo edulcorado pelas tintas do humor e da placidez. Até mesmo as perdas, como as mortes do pai e de alguns amigos, não são maculadas pela dor extrema. Das tragédias pessoais ficam a saudade e as impossibilidades determinadas pela ausência. Este otimismo, por sua vez, não lhe tira o senso crítico. Somente estamos diante de uma aquarela, não tão ufanista como aquela de Ari Barroso, mas tão vibrante e contente quanto.
E neste caleidoscópio vamos conhecendo um pouco do samba, das escolas onde passistas derramam emoções, da formação de um gosto musical. Foi no toca-fitas do carro do pai que o menino Marcelo ouviu, até com certo desgosto, grandes nomes da música popular. Altemar Dutra e Herivelto Martins aos poucos terminaram por educar seus ouvidos, levaram os sentidos do moço a apreender o apuro poético que havia nas letras que cantavam. Também deste ambiente que resguardava uma alegria atávica, o cronista trouxe o gosto pela boêmia, pelos chopes, pelos bares nostálgicos, os filhos diletos de uma cidade ainda ingênua. Sim, estes ambientes ainda sobrevivem, pelo menos é o que nos assegura o cronista.
Mas Moutinho estaria preso ao apenas folclórico se não conseguisse falar de algo além do “Rio de sambas e batucadas, de malandros e mulatas de requebros febris”, como no samba de Silas de Oliveira, da Império Serrano, como o cronista. Assim sua cidade, além de solar e sonora, se presta à reflexão.
As crônicas tecem os fios das letras e dos livros. A aventura de descobrir um texto perfeito, um autor requintado, a formação de um leitor compulsivo. E aí nos deparamos com algo que vai além do mero cotidiano, da mera euforia para cair numa reflexão embasada nos sentimentos oferecidos pelas leituras, as múltiplas leituras que possibilita a própria vida.
Com este cabedal é que Marcelo Moutinho trabalha o refinamento de uma linguagem própria das ruas, mas sem cair na facilidade da gíria passageira, armadilha tão antiga. Desde antes de 1912, quando o genial Elysio de Carvalho escreveu A gíria dos gatunos cariocas, que as expressões populares são um ponto de interesse dos intelectuais. Por isso, talvez, Moutinho as use com parcimônia, sem tirar qualquer entendimento do leitor comum, sem datar seu texto.
No mais são mesmo os panoramas de uma cidade viva, marcada pelos prazeres e as dores, e as agruras de um cronista. Ele sofre com a falta de assunto, ou com o excesso dele. O certo é que deita sua escrita pelos caminhos do deleite.
Um cronista de fato, com todos os requisitos de uma tradição já tão longa quanto fértil.
Carta entre amigos
Foi na leitura de Regras para o parque humano, de Sloterdijk, que encontrei uma afirmação do escritor Jean Paul: livros são como cartas escritas a amigos, só que mais longas.
Para Sloterdjik, a natureza e a função do humanismo, e mesmo sua resistência à morte no correr dos tempos, residem justamente nessa amizade a distância que a escrita propicia. O que há de humano em nós atravessa os séculos em grande parte pela capacidade da escrita de fazer amigos através do texto.
O que escrevo parece, em primeira instância, escrito para mim, e de fato é para mim que escrevo. Na verdade, escrevo para o leitor que há em mim. É esse leitor (eu) que move a minha escrita. Por outro lado, minha escrita também caminha para fora, para o leitor real. E esse leitor, que quero cativar (capturar, tornar cativo do meu texto) não pode ser outro senão um amigo. Amigo que não conheço e provavelmente jamais vou conhecer, que pode estar noutro país, lendo em outra língua o que escrevi, ou noutro tempo, futuro, mas que evoco como quem de fato procura, e precisa, de um amigo. Como uma espécie de Sherazade, se meu texto funcionar, amigo feito. Se não, morte à espreita.
Foi nisso que pensei enquanto ouvia meu amigo – não um amigo desconhecido, como o do parágrafo anterior, mas de convívio frequente há uns vinte anos – falando sobre seu novo livro, Na dobra do dia.
Eu estava ali, na universidade que é o lugar que mais frequentei na minha vida, uma outra casa, a convite de outro grande amigo, João Cezar de Castro Rocha, diante de amigos queridos, Ana Chiara, Marcus Vinícius, alunos e ex-alunos (parceiros nessa teia, rica e fundamental, da amizade, nos seus diversos desdobramentos). Estava fazendo parte de um bem-sucedido projeto do João, Literatura Brasileira Hoje, desenvolvido na UERJ ao longo de 2015, mediando a conversa do Marcelo Moutinho com o público. Mas não era só isso.
Se livros são cartas escritas a amigos, que conhecemos ou não, e se essas cartas podem tomar várias formas, em gênero não apenas literários, talvez a que mais se ajuste a essa escrita entre amigos seja a crônica. Em especial aquele tipo de crônica em vias de extinção, praticada por Drummond, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, em que o cronista abre seu coração (nem sempre só de papel e tinta) e convida para um cafezinho o leitor, do outro lado da página, mesmo que seja um convite enviesado, o cronista falando de si sem deixar de ajustar com cuidado, muito cuidado, as costuras, dobras, volteios do seu justo disfarce.
O livro do Marcelo é um acinte. Um elegante acinte, uma forma de manter vivo o que, repito, pode existir de humano em cada um de nós diante do esforço contínuo, avassalador, vindo de várias partes, o esforço de apagar as diferenças, apagar os rastros, de que somos vítimas todos os dias, leitores e escritores. Na dobra do dia é um livro ousado, de uma ousadia construída com a suavidade e a firmeza de quem não precisa gritar para ser ouvido. É um livro que anda na contramão da mesmice, do processo emburrecedor de que somos alvo, mais ou menos certeiro, conforme as circunstâncias, e busca o resgate de uma memória que pode nos salvar de tudo que está aí. (Memória que é um dos pontos altos da escrita do Marcelo, nos contos e nas crônicas, aqui e noutros livros, memória não apenas do autor mas dos cronistas que leu.)
Marcelo abriu a noite falando sobre como concebeu a arquitetura de Na dobra do dia homenageando dois de seus cronistas favoritos, de quem recorta as duas frases de cada parte do livro. A primeira tem por título “Pequenos amores da armadilha terrestre”, de Paulo Mendes Campos. A segunda vem de João do Rio, também com uma frase pinçada do repertório do autor, que via nas ruas pensamento e alma: “As ruas pensam.”
Como bom cronista, e contista, Marcelo não tem o péssimo hábito de apenas reunir da gaveta as crônicas publicadas e juntá-las em livro, sem mais. Ele sabe que o livro que prepara, que vai dar a público, tem que ser feito no capricho, não é apenas uma mensagem de e-mail ou algo que o valha, é uma carta, escrita a mão, na calma e paciência que merece uma carta de verdade, escrita a um amigo de verdade.
Com esse cuidado, esse capricho – e, sem dúvida, essa entrega, que é menos e mais do que uma autobiografia tornada pública – que Marcelo não apenas escreveu cada uma das belas crônicas mas pensou no modo de selecioná-las (tarefa inglória) e depois organizá-las em livro.
A certa altura, Marcelo deixou de lado a conversa sobre os bastidores da criação e passou a ler, a meu convite, as próprias crônicas. É sempre uma riqueza ouvir um escritor lendo seu próprio texto. Não importa se a leitura é competente – no caso, foi – ou se o autor é um tímido, lendo para dentro, ou se gagueja na leitura. Importa que, ao ler, ele meio que faz uma viagem de volta à origem, do texto em primeiro lugar, e ao que estava antes do texto também. É comovente ouvir um escritor lendo seu próprio texto, se entregando ali uma segunda vez, à procura de amigos.
Marcelo leu a crônica que dá título ao livro. E mais adiante, a pedido da Ana Chiara, uma crônica que falasse de Madureira, bairro onde Marcelo nasceu. Ele escolheu “Subúrbio”. Mais adiante, novamente a pedido da Ana, leu o belíssimo conto “Água”, do livro A palavra ausente.
A noite de quarta foi memorável, em todos os sentidos. Foi uma celebração da amizade, uma estranha e fascinante amizade entre textos – os do Marcelo, lidos ali, com os outros, evocados por ele ou pela plateia – e também uma outra forma de celebração, entre amigos antigos e novos, que foram se fazendo naquela sala e, estou certo, vão perdurar leitura afora, pelas páginas, pelos dias.
Breve entrevista – Perguntas de Flávio Carneiro para Marcelo Moutinho
Como você lida com o leitor de crônicas que você é? Como a leitura dos cronistas da sua preferência interfere, se é que interfere, no seu exercício de cronista?
Marcelo Moutinho – Não penso nesse leitor que sou, ou fui, no momento em que escrevo as crônicas. Mas talvez inferira, já que aquilo que lemos passa a fazer parte de nosso repertório, seja o consciente ou o inconsciente. Claro que há temas que atravessam cronistas de diferentes épocas e gerações, como o clássico mote da falta de assunto. E, nesses casos, torna-se fundamental conhecer o legado que outros colegas deixaram. Para não sermos mero repetidores e, mais essencial, para dialogar com eles.
João do Rio diz que as ruas não apenas pensam – como na frase que você usa para nomear a segunda parte do seu livro – mas têm alma. E sabemos, claro, que elas também têm memória. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso: as ruas pensam, sentem e lembram?
Marcelo Moutinho – Tem alma e memória. Gosto de pensar que certos lugares guardam a lembrança do que foram um dia, de como foram, do que aconteceu ali. O prédio de uma escola, o banco de uma praça, espaços aparentemente ordinários do ponto de vista da grande história ou da arquitetura, podem carrear mundos inteiros de afetos. As ruas conjugam a concretude do asfalto, das paredes, com o emaranhado de vidas que as cruzam. São uma síntese de muitos fios, uma interseção profundamente simbólica. Como escreveu o próprio João do Rio, “há suor humano na argamassa do seu calçamento”. Daí a ideia de que, sim, pensam, tem nervos, são potentes como sítios de criação. Na segunda parte de “Na dobra do dia”, essa perspectiva serve como norte para um passeio pelas ruas da cidade. Da cidade que permanece e da cidade que se foi.
A memória é matéria-prima dos seus contos e crônicas. Como se dá isso, essa relação da memória com a escrita, no seu processo de criação?
Marcelo Moutinho – Gosto muito de uma expressão que o Carlos Heitor Cony usou para dar título a um de seus romances: “matéria de memória”. Meus contos e crônicas, em determinado sentido, são isso. Recolhas de histórias e experiências que, envernizadas pela ficção, buscam a vida que pulsa nas miudezas. Muitas vezes quase que silenciosamente. Como a da moça que observa o mundo de uma janela da Praça Tiradentes ou a do menino que trai o pai na hora de escolher o time. O homem que maneja sua pipa imaginária na esquina da Mem de Sá com a Gomes Freire, a lembrança de uma festa de Cosme e Damião, o desalento da casa vazia. A escrita é capaz de dar eternidade à memória. Uma maneira de sacanear a morte, líquida e certa. De iludi-la. E eu quero mais é que a morte se dane.
Você disse uma vez, na FLIP, que jogar futebol é melhor do que escrever. Ainda pensa assim? E emendando nesta uma outra pergunta: que espaço o futebol ocupa na sua vida e de que modo entra, ou não, no que você escreve?
Marcelo Moutinho – Incomparavelmente melhor. Se você me perguntar se preferiria ser o craque meia-armador do Fluminense ou vencedor do Nobel, nem pensaria duas vezes quanto à resposta: jogador do Flu. Mas, como jogador, sou um escritor razoável. Então me resta escrever, embora não deixe de jogar minha pelada toda semana. O futebol ocupa grande espaço na minha vida e às vezes até gostaria que ocupasse menos. Uma derrota pode ser capaz de estragar meu dia, de destruir o bom humor. Parafraseando a expressão do Cortázar, no futebol a emoção vence a razão por nocaute, não por pontos. E, assim como as outras coisas presentes no meu cotidiano, desliza para a literatura de forma natural e espontânea. Gosto de explorar esse universo ficcionalmente, sobretudo nos contos. É um universo riquíssimo, que não raro resvala no trágico, nos dramas individuais. Como dizia o Nelson Rodrigues, em futebol, pior cego é o que só vê a bola.
O escritor carioca elegeu lugares fluminenses fundamentais na sua obra e na sua vida
Marcelo Moutinho é um escritor. Também é um guia, podemos dizer. Ou um cicerone. Ou, ainda, é um olho vivo no Rio de Janeiro. Mas não só olho, porque não vive apenas de imagens, pelo contrário, as traduz em palavras.
Quando li, há algum tempo, sobre o livro de crônicas que ele iria lançar, logo pensei: se encaixa certinho na coluna 3 lugares, do Roteiros. Mas, depois de terminar o livro, vi que era mais que isso. Na dobra do dia é a essência do Roteiros Literários.
Trata-se de uma reunião de crônicas curtinhas, que estão divididas em duas partes no livro: Pequenos Amores da Armadilha Terrestre e As Ruas Pensam. A primeira crônica, que tem o mesmo nome que dá título à obra – Na dobra do dia -, fala desse período do final do expediente, entre o cair da tarde e a chegada da noite. “Existe uma hora imprecisa do dia”, diz o autor. E termina invocando um dos deuses da crônica, homenageado por ele: Paulo Mendes Campos.
O pôr-do-sol no Rio de Janeiro é o convite de entrada do livro. É uma crônica linda e, ao mesmo tempo faceira, porque te dá a falsa sensação de que o livro vai ficar por ali, naquela cancha da subjetividade, mostrando os pontos turísticos de um Rio de Janeiro poético. Ledo engano, amigos, porque a segunda crônica já chega te puxando pela mão para um rolê pelo subúrbio. “Recebi um e-mail de minha irmã Lilian sobre o imóvel que temos em Madureira”. Pronto! É aí que começa a imersão.
Entre memórias de infância, nomes de rua, sambas-enredo e tradições como o dia de São Cosme e Damião, a gente vai conhecendo a Madureira do Marcelo. Conhece, meio que já conhecendo, porque a familiaridade que a narrativa traz parece cutucar também aquelas lembranças que a gente tem em algum lugar-comum do inconsciente: o piso de cacos cor de terra no quintal da casa, a cadeira trançada ou as prateleiras abarrotadas de enfeite – “Espaços livres são praticamente um interdito no subúrbio. Se há um canto sem móveis na sala, instala-se ali uma poltrona”, escreve o autor na crônica Subúrbio.
Na segunda parte, com a benção de João do Rio, Moutinho convida o leitor para um chope – com colarinho! – num dos muitos botecos que aparecem no livro: o Bip Bip, o Villarino, o Coisa da Antiga, o Semente, o Brasil, o Nova Capela o Cosmopolita e o A Paulistinha. É um passeio pela Lapa e pelo centro que tem aquele clima de papo de bar, na melhor síntese que uma crônica pode ter.
Por tudo isso que contei aí em cima, quando fui conversar com o Marcelo para essa matéria, não tinha como fugir do Rio de Janeiro na hora de escolher seus 3 lugares preferidos, aqueles que influenciaram sua escrita. Ele decidiu, então, falar sobre dois bairros cariocas e uma cidade fluminense. Acompanha aí:
MADUREIRA
“Foi o bairro em que eu nasci, que é muito importante em todas as coisas que eu escrevo e na minha própria vida. É onde ficava a casa da minha infância e onde também está a quadra da Império Serrano, minha escola de samba, onde eu desfilo todos os anos e tenho uma convivência com a comunidade local até hoje.
Essa minha Madureira afetiva começa mais ou menos na Rua Carvalho de Souza, que é a rua um pouco antes do viaduto – para quem conhece o bairro – e se encaminha até uns 500 metros, no início da Estrada do Portela, onde tem a quadra do Império Serrano, a parte mais comercial. O viaduto divide os dois bairros: de um lado um bairro mais residencial e do outro, uma espécie de centro comercial do subúrbio do Rio de Janeiro.
Esse lugar é de fundamental importância porque não foi só a minha primeira convivência de infância, mas por determinar alguns caminhos que eu literariamente exploro, que é esse universo do subúrbio carioca, da classe média baixa, não só nos contos, mas também e, principalmente, nas crônicas. Eu falo sobre esse universo urbano da cidade, a classe média/baixa que circula por esse universo”.
Foi em seu segundo livro, Somos Todos Iguais Nesta Noite, que ele passou a ter consciência de que o subúrbio era parte importante da sua escrita. “Era um momento que me parecia que a gente estava um pouco fechado numa dicotomia: havia os livros que falavam da favela, das comunidades, da violência e tal; e os livros que falavam dos dramas burgueses, e eu achava que aquela vivência que eu tinha experimentado estava sem lugar e eu queria escrever sobre isso – não só como testemunha, mas também usando esse universo como inspiração ficcional”.
Marcelo vive atualmente em Botafogo. Morou em Madureira até os 10 anos. O pai era comerciante local. E, depois, embora não morasse mais no bairro, ainda tinha um vínculo, já que a bisavó e as tias-avós moravam, e era lá onde ele estudava. “Embora eu não dormisse, passava praticamente o dia lá até o momento do vestibular, aos 17 anos”.
Ele também falou sobre o contato com Madureira hoje em dia. “Minha relação é muita atravessada pelo Império Serrano, que é a escola de samba que eu desfilo todo ano. Então, por exemplo, amanhã eu tenho ensaio e vou pra Madureira. Minha família não tem mais a loja, mas eu acabo frequentando o bairro por causa da quadra”.
CENTRO DA CIDADE
“O centro é onde eu trabalho desde os 19 anos e onde morei até o ano passado (na Lapa). O que me encanta no centro é uma coisa que talvez só a praia no Rio de Janeiro tenha: que é o espaço onde se juntam as pessoas de todos os cantos da cidade. As pessoas que vêm das zonas suburbanas; da zona sul – a zona mais nobre; as que vem da zona oeste e acabam indo para o centro trabalhar. Acho que é um universo muito rico de encontros e de sínteses. Quer dizer, numa cidade que, ao contrário do que se pensa, é muito setorizada – os ricos estão na zona sul, os mais ou menos ricos na Tijuca; e os mais pobres estão nas zonas periféricas – o centro, assim como a praia, é o espaço de convivência democrática dessas pessoas.
Fora isso, tem uma outra coisa bacana do centro que é a história. É onde a história do Rio de Janeiro praticamente começou, tem muitos prédios preservados… então há ali um sentimento de pertencimento e de ligação com o passado muito forte. É como se o passado tivesse sendo evocado o tempo todo, apesar da gente estar hoje vivendo em outro tempo”.
Moutinho trabalha na Ordem dos Advogados do Brasil, na Avenida Marechal Câmara, que é perto do Aeroporto Santos Dumont e razoavelmente perto do Morro do Castelo. “Tem vários lugares próximos que eu frequento, por exemplo: o bar Villarino, que tem uma crônica dedicada a ele no livro. É o bar onde o Tom Jobim conheceu o Vinicius de Moraes. Ele é muito famoso por isso hoje em dia, mas antes já era o bar da boemia antiga. Minha livraria preferida é a Folha Seca, na Rua do Ouvidor. Está para além do ir e vir do trabalho – de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Eu frequento muito o centro como o lugar para beber com meus amigos, para ir a livrarias, para ouvir samba e tudo mais”.
PARATY
“Meu irmão morou 12 anos em Paraty, desde antes da FLIP existir. Muita gente conhece a Paraty da FLIP, que é completamente diferente do tempo sem a FLIP. Tem uma crônica no livro sobre isso também. Acho bacana as pessoas irem também a esta outra Paraty.
Foi uma cidade que eu tive grande intimidade. Embora não seja tão perto do Rio, volta e meia eu estava lá. Parece que na FLIP ela se enche e perde um pouco das características próprias, fazendo uma espécie de cenário para uma importante festa literária. Talvez não seja muito possível observar os casarios, as lojas com aqueles pequenos balões da cidade. Me parece que a alma de Paraty é ser uma cidade um pouco vazia, não uma cidade cheia. É como se fosse uma cidade em que o tempo é um pouco mais lento, em que se vive um tempo de outro tempo, do passado.
E essa minha Paraty não fica apenas no centro histórico. Se estende, por exemplo, para Paraty Mirim, onde ficam as reservas indígenas e uma praia; para a estrada pra Cunha, que é uma parte mais rural; para a praia de São Gonçalo… quer dizer, é uma Paraty de uma desaceleração da vida [que na FLIP nem é possível já que você está sendo o tempo todo demandado] e que mistura de maneira incrível rio, mar, aldeia indígena, igrejas de referências portuguesas. Em Paraty Mirim tem a capela de Nossa Senhora da Conceição que fica na areia, uma ruína da época colonial dentro de uma reserva indígena. É uma síntese de natureza e de cultura muito incrível.
Gosto de Paraty quando ela está mais vazia, as praias estão mais vazias, você consegue caminhar, vagabundear, flanar pela cidade sem pressa e podendo demorar 3 horas num almoço, tomando cachaça e cerveja”
Três perguntas para Marcelo Moutinho
Autor dos livros de contos “A palavra ausente” (Rocco, 2011), “Somos todos iguais nesta noite” (Rocco, 2006) e “Memória dos barcos” (7 Letras, 2001) e do infantil “A menina que perdeu as cores” (Pallas, 2013), o carioca Marcelo Moutinho está lançando “Na dobra do dia” (Rocco), com uma seleção de crônicas publicadas no site Vida breve.
SM – A divisão do livro em duas partes também tem a ver com a dobra do jornal à qual se refere o título do livro?
MM – Na verdade, o título foi retirado da crônica que abre o livro. O texto trata daquele daquele instante em que se torna impossível definir se ainda é tarde ou a noite já chegou. O tal do crepúsculo. Acredito que a crónica, como gênero literário, também tem suas bordas borradas. Aproxima-se do jornalismo, mas tem muito de subjetividade. A princípio não é escrita para durar, mas por vezes permanece, alheia à passagem do tempo. Já a divisão interna se deu a partir de frases de dois cronistas que admiro: Paulo Mendes Campos e João do Rio. Na primeira parte – “Pequenos amores da armadilha terrestre” -, estão os textos mais ligados à intimidade, à casa, à família. Na segunda, as crônicas com o pé na rua, que contemplam lugares, comportamentos e personagens da cidade.
SM – O subúrbio não é visto apenas por um lado nostálgico nas suas crônicas. Mesmo não morando mais lá, a zona norte do Rio de hoje é fundamental para o que você escreve?
MM – Nasci e morei em Madureira, que está muito presente no livro. Certamente, a vivência por lá foi fundamental para o que eu escrevo. Não só quanto aos temas – o samba e o futebol, por exemplo, fazem parte da minha vida e do que produzo como escritor -, mas porque é o espaço da infância, agora reprocessada em memória. Penso que a infância é determinante para o nosso modo futuro de olhar e sentir o mundo. Ainda hoje costumo ir bastante ao subúrbio. Frequento a quadra do Império Serrano, escola na qual desfilo religiosamente. E minha sogra mora em Cascadura, pertinho de Madureira.
SM – A literatura brasileira sempre teve grandes contistas e cronistas, mas dizem que o mercado editorial prefere romances. Onde fica o leitor?
MM – De fato, o mercado editorial prefere romances. Eu não sei é se o leitor prefere. Essa tese me parece um dilema de Tostines, ou seja, não temos como precisar o que causa o quê. De qualquer modo, não acho que um escritor deva nortear seus textos por aquilo que o mercado prefere ou deixa de preferir. Hoje, com a internet, o leitor esperto encontra aquilo de que gosta, já não precisa tanto de mediações. E isso é ótimo.
As saudades de Marcelo Moutinho são também as minhas saudades. Basta revelar isto para que o leitor perceba o quanto estou encantada com a leitura de Na dobra do dia (Rocco, 232 páginas). Este livro de crônicas é um relicário de lembranças preciosas demais para que permaneçam apenas na cabeça. O leitor é o depositário de recordações da meninice, da adolescência e do homem que escreve.
Desdobrando segredos, o autor confidencia sentimentos. Madureira, bairro da infância, está presente em boa parte da obra, como na crônica ‘Artigo Definido’, quando conta da casa da bisavó:
“Invariavelmente cheio de gente, o sobrado era a sede dos almoços, o camarote do carnaval, o refúgio sempre às ordens para quem, por alguma razão, precisasse de abrigo”.
‘O Braço do Pai’ é especialmente comovente, a ligação entre pai e filho é enaltecida, a saudade é corrosiva, de quando sentava no banco dianteiro (que criança nunca brigou pelo lugar?) do velho Corcel:
“Todas as vezes em que se via obrigado a dar uma freada brusca, ato contínuo, esticava o braço para o lado direito, tentando (ou imaginando tentar) proteger uma possível topada minha contra o para-brisa. (…) Porque hoje dói saber que o braço do pai não está mais por aqui. Nem que seja para me proteger das freadas que dá a vida.”
As páginas vão passando e identifico-me, cada vez mais, com a prosa. Em ‘Sonhos’, uma frase que resume tudo o que (eu e ele) sentimos:
“Toda vez que vou ao subúrbio, a infância dói em mim.”
Pausa aqui. A frase acima é curta, certeira: a casa da minha infância acalenta a menina em mim. Tenho um amor absurdo pelo jardim que não está mais lá, pelo alpendre que saiu de cena, pela garagem e terraço onde corria e esfolava o joelho e o dedão do pé, na algazarra de fugir do pega-pega (ou pique-pega). Nada está como antes, agora há salas e alunos concentrados. Mas no meu coração estou lá, toda a minha infância, balões e cheiro de festa, primos nas férias, essas reminiscências mais caras, indestrutíveis, eternas.
Vamos falar de amor – e de suas dores também. Em ‘Para Além do Idílio’, Marcelo me apaixona, me pede outra pausa (faça isso, faça mais vezes isso!), após a fartura que me serviu. Preciso digerir:
“Histórias de amor são opções. E opções são homicidas por si só. Matam, ainda que em certas ocasiões com dó, as concorrentes.”
Paro, observo, ouço dentro de mim. Olho através da janela, espero algum sinal ou tradução. O texto prossegue:
“Mas não tem nada, não. Às vezes, o amor precisa mesmo morrer um pouco para germinar, como cantou o Gil. Ou, sem morrer, transformar-se em coisa distinta, e ainda assim amor. Sem o frisson acelerado do princípio, sem a miragem da perfeição. Com cicatrizes, juras, brigas, perdões, rusgas, acidentes, palavras mal ditas, dores nunca sanadas, mais quilometragem percorrida que a percorrer, ainda assim amor.”
Falar em saudade é falar de mim, sou saudosista, dada à nostalgia em doses saudáveis. Sou propriedade de outros tempos. E a música é o combustível certo para a contraditória evocação do que já foi, mas que ainda permanece. ‘Cegos de tanto vê-la’ é poesia com trilha sonora. A rotina nos torna (quase) impermeáveis:
“Lembro da canção ‘Estrangeiro’, na qual Caetano diz que o pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara (…). ‘E eu menos a conhecera mais a amara/Sou cego de tanto vê-la’, confessa o compositor. A convivência adormeceu o fascínio. De tanto vê-la, Caetano já não pode vislumbrar a Baía de Guanabara, sua beleza ou feiúra, a sutileza de suas curvas margeando e dando forma à cidade. A imensa boia d’água tornou-se apenas objeto na paisagem. Estanque. O amor, às vezes, é a Baía de Guanabara que já não enxergamos.”
O autor relembra muitas canções, o que é um encanto ainda maior para o leitor. Em ‘Carnaval, doce ilusão’, batuca sambas-enredo inesquecíveis e revela que, contra toda a família portelense, seu coração seguiu o do pai, torcedor do Império Serrano. Uma paixão arrebatadora, capaz de descarregar a emoção de toda uma vida:
“Faltando três dias para o desfile, telefonei para a quadra e comprei a fantasia. Sozinho, sem conhecer ninguém da ala ou da escola, cheguei à avenida. Ao pisar na Sapucaí, desabei no choro. (…) Ali, estava a casa da minha bisavó, estava o primeiro amor num parquinho de Madureira, estava o meu pai. Até hoje, a cada vez que entro na quadra ou desfilo no Império, sinto como se estivesse com ele, a barriga inflada de chope, o Hollywood no bolso da camisa. Escutar os sambas do Império é meu modo de vencer tardiamente o câncer que o derrotou, de tê-lo novamente comigo. E restaurar uma nesga de ilusão que, como um dia cantou a Vila Isabel, ajuda a dar ‘razões pra vida tão real da quarta-feira’.”
Como acumulamos coisas! Estocamos, guardamos, apegados. E no meio das páginas de um livro, papéis que assinalam um tempo esquecido, sonhos não realizados, coisas que vamos deixando para trás ou, inevitavelmente, substituímos por novos projetos – muitas vezes a vida muda a rota:
“Sentimentos e vontades e sonhos podados no decorrer do tempo, No girar do moto-contínuo que mói, sem dó, aquilo que fomos um dia. Não há nostalgia nessa observação. A andança pelo tempo pressupõe mesmo pequenas traições ao passado. Esquecimento. O espaço da lembrança não suporta a soma de todas as coisas. Como dizia o poeta Waly Salomão, ‘a memória é uma ilha de edição’.”
Gostaria de sublinhar: “O espaço da lembrança não suporta a soma de todas as coisas.”
Em ‘Long-plays’, sacode o mofo das lembranças e me desperta uma saudade da vitrolinha portátil vermelha (que tive):
“Ao reviver a experiência, percebi que escutar um LP na vitrola não tem nada a ver com ouvir um CD. Não falo da nostalgia do chiado que arranha (e humaniza) o som pré-digital, da variação de timbres. É uma questão de tempo mesmo. Há o ritual de se tirar o LP da capa, do plástico que o recobre, colocá-lo no aparelho, trazer com cuidado a paleta da agulha até o ponto certo, para que a música enfim comece. O vinil não aceita ser mero pano de fundo. Pede atenção, inclusive para trocar o lado. E silêncio, esse artigo cada vez mais insólito.”
Uma vida sem amigos não tem brilho. ’20 de julho’ fala de amizade, partindo do exemplo dos escritores mineiros (salve!) Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, amigos inseparáveis até a morte. Que puxam da memória do autor aquela noite, na idílica Paraty, cambaleando pelo calçamento ‘pé de moleque’, o instante ímpar em que uma amizade é selada:
“Numa caminhada pós-chopes e pré-ressaca, na primeira edição da Flip, um desses amigos que ajudam a justificar a vida me contou das tristezas que o perseguiam como sombra. Falamos sobre nódoas, cicatrizes. Traçamos projetos. (…) a amizade é, sobretudo, uma forma de amor.”
Caymmi disse que ‘quem não gosta de samba bom sujeito não é’. Concordo. O prazer dos botecos e rodas de samba tem seu lugar:
“E a dor que se canta não é só aquela mais comum e profunda: a dos amores que se foram e não se sabe se voltarão. Canta-se também a grana pouca, a nostalgia de um momento, a falta de alguém que já se foi.”
Mas o que todo leitor (imagino) quer saber é do encantamento do autor com os livros, quer sentir que também aquele que escreve tem o devotamento, a paixão, um certo estranhamento, talvez. Solidão. Em ‘Livros e Metamorfoses’, Moutinho é alguém como nós:
“Quando eu era criança, minha irmã Sandra me apresentou a história de Flicts e tive a sensação de que era aquela cor sem lugar no universo. Mais tarde, eu seria o homem doente de ‘Notas do Subsolo’, um repugnante inseto, a menina para quem soaria sempre clandestina a felicidade. Esses livros, se não puderam modificar a sociedade, em sentido amplo, me mostraram que eu não estava sozinho. Que havia mais pessoas tateando sentidos, perplexas com o abismo que a vida encerra, dia após dia. E também que é possível sobrevoar esse abismo, observá-lo, descrevê-lo, até mesmo tocá-lo, sem despencar nele.”
São muitos assuntos abordados, coisinhas diárias, fragmentos do cotidiano, em alguma página você vai se reconhecer.
Enquanto preparava esta resenha, percebi que recolhi também pedacinhos de mim. Tirei dos vãos da lembrança histórias gostosas. São sentimentos tão meus, reacendidos pela leitura de Na dobra do dia. Compactei, coloquei moldura e em lugar de destaque. Aqui estão, no blog, para quem quiser ler. Senti-me egoísta, exibicionista, exposta. Tudo bem, já me permito não ter certos medos. A culpa é do Marcelo, este escritor que descobri agora e já peço perdão pelo atraso. Em suas palavras: ”um desses amigos que ajudam a justificar a vida”. Que encanto, que viagem, que delícia de livro! Nada pede, nada exige, tanto a oferecer. Embarcamos com ele, olhamos para trás, para o que construímos, a pegar novo fôlego para o que está por vir. E que venha!
Obrigada, Marcelo Moutinho, pelo arrebatamento. Não foi sua intenção, mas em mim abriu possibilidades. Fui acolhida pela idéia de que, ao som de Renato Russo, ♫ “Não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo, temos todo o tempo do mundo.” ♫
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