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Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa

Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa

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  • Editora Casa da Palavra
  • 2009
  • ISBN 978857734117-7
  • Português
  • Capa Tipo Dura
  • 136 Páginas

Qual a sua palavra favorita?

Escolher uma palavra favorita na língua portuguesa — quando se tem à disposição mais de 400 mil opções — pode ser uma tarefa um tanto quanto complicada. Pois este foi o desafio proposto a 35 autores do idioma, de cinco países diferentes, para o Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa, organizado pelo escritor brasileiro Marcelo Moutinho e pelo editor português Jorge Reis-Sá, editado pela Casa da Palavra.

Os 35 autores — desde jovens cujo talento desponta já nos primeiros livros a autores que, reconhecidos por público e crítica, foram laureados com prêmios literários como o Portugal Telecom, o José Saramago, o Jabuti e o Machado de Assis  — escolheram 35 palavras diferentes e tiveram a liberdade de trabalhá-las da forma que preferissem, desde que expressassem uma sintonia de sentimentos por meio das letras. São contos, poemas e ensaios, e a interseção é o idioma e a paixão pela palavra.

Em um ano marcado por discussões sobre o acordo ortográfico da língua portuguesa, que unifica o idioma escrito em todos os países onde ele é oficial, optou-se por manter, neste “dicionário”, as peculiaridades do português de cada país presente na obra. São autores do Brasil, de Portugal, de Angola,  de Moçambique e do Timor Leste, e, em cada um deles, a mesma palavra pode assumir formas e significados diferentes. “Justamente para sublinhar essa distinção que depreende da unidade, tornando-a mais rica, optamos por não obedecer às regras do novo acordo ortográfico”, afirmam os organizadores.

O Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa é “um dicionário de palavras íntimas”, que fala de amor e amores, entre eles aquele que é dirigido ao peculiar e notável idioma que nos foi legado, o português — sempre mutante e encantador.

35 autores, 35 palavras, 4 continentes
Brasil — Adriana Lisboa (Guerrilha), Alexei Bueno (Oblívio), Amílcar Bettega (Neve), Antonio Cicero (Moderno), Antônio Torres (Saudade), Armando Freitas Filho (Morte), Bruna Lombardi (Serendipidade), Fabrício Carpinejar (Casa), Fernando Molica (Buceta), Flávio Izhaki (Vício), Glauco Mattoso (Sola), Heloisa Seixas (Espelho), Henrique Rodrigues (Você), Jorge Fernando da Silveira (Rio), Marcelino Freire (Palavra), Marcelo Moutinho (Água), Mariana Ianelli (Condor), Paulo Henriques Britto (Peteleco), Raimundo Carrero (Sombra), Tatiana Salem Levy (Deserto).

Portugal — Antônio José Teixeira (Árvore), Daniel Maia-Pinto Rodrigues (Bosque), Desidério Murcho (Verdade), Francisco José Viegas (Poeira), Jorge Rocha (Rosa), Jorge Reis-Sá (Sombreiro), José Luis Peixoto (Calicatri), Manuela Costa Ribeiro (Viajar), Paulo Brody (Violeta), Rui Lage (Insecto).

Angola — Ana Paula Ribeiro Tavares (Silêncio), João Melo (Porra), Ondjaki (Sandália).

Moçambique — Guita Jr. (Fogo).

Timor Leste — Luís Cardoso (Madrugada).

Trecho de Água, de Marcelo Moutinho.

Ele entrou no banheiro complemente nu, num silêncio áspero. Apenas a toalha vermelha pesava sobre os ombros, dando algum colorido às costas envergadas. Conduzi-o até o box, procurando firmar a lenta caminhada em passos estáveis. Ampará-lo.

Não havia espaço para nós dois. Fiquei do lado de fora; ele, no de dentro. Foi preciso deixar a cortina aberta, mas fiz questão de fechar a porta do banheiro, embora não houvesse mais ninguém no apartamento.

Os azulejos do banheiro suavam, ele mal me olhava. Mantinha a cabeça inclinada para baixo, a nuca parecendo maior, e eu tentando reverberar seu constrangimento em palavras singelas, tá bom assim?, viu a confusão de ontem em Laranjeiras? O trânsito está um nó? e seu Botafogo? a gente pode começar?

Girei os registros para temperar a água quente, ele conservando a mudez. Em seguida, molhei a toalha e pedi que se virasse.

Ele plantou as mãos – imóveis – sobre a parede, como se estivesse sob séria ameaça, como se eu lhe apontasse um revólver, uma faca, algo assim. A cortina, inquieta, tocou meu rosto. Insistia em fechar, ainda que eu a arrastasse a cada vez que se soltava e corria no trilho. Insistia em fechar. (…)

Há dois anos o escritor português Jorge Reis-Sá lançou em seu pais a coletânea “A minha palavra favorita”, de titulo autoexplicativo, com textos de 90 autores. Algum tempo depois, o livro caiu nas mãos do brasileiro Marcelo Moutinho, que sugeriu aproveitarem a idéia num novo livro, com menos gente e título mais ambicioso: daí surgiu o “Dicionário amoroso da língua portuguesa” (Casa da Palavra). Moutinho e Reis-Sá reduziram para 35 o numero de autores, mas expandiram para quatro continentes a sua procedência, até chegar ao livro que se anuncia na capa como uma “celebração da diversidade”. O volume (que reaproveita alguns textos do livro de 2007) não incorporou as mudanças do Acordo Ortográfico, considerado utilitarista por Moutinho. Mas “não é um livro manifesto”, diz.

Ele conversou com O Globo sobre a obra.

O Globo: A inspiração inicial para essa coletânea foi um outro livro: “A minha palavra favorita”, organizado em Portugal por Jorge Reis-Sá. Mas vocês fizeram mudanças nesse modelo. Quais foram?
Marcelo Moutinho: Além de reunirmos escritores de vários países e não termos palavras repetidas, as palavras escolhidas pelos autores não são necessariamente as preferidas deles. Nem sempre a palavra preferida é a mais inspiradora. Sei lá se “peteleco” é a palavra preferida do Paulo Henriques Britto, mas imagino que não seja. Então o livro tem uma lente de afetividade dos autores com as palavras, mas sem essa exigência.

A reunião de autores de paises diferentes mostra ao mesmo tempo a diversidade do português e sua unidade. O que se sobressai, em sua opinião, são as diferenças ou aproximações?
Moutinho: Os pontos de contato aparecem mais do que o distanciamento, com toda certeza. Em geral, os textos se encaixam naquilo que se diz sobre a própria língua e a cultura potuguesas: saudade, nostalgia, um certo romantismo. Minha dúvida é se isso aconteceu pela proposta do livro ou mesmo pelas características da língua. Se fosse um “Dicionário amoroso da língua inglesa”, seria assim também? Eu não sei.

A língua é sempre pensada como elemento da identidade nacional, e às vezes é objeto de iniciativas xenófobas, inclusive. O livro trz um olhar mais cosmopolita sobre a língua, não?
Moutinho: Sim. Nesse sentido, a literatura africana ainda tem uma relação menos bem resolvida com o português do que o Brasil, até por nossa independência ser anterior à deles. Muitos autores africanos não gostam que se fale de lusofonia, por exemplo. Acham que isso remete ao colonizador. Mas isso tem a ver com a independência recente desses países.

Por que vocês resolveram não aplicar no livro as regras do Acordo Ortográfico?
Moutinho: Nosso objetivo era que o livro refletisse as singularidades existentes dentro da unidade da língua portuguesa. E o acordo, se não deleta, minora essas singularidades, por que o que ele faz é padronizar. Se estou lançando um livo para valorizar a diversidade da língua, aderir ao acordo seria contraditório. Mas os autores não se pautaram por isso. Minha posição pessoal é contra o acordo, porque acho que ele tem uma visão utilitarista da língua, só pensa no lado econômico, mais nada. Mas eu não poderia dizer que todos os autores do livro concordam comigo. Não é um livro manifesto.

Esse é um dicionário amoroso, mas muitas vezes a relação dos escritores com as palavras é descrita como uma luta, como no poema do Drummond. Isso também aparece no livro?
Moutinho: Isso aconteceu em alguns casos, um embate com o que seria o significado primeiro da palavra. Meu conto mesmo parte da palavra “água”, tida como algo que limpa, purifica. Mas a história é o oposto disso. O conto da Tatiana Salem Levy, com “deserto”, também vai um pouco por aí. A Adriana Lisboa ia usar “delicadeza”, para brincar com o que dizem a respeito dos contos dela. Mas ela trocou, temia que a escolha fosse levada ao pé da letra, quando era uma ironia.

Alem das diferenças nacionais, o livro chama atenção para as relações individuais com as palavras.
Moutinho: Que é muito mais interessante. O Fernando Molica, por exemplo, insistiu que no conto dele “buceta” ficasse com “u”. No dicionário está com “o”, mas ele falou: “minha buceta é com u”. A gente não se ateve ao que está no dicionário. O José Luiz Peixoto pegou uma palavra inventada, “calicatri”. Ele diz que é uma palavra que ele ouvia quando pequeno no norte de Portugal, mas ele mesmo não tem certeza se a palavra de fato existia. Era uma memória infantil. Ele registrou no romance dele, que tem um personagem chamado Príncipe de Calicatri, e recuperou para esse livro. É claro, a gente inclui uma observação lá explicando, porque se a gente não tiver um mínimo padrão na comunicação vira Torre de Babel, ninguém se entende.

Nos últimos anos foram publicados inúmeras coletâneas de autores brasileiros, com temas diferentes. O que você acha desse fenômeno?
Moutinho: É, eu organizei algumas. Foi importante num primeiro momento, de reaquecimento da vida literária brasileira. Era uma forma muito interessante de apresentar novos autores. Para as editoras, era mais fácil lançar um livro com quinze autores do que lançar quinze livros diferentes. Mas é evidente que houve um desgaste. Eu tinha jurado pra mim mesmo que não faria mais coletâneas, e não pretendo fazer mais, mas acho que não poderia deixar de fazer essa. Agora estamos num segundo momento, os autores já caminham com suas próprias obras, mas isso também é conseqüência das coletâneas do Nelson de Oliveira.

Houve quem visse um lado marqueteiro naquele batismo da Geração 90.
Moutinho: E talvez a literatura precisasse desse efeito de marketing. Naquele momento, havia um vácuo absoluto em termos de novos autores. Ele teve que fazer um trabalho de escavação. Foi importante. Não vejo isso como ruim para a literatura. Mas é natural, chega uma hora em que o mercado repele, há uma saturação.

Miguel Conde

Renault (1901-1995), um dos nossos mais subestimados poetas modernos – não necessariamente “modernistas”-, nunca aderiu às reformas ortográficas de 1943 e 1971. Até morrer, escreveu belezas como “Quando me sumo na total ausência/ do curso opaco e ascetico do somno/ e não estou em mais nenhum lugar,/ mil invisiveis cousas mysteriosas/ talvez ocorram sobre o chão, pelo ar”.

E Abgar não era um amador excêntrico. Era filólogo, um profissional da língua. Foi um dos expoentes da gloriosa Universidade do Brasil, chegou a ministro da Educação e defendeu o Brasil na Unesco. Pois nem assim. Seus textos em prosa e poemas aportavam nas editoras cheios de “yy” e “ph” e eram convertidos para a ortografia vigente. Ordens de cima, diziam.

Mas sua desobediência civil foi bonita. Movimento parecido, só que em massa, está acontecendo em Portugal, com a recusa dos lusos a aderir ao “acordo” ortográfico recém-decretado e já em uso no Brasil. Os portugueses não querem dispensar o “c” de “insecto”, o “p” de “Egipto” ou o “h” de “húmido”, além dos tremas e hifens. É como eles veem a língua, e fazem bem em defender seu patrimônio.

Aqui no Brasil começam a surgir sintomas dessa desobediência. O escritor Reinaldo Moraes, autor do recém-lançado romance “Pornopopéia”, não abriu mão do acento nem no título. E o também recente “Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa”, editado por Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá, com contos, poemas e ensaios de autores de Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e Timor Leste, é uma aula prática de unidade na diversidade.

Nesse livro, cada autor escreve como se escreve em seu país. Pois, para nenhuma surpresa, aqui e além-mar, entende-se tudo. E por que não? É a mesma língua portuguesa. Nisso está o seu encanto.

Ruy Castro

Autores lusófonos de quatro continentes elegem vocábulos para um dicionário peculiar

O mais novo dicionário a chegar às livrarias brasileiras começa com a palavra “água” e termina com “você”. Traz apenas 35 verbetes – um deles inventado – e passa batido por grande parte das letras do alfabeto. Para completar, na contramão das ediçõespublicadas no Brasil em 2009, ignora de forma peremptória o acordo ortográfico da língua portuguesa. Por aqui, “insecto” preserva sua pronúncia tão lusitana, enquanto o coloquial “peteleco”, com seu som legitimamente verde-e-amarelo, sai da sombra marginal na qual está habituado a viver e ganha destaque como um dos 35 vocábulos escolhidos. No Dicionário amoroso da língua portuguesa (a ser lançado na próxima terça-feira, às 19h30, na Travessa de Ipanema), organizado pelo carioca Marcelo Moutinho e pelo português Jorge Reis-Sá, informações gramáticas e definições etimológicas são substituídas por declarações de amor ao vocabulário.

Em vez de unificar a ortografia – como tem em vista o compromisso recente assumido pelos paises lusófonos – busca exatamente lançar luz à sua diversidade. Entre os 35 autores que assinam os vocábulos do livro, há representantes dos quatro continentes nos quais se fala a língua portuguesa. Brasil, Portugal, angola, Moçambique e Timor Leste dão suas contribuições.

— Queremos destacar os diferentes sotaques, essas várias línguas portuguesas — salienta Moutinho.

Foi atento ao seu sotaque carioca – este que, desenrolando-se à beira-mar, parece se nutrir da cadência marítima – a que Moutinho escolheu ele mesmo uma palavra para o dicionário: “água”. Ilustrou-a com uma ficção, um conto triste. Seu colega Reis-Sá, por sua vez, discorre sobre o vocábulo “sobreiro” – nome de árvore que soa tão misterioso para quem está do lado de cá do oceano.

Há quem prefira o verso para tratar de sua palavra de estimação. Como faz o moçambicano Guita Jr., que fez um poema para o “fogo”; o brasileiro Glauco Mattoso, que compôs um soneto tendo como inspiração a palavra “sola”; ou o poeta carioca Paulo Henriques Britto que tece, em versos, uma homenagem ao “peteleco”. Curiosamente, alguns poetas na coletânea preferiram se expressar em prosa, como é o caso de Antônio Cícero, que, entre o filosófico e o poético, debruça-se sobre o significado do termo “moderno”; já Armando Freitas Filho enumera suas diferentes acepções para “morte”.

— Como o objetivo do dicionário é destacar a diversidade, manter a variedade formal nos foi muito importante. Não temos apenas prosa e verso, mas também diferentes estilos de narrativa — comenta Moutinho. — Assim como também foi essencial misturar cânones com autores iniciantes.

Dentre esses jovens escritores, estão Flávio Izhaki, que escreveu um conto sobre a palavra “vício”, e Tatiana Salem Levy, que elaborou uma ficção tendo como mote a palavra “deserto”. No mais, a diversidade na seleção de autores de fato marca a coletânea, que põe lado a lado nomes como Heloisa Seixas e Marcelino Freire, Ondjaki e Bruna Lombardi.

Foi ao ler uma nota na coluna Informe Idéias, do Jornal do Brasil, que Moutinho teve o desejo de fazer o livro. A nota dava conta da publicação, em Portugal, do livro A minha palavra favorita, organizada por Reis-Sá, que pediu a 90 autores lusófonos que elegessem seu vocábulo do coração, e escrevessem sobre ele. Amigo de Reis-Sá, Moutinho ficou entusiasmado com o projeto, e convidou o português a fazer uma publicação semelhante. A grande diferença é que, desta vez, os autores não elegeriam uma palavra preferida, e sim um vocábulo que servisse de mote a algum tipo de criação literária.

Sendo assim, nem todas as escolhas se guiaram por uma possível aura lírica. O jornalista e romancista carioca Fernando Molica, por exemplo, lançou mão de um vocábulo, digamos, forte, que o leitor há de adivinhar: “Inocente e mesmo brincalhona seqüência de consoantes e vogais. B com u, c com e, t com a”. O angolano Francisco José Viegas não ficou para trás: elegeu um xingamento muito popular entre os brasileiros – mas pôs a culpa no personagem (“Entredentes, o mais-velho Zacarias murmurou a medo uma palavrinha proibida, que o decoro deveria me impedir de inscrever no texto”).

Ousadia por ousadia, o português José Luís peixoto foi a fundo no convite de Moutinho e Reis-Sá, e inventou não só a sua acepção, quanto a própria palavra: “Calicatri” – que ele tem “quase certeza de que é um lugar”. Já o português Rui Lage criou um poema curto que soa como uma ode ao sotaque da terrinha: sob o titulo de “insecto”, correm palavras como “insurrecto”, “estrídulo” e “mordedor”.

O próprio Moutinho se surpreendeu com a variedade de palavras que acabou conhecendo ao longo do processo.

— Eu estranhei a palavra “kandando”, que alguns autores usavam para se despedir. Então eles me explicaram que é um jeito angolano de dizer “abraço” – conta.

Juliana Krapp

Para além da língua, dos vícios e das palavras

A sombra estava ali, no meio da rua, destacando o menino que andava sem pressa. E ele percebeu que ela andava e o que era andar, repetia seus gestos e que seria sua companheira, ou inimiga, durante toda a vida. Desafiadora, não adiantava reclamar. Mudava o sol, mudava a lua, mudava o vento, e ela ali, colada ao corpo. Uma condenação.

Foi assim que descobri a sombra, a palavra – e não é apenas uma sombra, é também um sentimento brutal – que escolhi para participar do “Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa”, que acaba de chegar às livrarias, numa edição elegante da Casa da Palavra, com capa dura e ilustrações, além de uma imã de geladeira para fazer o autor se lembrar da sua condenação sempre que precisa beber um copo d´água.

Essa palavra e muitas outras estão no livro que reúne 35 autores, eles que escolheram as palavras misteriosas, que selam nos seus nomes para sempre. São autores de quatro continentes – América Latina. Europa, Ásia e África – das mais diversas tendências e das mais diversas origens. Há palavra tão simples como “Saudade”, de Antônio Torres, ou “Serendipidade”, de Bruna Lombardi. Sim, é ela mesma. Aquela que que, com ou sem “serendipidade”, nem precisa escrever para ser tão bela. Armando Freitas Filho não esquece a palavra fatal e final: “Morte”. Que é vizinha, parede e meia, de outra palavra sinistra: “Guerrilha”.

Mas por que amoroso com tantas palavras graves? Porque, nunca esqueçam, todas as palavras se amam, mesmo as que aparentemente são inimigas. “Porra” se dá com “Você”? Mas “Árvore” bem que podia fazer amor com “Rosa”. Com algum esforço “Madrugada” se juntaria a “Cício”, mesmo que “Vício não precise de “Madrugada”. Fogo”, por exemplo, é uma palavra solitária, não precisa se juntar a ninguém nem a outra palavra, basta irromper na carne, no sangue, ou na mata.

Tudo isso, porém, só é possível por causa de outra solidão: o Brasil não tem uma política externa para a literatura e os escritores que se virem. Foi isso o que fizeram o brasileiro Marcelo Moutinho e português Jorge Reis-Sá, inventando armadilhas para que as palavras se amem e frutifiquem Amor, aliás, reclamado por Saramago, Agualusa e Anne Marie-Metellié, editora francesa, clamando contra a falta de apoio ao escritor brasileiro no exterior. Personagens brasileiros estão censurados: não pode falar em outras línguas.

Resta a nossa língua – e que língua – circular em muitos países pra lamber a ferida. Não é ferida, é dor mesmo. Ou para lamber os sabores de uma prosa que se apresenta, neste momento, com o título de “Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa”, reunindo escritores de cinco países, organizado por Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá. Advinha de quem é o patrocínio? Do Ministério da Cultura de Portugal, através do programa de biblioteca. E, é claro, da editora Casa da Palavra, com um trabalho elegante e requintado.

Para Marcelo Moutinho, apesar das dificuldades, “o livro ficou exatamente como planejávamos: há contos, ensaios e poemas, em forma fixa ou versos brancos. Acho que, em síntese o “Dicionário” é um flagrante da relação dos escritores com a sua língua”. E que língua rica e diversificada. E ainda mais sedutor, porque os organizadores decidiram “não obedecer às regras do novo acordo ortográfico”, diz Marcelo, lembrando que “a proposta era de que o livro ajudasse a destacar essa diversidade. Os livros de José Saramago, por exemplo, sempre foram lançados no Brasil com a grafia original, lusitana, e nem por isso os leitores daqui deixaram de entender o que liam. O acordo que, vale lembrar, vem enfrentando muita resistência em Portugal, me parece um fundo meramente utilitário, mercadológico, e não foi amplamente discutido antes de sua aprovação como deveria”.

Assegura, ainda, que “na verdade acho que, dentro de suas possibilidades, o “Dicionário” pode ao menos ajudar a desmistificar a idéias de que as diferenças solapam a compreensão do idioma. Isso é absolutamente falso. As diferenças, quase residuais quando se trata da palavra escrita, são enriquecedoras. Durante o processo de organização, pude aprender novos vocábulos, com “kandando”, que os angolanos utilizam para designar “abraço”. O leitor, então, encontrará um livro extremamente enriquecedor, com textos de autores de Portugal, Angola, Moçambique e Timor Leste, além do Brasil, é claro. Todos com linguagem própria, com a cor local, com a riqueza vocabular. Tudo isso reunido a escritos de excelente qualidade, revelação de autor, um mundo novo. Sem dúvida. Talvez seja essa a principal contribuição deste livro, com trabalhos de autores bem conhecidos no Brasil, como Antonio Torres e Marcelino Freire, ou de outros que, embora brasileiros, estão sendo conhecidos agora, como Adriana Lisboa, Fabrício Carpinejar ou Tatiana Salem Levy, que conquistou, ano passado, o Prêmio São Paulo, na categoria de Revelação, com um belo romance.

Outro detalhe é que os organizadores optaram também, em grande parte, por autores pouco conhecidos ou desconhecidos no plano nacional, de forma a contribuir para o enriquecimento da literatura brasileira, o mesmo ocorrendo com Portugal, de onde vieram escritores ainda escondidos em livros de pouca – ou nenhuma – circulação. Descobre-se de logo, então, que as dificuldades são recíprocas e as batalhas as mesmas.

Embora parte da crítica tenha ignorado o surgimento de novos autores brasileiros, ele vê, com agrado, o ressurgimento da vida literária, no Brasil, com festas e festivais, encontros e congressos, do tipo Fliporto, Flip etc. “A facilidade de publicação e a ampliação das possibilidades de contato, através da internet, de pessoas que escreviam em diferentes cantos do País, foram dois fatos que colaboraram neste processo, pavimento o surgimento de jovens atores”. Ou seja, vida literária significa maios intercâmbio entre as pessoas, entre os escritores e críticos, que, pouco a pouco, vai criando um bloco de intelectuais que discutem, amplamente, as questões literárias e os caminhos que podem ser percorridos.

O que significa, definitivamente, as palavras se amam, mas são ainda mais amadas pelos leitores. Em qualquer língua. E em qualquer circunstância.

Raimundo Carrero

Idiosyncrasias idiomaticas

Dizem que, mesmo com o advento da rede virtual e das innumeras dimensões do cyberespaço, o livro jamais desappareceria, tractando-se de objecto palpavel. Até depois de cego mantenho minha predilecção pela forma physica dos livros, especialmente aquelles de capa dura e impressos em papel biblia. Reflicto sobre isso emquanto tacteio uma primorosa edição da Casa da Palavra. O volume, intitulado “Diccionario amoroso da lingua portugueza”, é uma anthologia organizada por Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá, reunindo auctores lusophonos dos quatro continentes. Cada auctor escolheu sua palavra preferida no idioma e a thematizou num verbete litterario. Mesmo em papel mais encorpado, o volume ficou gostoso de compulsar e de folhear, sem fallar nas illustrações e photos, coisa que não me compete avaliar.

Nessas felizes opportunidades editoriaes é que nos damos conta da distancia que separa o grammatico do litterato, o lexicographo do poeta. Ainda que restricto a algumas dezenas de verbetes, o vocabulario da anthologia abrange os mais diversos aspectos do vernaculo, morphologica e semanticamente, incluindo termos como “agua” e “fogo”, “rosa” e “violeta”, “neve” e “deserto”, “arvore” e “sombra”, “madrugada” e “silencio”, “guerrilha” e “morte”, “verdade” e “saudade”, “condor” e “insecto”, “sandalia” e “poeira”, “porra” e “buceta”, “vicio” e “você”.
Mais que a plasticidade, a sonoridade, a raridade ou a vulgaridade da palavra escolhida, o significado que cada uma tem para o auctor que a escolheu é o que demonstra a subjectividade da linguagem poetica. Minha escolha foi, previsivelmente, a palavra “sola”, e o poema que a verbeta vae abaixo. Mas nem todas as preferencias são tão inequivocas. Tentem adivinhar, dentre os demais participantes da anthologia, quem teria optado por qual dos vocabulos supracitados: Adriana Lisboa, Alexei Bueno, Amilcar Bettega, Ana Paula Ribeiro Tavares, Antonio Cicero, Antonio José Teixeira, Antonio Torres, Armando Freitas Filho, Bruna Lombardi, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Desiderio Murcho, Fabricio Carpinejar, Fernando Molica, Flavio Izhaki, Francisco José Viegas, Guita Jr., Heloisa Seixas, Henrique Rodrigues, João Melo, Jorge Fernandes da Silveira, Jorge Reis-Sá, Jorge Rocha, José Luis Peixoto, Luis Cardoso, Manuela Costa Ribeiro, Marcelino Freire, Marcelo Moutinho, Mariana Ianelli, Ondjaki, Paulo Brody, Paulo Henriques Britto, Raimundo Carrero, Rui Lage e Tatiana Salem Levy.

Independentemente do estylo ou da esthetica de cada poeta ou prosador, a occorrencia de certas palavras, em qualquer amostragem, sempre nos remette a considerações philologicas que escapam à attenção dos grammaticos e lexicographos. Peguemos, por exemplo, dois pares de vocabulos, um sublime, outro sordido: “rosa” e “saudade”, “porra” e “buceta”.

O que nenhum diccionario explica é por que “rosa” apparece com tamanha frequencia na obra de todo poeta, ou por que “saudade” só existe na lingua portugueza, sem exacta traducção noutros idiomas. Um detalhe orthographico ainda mais raro é o trema em “saüdade”, indicando aquillo que, em poesia, chamamos “dierese”, isto é, uma pausa forçada que transforma um diphthongo em hiato, como no caso das pronuncias erroneas “gratu-i-to” em vez do correcto “gratui-to” ou “flu-i-do” em vez do correcto “flui-do”. No caso de “saüdade”, a pronuncia ficaria “sa-u-dade”, cuja funcção seria apenas contar mais uma syllaba na metrificação dum verso, como na palavra “poesia”, que tanto pode ser trisyllaba como tetrasyllaba.

“Porra” configura um caso interessante porque não tem o mesmo sentido para brasileiros e portuguezes. Bocage, por exemplo, usa “porra” com sentido de “porrete” ou “cacete”, ou seja, o caralho. Para nós, “porra” só tem relação com “esporrar”, ou seja, o esperma ejaculado.

“Buceta”, por sua vez, é corruptela de “boceta”, assim como “viado” é de “veado” e “culhão” de “colhão”, como si a pronuncia mais chula pedisse vogaes mais correntes na voz do povão. Tambem aqui temos differença entre lusitanos e brasileiros. Bocage usa, para a vagina, um termo que tanto pode ser feminino como masculino: “conna” ou “conno”. A boceta para elles é só um estojinho, emquanto para nós uma conninha ou um conninho nada significam, excepto quando lembramos duma scena de sexo oral onde caberia a forma latina “cunnilingua”.

Dicto isto, tracto de retornar à minha predilecção e me despeço com o soneto que offereci ao “Diccionario amoroso da lingua portugueza”.

Glauco Mattoso

SONETO PARA UMA SÓ PALAVRA [2525]

A lusa poesia fez escola
cantando os sete mares, mas eu faço
questão de terra firme, e meu pedaço
de chão ninguem demarca nem controla.

Mais amplo que a terrestre esphera, ou bola
menor que o proprio espaço do meu passo,
o chão que um cego pisa, tão escasso
e immenso, mais que um solo, é o termo “sola”.

Assim, no feminino, a sola é minha
lembrança da visão, quando o menino
pisou na minha cara e eu nove tinha.

Si tenho de compor, portanto, um hymno
ao maximo vocabulo, uma linha
bastava: escrevo “sola” e aqui termino.

Um lado bom das antologias é poder comparar o trabalho de diversos escritores a partir de um mesmo parâmetro. No caso do Dicionário amoroso da Língua Portuguesa, organizado pelos escritores Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá, a linha de partida foi a escolha de uma única palavra que sintetizasse a intimidade entre o autor e o idioma português. A relação fundamentada na linguagem aproximou 35 escritores de cinco países e quatro continentes, cada um com diferentes histórias, idades e visões reunidas em um mesmo livro.

Uma diversidade geográfica e etária que se traduziu na amplitude das escolhas, indo do termo Porra à Morte, do Bosque ao Deserto, do Fogo à Sombra, da inventada Calicrati à pisoteada Sandália, da Palavra ao Silêncio. Apesar da variedade e até da relação contraditória dos temas, quase um terço dos autores se limitou a sugestão do nome do projeto e resolveram descrever um verbete, adotando o formato de dicionário.

Alguns levam isso a sério, caindo na armadilha da linguagem funcional na tentativa de explicar o termo escolhido. É o caso de Serendipidade (onde Bruna Lombardi desperdiça o teor poético do termo no uso de uma linguagem técnica), Casa (crônica repetitiva de Fabrício Carpinejar) e, principalmente, Verdade, do português Desidério Murcho, que deveria estar numa coletânea de ensaios filosóficos.

Mas a repetição do formato não chega a ser uma camisa-de-força aos que optaram pelo padrão acadêmico ou de dicionário. Mesmo assumindo uma estrutura esquemática de tópicos, o verbete Morte, do poeta carioca Armando Freitas Filho, consegue se diferenciar apresentando novas maneiras de compreender o fim da vida. Do ponto de vista acadêmico, vale lembrar o texto Moderno, do poeta Antônio Cícero. Embora tenha optado em escrever um ensaio, Cícero o faz com a inteligência de quem consegue sintetizar sentimentos em versos, tentando explicar um termo que revela vontade de não ser nada.

Esses casos fazem pensar que o problema não é a forma nem o assunto a ser tratado, e sim a capacidade dos autores em subverter a linguagem. No centro da questão está somente a palavra e a maneira como os autores as utilizam. Fernando Molica, por exemplo, transforma a explicação do seu verbete Buceta (assim mesmo, com u) numa crônica através de um texto leve, corriqueiro e inteligente, tão malicioso quanto divertido. Já o angolano Ondjaki mergulha na poesia para oferecer maneiras incomuns de enxergar a Sandália.

Outros escritores nem se preocuparam com as miudezas das explanações, partiram logo para a criação. Assim, os verbetes viraram temas, detalhes ou apenas títulos, um barbante para ser puxado e costurado em forma de palavras no papel. Um caminho que se revelou vários. Desembocou nas experimentações linguísticas do gaúcho Amílcar Bettega em Neve, do moçambicano Guita Jr. em Fogo e do carioca Paulo Henriques Britto em Peteleco; na originalidade do baiano Antônio Torres em fazer uma autobiagrafia da Saudade; no espírito crítico da carioca Heloisa Seixas em Espelho e no olhar delicado da portuguesa Tatiana Salem Levy em Deserto.

Como em Pernambuco também se escreve o português, fomos representados na antologia por Marcelino Freire e Raimundo Carrero. Embora siga na Sombra, a força narrativa de Carrero é iluminada pelo rigor técnico no emprego das palavras, no uso de elipses e de uma lógica infantil (que nos lembra as brincadeiras do protagonista de O amor não tem bons sentimentos); tudo no devido lugar, pensado para manter o ritmo e a tensão do enredo.

Uma preocupação que Freire (na condição de ex-aluno das oficinas de Carrero) também tem, mas seu texto se destaca pela maneira de subverter, indiretamente, a proposta da antologia. Ao focar no termo Palavra, o pernambucano rejeita o sentido de união comunicativa da língua portuguesa e elege como tema a dificuldade de se expressar nesse idioma de solitários.

Thiago Corrêa

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