Memória dos barcos

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  • Editora 7 Letras
  • 2001
  • ISBN 8573882484
  • Português
  • Capa Tipo Brochura
  • 72 Páginas

“Conto é tudo o que o autor acha que é conto, magister dixt. Um mestre chamado Mário de Andrade. Certo, isto tem sido citado à exaustão. Mas, para começar, esta coletânea de Marcelo Moutinho – um bisneto ou tetraneto do Modernismo – suscita tal recorrência. Pelo seguinte: os seus relatos prescindem de uma história, ou estória, como queria Guimarães Rosa. Quer dizer: não dependem necessariamente de uma trama enovelada por um fio de tensão, a ser deslindado num final desconcertante. Em vez disso, o que temos neste livro são contos em tom de crônica e, aqui e ali, um pouco de prosa poética, com alguns achados bacanas. Por exemplo: “Partira fazia tempo, o futuro debaixo do braço…”

Aliás, o próprio autor abre o seu livro recorrendo a Clarice Lispector, para nos advertir: “Não se trata apenas de narrativa, é antes vida primária que respira, respira, respira.”

Seu texto, porém, está longe de ser primário. É leve, cadenciado e despretensioso: “Sem limpar os dedos, recolheu novamente as mãos, recostou um pouco o pescoço à esquerda, cotovelos no móvel, revirando os olhos para o espelho, antes de abaixá-los de vez – e chorou.” Marcelo Moutinho escreve como quem pinta quadros em cores vivas, enquanto sua memória se encarrega de esmaecê-las. O resultado é plástico. Pode conferir.”

Antônio Torres

“Na profundeza do inverno, finalmente aprendi que dentro de mim repousava um verão invencível”. (Albert Camus)

e então você, ao me ver aqui, sentado sobre a poltrona, nesta sala onde apenas uma luminária faz contraponto à escuridão, repetindo que enfim descobri que embora não tenhamos consciência há uma queda por detrás de todo horizonte, vem e me fala que existem flores que só dão no inverno, e nestes dias que andam um pouco mais frios do que o habitual na indefinição de estações do Rio de Janeiro não é, de jeito algum, um sinal de que também estou invernando, sob a luz esguia da tarde que vem do leste, sob o vento que sopra do mar em direção à terra, um vento estranho ao litoral, fazendo a cidade renegar a sua vocação mais óbvia e nos deixando meio que sem saber o que fazer, se abre aquela garrafa de vinho que ganhou no aniversário e dorme há tanto tempo no armário, se espanta o mofo dos casacos de lã guardados no gavetão, se simplesmente resolve ficar em casa, debaixo do cobertor, sem coragem para enfrentar a brisa gélida que bate no rosto de quem se atreve a passear à beira-mar, com medo do risco de sem querer respingar uma gota que seja da água do mar no nosso rosto, ou nas nossas costas, sobra de uma onda revolta, desenhando espinha abaixo um caminho de geada, ou, ainda, penetrando corpo adentro, a evidenciar que somos como esponjas, absorvendo e eliminando sentimentos e situações e sujeiras, imundícies como aquela que enche os sacos dispostos pelo corredor quando começo a escutar a vizinha do 204 reclamando, “quem é o porco que deixou estes sacos aqui”, “só tem animal neste prédio”, “síndico de merda”, e longe, muito longe de saber, ou de querer saber que os sacos azuis espalhados pelo hall significam tão pouco se ignoramos quem será enfim capaz de lacrar o saco de lixo do mundo; eu a debruçar minha atenção sobre dilemas como esse, sem nenhum traço mínimo de covardia, nenhum soluço trêmulo, nem mesmo uma expressão de culpa, atiçando como quem sacode carne na frente de um bicho faminto, tentando despertar cada lobo que se espreita na imensa matilha do meu corpo de homem ainda subindo os degraus da velhice, mas de alguma forma preso a uma tábua de valores e idéias e ruminações que, estabelecida em algum momento, não parece ter mudado, tornando-me um náufrago de saudades indizíveis, um saudoso eterno das agruras do impossível, um insistente pedinte de que o feio se transfigure em beleza, ainda que por um momento breve, para sustentar alguma leveza nesta sala que traz em si todo o peso do excesso, para tentar não submergir neste mundo-gesso com os braços e as pernas sem músculos capazes de agüentar, para tentar tramar planos infalíveis, impraticáveis, chamar com urgência à fala os acenos e as sombras que prometem de novo o que ocorreu, procurando antes efeitos do que causas concretas, e contudo a palavra se negando a pronunciar, e somente as mãos sugerindo o poder mágico de dizer o que no lábio ainda é segredo nesta minha boca cansada de falas, repleta de amarras costuradas pelo tempo com suas agulhas traiçoeiras (você não ouve mais o som rascante das cigarras que como trovoadas anunciam a chuva, embora sem impor autoridade, e os estrondos se revelam efêmeros como em geral os autoritarismos); pois saiba que no sótão do navio incerto da afeição quem invoca sentimentos vis nem por isso estará enterrado para sempre na cova rasa da vilania, mas, de todo modo, “todo dia é um dia roubado da morte”, já dizia Clarice, e é melhor, pois, manter a janela entreaberta, a fim de que, pelo espaço dado, assustado, possa assistir a tudo como um menino que vê o sol se afogar no oceano, voyeur de meus pares, deste globo insandecido e imenso, nem que seja tentando encontrar em algum canto, sob um monte de papel, ou um saco de lixo qualquer, um jornal velho, um arbusto, uma colméia, escondidas, espremidas, esquecidas, as tais flores que dão no inverno, pois ainda não as vi, mas sei que existem.

Contos sobre a saudade do que não há de voltar

Moutinho narra com profundidade e beleza ações introspectivas

“Em vez de ações contínuas e de final imprevisto, os contos de Marcelo Moutinho têm como tema principal a saudade. E nos introspectivos monólogos de seus personagens, o autor evita o perigoso terreno do melodrama e faz da impossibilidade de tudo voltar a ser o que era um sentimento mais profundo.

Na história que dá título ao livro, por exemplo, os barcos azuis da infância do protagonista estão no mesmo local, “com uma ou duas mãos de tinta a mais”, mas ele já vive em um outro mundo e a sensação de melancolia é inevitável. Neste raro momento em que ele pode vislumbrar o passado de forma tão viva, entre uma e outra viagem a trabalho, até mesmo um cartão de Natal caído no chão assume as proporções de um livro de memórias, quando se enviavam cartas apenas pelo prazer de receber cartas de volta, “ávidos, incomensuravelmente ávidos, por algo ou alguém que eleve nosso nome”.

A menina que se agarra à árvore plantada pelo pai, já morto e substituído por um sujeito que discute com a sua mãe todos os dias, também se refugia no passado, mas encontra no fantástico, emoldurado pelo livro “Flicts”, de Ziraldo, a alternativa que a vida, concreta como ela só, não dá. “Era como se a porta de entrada do quarto fosse a porta de saída do mundo”.
Personagens se movem num mundo indiferente

Esse caráter introspectivo de boa parte de seus personagens, estranhos em um mundo cruel e indiferente, se manifesta por imagens fortes, simples e bem descritas. A felicidade nas histórias de Marcelo Moutinho é um ingrediente que só é convidado quando a imaginação do autor resolve enfeitar um pouco a realidade.

Assim, a velha história do sujeito que passa um entediante domingo vendo TV, lendo jornal e sentindo a segunda-feira chegar, ganha toques de originalidade quando uma estrela cai em sua sala. “Nomear, nomear, nomear o inteligível e o ininteligível, eis o nosso incessante desejo”.

A angústia dos personagens permanece até mesmo no canário que passou a vida preso — inclusive acompanhando um de seus donos na prisão por 17 anos – e não consegue conviver com a liberdade, que aproveita nos dias de domingo, quando seu atual dono o deixa passear livremente pela casa. No entanto, quando está solto, o canário fica em silêncio, não canta e se explica ao leitor: “Se por todo o sempre estive cerceado, vivo a cantar minhas dores, não minha alegria”.

Perto de uma vizinha que reclama dos sacos de lixo, o personagem de “Flores de inverno”, conto de apenas um longo parágrafo, se sente um “náufrago de saudades indizíveis”. E junto com ele e sua busca pelas flores que só nascem nesta estação do ano, a válvula de escape dos personagens dos demais contos pode estar tanto nos tais barcos azuis como em ruas de paralelepípedos e de terra batida. Ou na vitrine de uma padaria do Rio, onde Ana, recém-separada de Mário, busca o homem que a encantou e que só viu uma vez.

Sem apelar para chavões ou baixarias, os contos de Marcelo Moutinho se destacam pela leveza com que são contados, uma característica a se destacar principalmente devido à profundidade dos temas. Pois se não há aqui a história de ação constante e de final surpreendente, a ação se passa no mundo dos próprios personagens, muitas vezes ilusório e angustiante. Mas, afinal, talvez seja o único onde vale a pena estar vivo.”

André Luís Mansur

Contos com um sopro de enredo

“A primeira frase de um livro de ficção nos diz grande parte dos seus segredos. Claro, não dá para notar ainda, na sua leitura, a face oculta do livro, mas à medida que a narrativa vai tomando corpo podemos reparar se o que estava latente vem à tona ou não, se a frase inicial, de algum modo, já nos preparava para o que viria adiante. Umberto Eco observa, a propósito, que um texto que começa, por exemplo, com ”Era uma vez”, certamente está nos enviando um sinal. Se a pista é gratuita ou não, se quer nos guiar ou, ao contrário, nos desviar de vez, só saberemos ao ler a história.

Memória dos barcos, segundo livro do escritor e jornalista Marcelo Moutinho, começa exatamente assim: ”Os barcos azuis boiando calmos sobre o rio.” Metade dos contos do livro será marcada pela idéia sugerida nessa frase: ”Memória dos barcos”, ”Dos ventos que sopram”, ”Noites de circo”, ”Sentimentos expressos” e ”Anêmonas”.

São histórias de calmarias – ainda que aparentes – , relatos sustentados por um quase nada, um sopro de enredo apenas, em volta do qual as palavras se alinham, criando o texto que, à falta de melhor definição, chamaríamos de conto. Já na orelha do livro, Antonio Torres alerta: ”os seus relatos prescindem de uma história, ou estória, como queria Guimarães Rosa. Quer dizer: não dependem necessariamente de uma trama enovelada por um fio de tensão, a ser deslindado num final desconcertante. Em vez disso, o que temos neste livro são contos em tom de crônica e, aqui e ali, um pouco de prosa poética.”

Nem todos os contos seguem essa linha, mas, para os citados acima, o comentário de Torres cabe como uma luva. É quase sempre um detalhe o que deflagra essas narrativas: um vaso de anêmonas, um reflexo no espelho da padaria, uma foto antiga, um ponto qualquer, que passaria despercebido não fosse o olhar do narrador a resgatá-lo da fugacidade. O detalhe insignificante é alçado ao primeiro plano, bem à vista, transformado agora em matéria-prima da escrita que, ao abarcá-lo, envolve também o que ele traz escondido: lembranças, revelações, pequenos ou grandes sustos.
E se é do detalhe que nascem tais relatos, é na sensação de estranhamento que eles vão se sustentar. Estranhamento por parte do leitor desavisado, acostumado a textos que entregam tudo de mão beijada e que se depara com a necessidade de criar ele mesmo os sentidos possíveis para o que lê, e estranhamento também por parte dos personagens, que são surpreendidos por repentinos recuos no tempo, vítimas de uma memória quase sempre dolorosa.

Como acontece no conto ”Noites de circo”: o palhaço, sozinho em seu camarim depois de uma melancólica sessão de meio de semana, no circo miserável, de platéia vazia, retira aos poucos sua maquiagem e vai vendo, no espelho, a imagem dele mesmo num outro circo, quando criança, e lembra que naquela época tinha a impressão de que só ele percebia, entre as feições de riso dos palhaços, uma lágrima envergonhada.

Feito dessas pequenas dores, como a do palhaço ou a do homem que retorna à margem do rio em que passou a infância ou, ainda, da moça sozinha num canto do salão naquele baile de carnaval numa cidade do interior, as narrativas vão alinhavando aos poucos seu lirismo, com histórias que parecem ter saído de um baú de guardados, subitamente aberto.

Um conto, em especial, faz convergir para si mesmo alguns dos fios trançados no decorrer do livro. Trata-se, não por acaso, de um conto intitulado justamente ”Dorezinhas”. Nele, nenhuma história efetivamente acontece, o leitor se vê diante de páginas pontilhadas por impressões, recortes, com personagens apenas esboçados, num cenário multifacetado, mosaico urbano. Como nos contos citados, este se constrói a partir de ”cenas de vida, cenas de morte, solidão”, recheado de ”dorezinhas fúteis, de gritos inúteis”, como afirma o narrador. Tudo parece acontecer por acaso, à revelia dos personagens, o que os torna ainda mais frágeis e, talvez por isso, também um pouco mais belos.

(…) Já quase no final do livro, o narrador de ”Anêmona”, depois de um parágrafo que sugere ao leitor uma história movimentada, de ações reveladoras, afirma: ”Não cabem, no entanto, grandes relatos.” Frase que retoma a do início, reafirmando a opção do autor por uma narrativa silenciosa, construída com os tons de um azul variável, na qual ele talvez devesse investir com mais firmeza, consolidando, assim, uma escrita que busca seguir com suavidade a cada página, como os barcos que bóiam, calmos, sobre o rio.”

Flávio Carneiro

“Memória dos barcos” é um dos exemplos da produção recente da literatura brasileira, com a particularidade de um estilo que investe mais no imagético e no lirismo. Preste atenção na forma como o autor retrabalha, sem ocultar, técnicas de uma tradição literária de subjetividade – da pontuação de Clarice Lispector à velocidade de Caio Fernando Abreu.”

 

Recordações de um oceano interior

“A alegoria das embarcações é interessante para tratar do novo livro do jornalista Marcelo Moutinho. Os dez contos de Memória dos barcos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2001. 72 págs.) singram por uma prosa fluida e sofisticada, oscilando entre a narrativa intimista e a prosa poética, como anota Antônio Torres na orelha. A bela capa de Marcus de Moraes, uma imagem ofuscada de barcos repousando sobre uma água azul tranqüila, transmite eficazmente a idéia do conteúdo onírico-reminiscente da obra.

Assim como no seu livro anterior, Um certo medo da noite, Marcelo lança mão da linguagem poética, convertendo o narrador em eu-lírico. Isso pela influência de autores como Caio Fernando Abreu e Fernando Pessoa. Embora caminhando para “matar os pais” e adquirir autonomia narrativa, ainda é perceptível uma bússola de Clarice Lispector, não só pelas epígrafe e citação no conto “Flores de inverno”, como também pela maneira introspectiva de apresentar ambientes e personagens. Além de uma tendência em alternar frases longas e curtas, estas às vezes isoladas – mas nunca à deriva – num só parágrafo.

O conto que dá título à obra estabelece uma relação metonímica com todo o livro, uma vez que reúne os elementos presentes em cada um dos outros textos. Retornando à pequena cidade onde crescera, o narrador observa a mudança que a paisagem sofreu com o tempo: “Do outro lado do rio, desfez-se a linha horizontal e ergueram-se prédios, edificações imensas que contrastam e constatam, imenso monitor cardíaco, o pulso disforme da cidade que um dia fora a vida.” As lembranças saltam como matéria da construção textual, tal como ocorre no ótimo romance Quase-memória, de Carlos Heitor Cony, em que cada fio contido em uma imagem simples (no nosso caso, os barcos azuis) pode ser puxado, revelando uma pequena história.

Cada conto é uma recordação (no sentido original de “trazer de volta ao coração”) que devolve ao leitor algo que nunca lhe foi tirado. Porque o lirismo permite um eterno rejuvenescimento do tempo presente, o que se evidencia quando o autor fecha o livro com o dístico de Mário Quintana: “O passado nunca conhece o seu lugar./ O passado está sempre no presente.” Esse deslocamento atemporal se dá pela evocação de imagens que, além de conferirem uma plasticidade quase cinematográfica ao texto, são também o mote para a expressão da carga íntima acumulada pelo narrador, como se percebe no conto “Sentimentos expressos”: “Já sentada dentro do vagão do metrô, tentava montar o quebra-cabeça daquele reflexo, enquanto as estações se sucediam. Os carros esvaziados, as plataformas desertas davam a dimensão dos seus vazios.”

Outra temática comum a todos os contos é a solidão, irmã da memória. A solidão urbana, a que assola a multidão aglomerada. A solidão dos casais juntos e dos separados, das crianças, dos seres que momentaneamente se encontram movidos pelo acaso, a solidão dos palhaços, a dos barcos ancorados. Mas em cada texto sobrepõe-se um movimento de reaproximação, às vezes contida porém esperançosa: “Ela trazia uma lua amarelada no lugar dos olhos, uns olhos mendigos, de quem quer salvação sem ter pecado.”

Longe de ser um derramamento sentimental autobiográfico, como ocorre a muitos que se arriscam a escrever de maneira subjetiva, Memória dos barcos é um convite para que o leitor sorva as narrativas cuidadosamente destiladas. E se ao fim da leitura ficar alguma mensagem, que seja a de uma nau retornando à costa: navegar é preciso; viver mais ainda.”

Henrique Rodrigues

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