clique aqui para baixar a capa
- Editora Pinakotheke
- 2005
- ISBN 857191043X
- Português
- Capa Tipo Brochura
- 114 Páginas
Ferreira Gullar afirmou certa vez que a riqueza de uma literatura se intensifica à medida que se multiplicam as suas vozes interiores. O poeta referia-se a uma espécie de murmúrio que parece não pertencer ao narrador e, embora quase inaudível, pode ser notado pelo leitor atento. Pois o que a Pinakotheke propôs a mim e aos outros quinze autores neste livro foi justamente buscar na voz de alguns dos mais célebres artistas plásticos brasileiros – e a voz de um artista é sobretudo sua obra – o substrato para imaginar pequenas narrativas.
A idéia, advirta-se, não sugeria que desfilássemos conhecimento específico sobre o tema, nem a formulação de estudos travestidos de ficção. Pelo contrário: o que deveria nos mover era basicamente a fruição estética que, para além de escolas, contextos e discussões teóricas, cimenta a essência da arte. Os contos aqui reunidos procuram, portanto, exprimir em palavras os sentimentos e os sentidos (ou, ainda, a falta deles) de pinturas, gravuras e esculturas, selecionadas conforme a simples afeição de cada um. Do figurativo ao abstrato, do clássico ao contemporâneo.
Na difícil tarefa de escolher os escritores, tentamos apenas apresentar um recorte – entre tantos possíveis – sobre uma literatura brasileira que, ainda muito distante do cânone, tem conseguido demonstrar vitalidade. São autores de cantos diversos do país, do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul, de São Paulo à Paraíba, passando pela Bahia, que promovem um diálogo criativo entre as expressões visual e escrita, explorando as múltiplas potências que uma obra plástica comporta e apresentando um mosaico de tramas e estilos cujo único traço em comum é, paradoxalmente, a diversidade.
Além de mim, que escrevi meu conto inspirado num quadro de Iberê Camargo, estão no livro Adriana Lunardi (Pedro Weingartnet), Ana Paula Maia (Goeldi), Antônio Mariano (Pedro Américo), Arnaldo Bloch (Gonçalo Ivo), Bianca Ramoneda (Waltércio Caldas), Diana de Hollanda (Ismael Nery), Fabrício Carpinejar (Guignard), Flávio Izhaki (Di Cavalcanti), Ivana Arruda Leite (Pancetti), João Filho (Rubem Grilo), João Anzanello Carrascoza (Raimundo Cela), João Paulo Cuenca (Leonilson), Luciano Trigo (Adriana Varejão), Nelson de Oliveira (Cândido Portinari) e Pedro Sussekind (Milton Dacosta).
Terrível e sublime, linear e fragmentário, delicado e feroz, sagrado e profano. Em permanente tensão, essas (e outras) dicotomias se amalgamam nestes Contos sobre tela, que evocam a arte para falar da arte. E toda evocação da arte é também uma evocação da vida.
Marcelo Moutinho (organizador)
Trecho do conto Menino no escuro, de Marcelo Moutinho
“Desde quando lhe disseram que só à noite vemos a lua, B. pôs-se a gostar dos escuros. Não exatamente das cores sombrias, mas dos escuros que descobria dentro de si a cada vez que a mãe lhe impunha a prenhez da idade adulta com castigos – ficar no quarto sem o som, ou tomar vitamina de abacate pela manhã, ou dormir antes das dez, logo quando começava o filme que tanto queria ver. O tempo então se esticava todo, e as horas encolhiam B. em sua cama. Recostado no travesseiro, ele juntava os pés e dobrava as pernas num V invertido enquanto passeava os olhos pelas paredes do quarto, onde as cortiças dependuradas e cheias de fotos e recortes e pôsteres desenhavam uma precariedade que parecia lhe fazer bem. Ou, ao menos, fazer-lhe algum tipo de companhia. Porque o precário é escuro, e B. cismou que precisava do escuro para, por contraste, ter luz própria. Assim igualzinho à lua. Só desse jeito a vida ganhava contornos mais densos, mais agudos; só desse jeito ela perdia a brancura de sabão em pó. Ele achava isso. Eu, de cá, mal sei.
Sei é que sobrava pouco espaço naquele amontoado de coisas que aos outros pareciam só coisas, de tão banais. Mas que lhe eram especiais. A cortiça, as prateleiras com carros de ferro, gibis, livros e discos. Alguns papéis soltos, o antigo gravador cassete. Uma bola de futebol, um tanto gasta. A espada de alumínio. O carretel. O boneco do Garfield. Um jarro vermelho, presente da tia Heloísa, que fazia jarros e colchas seguindo as instruções dos programas de artesanato. Era a pequena favela de B., feia e viva como todas as favelas, e nela reluzia sobretudo o armário herdado da avó, um monumental túmulo de madeira firme e compacta no qual guardava, a portas cerradas, sua bicicleta. Pelo menos desde o dia em que, num de seus passeios vespertinos pelo bairro, desequilibrara-se e caíra ao ouvir a buzina estridente de um carro.
B., que detesta dormir cedo.
B., que hesita quando a mãe o abraça.
B., que gosta de janelas embaçadas. (…)”
Delicadeza e fúria
Textos de Contos sobre tela chegam a um estado de introspecção e elevação que anda escasso em nossa literatura
O pintor irlandês Francis Bacon, um dos nomes mais importantes da arte do século 20, fez de sua obra um esforço desassombrado de volta à figuração. Não mais uma figura que se contentasse em espelhar a realidade, em evocá-la e reconstruí-la ponto a ponto, como um astro serenamente refletido em um lago noturno, mas uma outra, menos linear e mais perturbadora, que a captasse em toda a sua complexidade e desarranjo. Bacon foi genial porque entendeu que, depois do surrealismo, do construtivismo, do expressionismo abstrato e da arte conceitual, movimentos que, cada um a seu modo, simplesmente barraram o real, era preciso fazer um retorno a ele. Não mais com os procedimentos ingênuos do realismo e do naturalismo, mas com novos métodos e, sobretudo, uma nova coragem, que conseguissem afinar o homem com seu novo tempo.
O que pensaria o inquieto Bacon, podemos especular, de um grupo de escritores que, para chegar ao real, faz o caminho contrário, simplesmente lhe dá as costas e prefere se apoiar no reflexo contorcido e volátil da pintura? Na visão de Bacon, a realidade não é simples, o homem é constituído por uma acumulação de visões, de clarões e de imagens _ que, em suas telas, se expressam num amontoado louco de pinceladas. O real não é apenas aquilo que existe, mas também o que é criado sobre ele, como a arte, a pintura, a literatura. Para captá-lo, portanto, pode ser mais seguro dele se esquivar do que, ao contrário, agarrá-lo pelo pescoço _ quando se corre sempre o risco de produzir uma asfixia.
Ao partir de obras de arte para escrever seus contos, os escritores que têm relatos reunidos na antologia Contos sobre tela dispensam a visão ingênua, a ilusão tola de um contato direto com o mundo, como se o real fosse um cãozinho dócil que se pode a qualquer momento, e sem nenhum risco, acariciar e dominar. Ao contrário, esses escritores partem da complexidade que caracterizam as relações do homem com seu mundo, dos rompantes e sustos que marcam o real; laços sempre mediados pela linguagem e pelo artifício, sempre tensos e insatisfatórios. A pintura é um artifício _ ainda que seja um também um abismo no qual, através dos séculos, o homem jogou parte importante de suas ilusões. Além disso, o contato com a realidade provoca no sujeitos efeitos psicológicos, que destorcem e perturbam, mas também enriquecem sua vida. A realidade é terror e dor, mas também é humor e caos, e tudo isso ao mesmo tempo, sem fronteiras separadas, sem tempos estanques, sem qualquer chance de estagnação. Por isso é perigosa, por isso é bela, e por isso a arte dela não consegue dar conta, ainda que tente e tente e continue sempre a tentar.
Ao se debruçarem sobre telas de grandes artistas como Goeldi, Pedro Américo, Di Cavalcanti, Candido Portinari, Milton Dacosta, Iberê Camargo, Waltércio Caldas, Guignard, esses escritores partem justamente disso: da multiplicidade de olhares, de tensões, de sensibilidades que a pintura pode oferecer, do vigor com que ela é capaz de desarranjar a serenidade do mundo. Artistas cujos projetos nada guardam em comum, evocados por escritores que também se contradizem e se distanciam, sendo dessa dissonância, dessa separação que vem a força de Contos sobre tela. É da própria incapacidade de haver um paralelo entre arte e literatura, é sobre esse abismo sem pontes, que os escritores se põem a escrever. Comportam-se como equilibristas que se exibem sem redes de proteção, sem cintos de segurança, sem garantias, e é no risco, e do risco, que tratam de avançar.
João Paulo Cuenca se inspira em “Ampla visão”, de Leonilson, o genial artista cearense, falecido em 1993, para escrever o seu “A Sala dos Pássaros”, relato que se aproxima, que beira a poesia. “A pior coisa de estar morto é saber que o mundo continua em funcionamento”, diz seu narrador. “É uma sensação de alheamento terrível”. O tema da morte _ da ausência precoce de Leonilson, podemos pensar _ leva Cuenca a se pautar pela delicadeza, em vez de se arriscar no confronto frontal com a realidade. A arte de Leonilson, a literatura de Cuenca, a poesia é isso: sobrevôo. Retomando o espírito do pintor, Cuenca tece sobre o real um manto delicado e insuficiente.
Valendo-se da pintura da carioca Adriana Varejão, a artista conhecida por seu interesse pela azulejaria e pelo barroco, Luciano Trigo faz em “A muda carne das coisas” um relato igualmente inspirado. Adriana é, além de interessada na história, e em particular no período colonial, uma artista conhecida pelas incisões _ verdadeiros cortes de açougueiro, ou suturas de cirurgião __que faz em suas telas, dando a ver camadas submersas e perspectivas pouco visíveis. Expondo, portanto, as fendas da carne, aqueles sulcos que, escondidos sob a pele, permanecem silenciosos, como se não existissem. É também com incisões, com cortes abruptos e profundos que Trigo trabalha seu conto, arrancando as palavras da folha, da tela vazia com a volúpia de um pintor.
É curioso ver, por exemplo, o que Flávio Izhaki faz com uma tela clássica como as “Moças”, de Di Cavalcanti. Ele a retoma com suaves lembranças de experiências sexuais juvenis. Depois de ser levada pelo pai a uma primeira visita ao ginecologista, a menina medita: “Vergonha é sentimento maior que palavra, não cabe em sílabas, ignora plural”. Também os traços contidos em uma pintura parecem espessos demais para os espartilhos justos da língua. Como a língua é redutora e pobre diante da plenitude das imagens! E, no entanto, ela é capaz de abrir clarões que à visão escapam, cintilações que são mais detectadas pela mente do que pelos olhos. Estranheza da escrita, grandeza da escrita: é sobre ela que esses escritores, com suas telas de empréstimo, se põem a trabalhar.
O que fazer com a insuficiência das palavras quando a arte é difícil e provocadora como a do escultor, desenhista e artista gráfico carioca Waltércio Caldas? “Decidi por o que penso no papel para ter a certeza de que as idéias não vão fugir”, começa a narradora de “Eisntein sobre Eisntein”, conto de Bianca Ramoneda inspirado sobre o “Einstein” de Waltércio. Ela tenta falar numa “edição sem cortes”, um fluxo incontinente como nas conversas interiores, aquelas que devoram nossos pensamentos e que nos arrastam para lá e para cá. Que nos absorvem e submetem. “Eu que só achava o feio e o imperfeito realmente bonitos na arte, não na vida”, ela medita. Na complexa pintura de Waltércio, todos elementos tradicionais se decompõem, tornando-se inúteis, linhas e cores escapando a nosso controle, falência dos métodos e dos materiais. Bianca, a escritora, procura sincronizar com essa suspensão das certezas, com esse mar de dúvidas. Consegue? O que vale não é o resultado _ já que a idéia de um mundo fixo e resolvido está, ela também, muito distante da obra do artista, que se pauta pela instabilidade e pelo desejo de revelar o invisível. Já se disse que a obra de Waltércio é um ataque à estabilidade de quem a observa; também Bianca tenta fazer, da escrita, um soco, um trovejar sobre a instável e fraca que separa a linguagem do real.
Uma agitação convulsiva, como a que Marcelo Moutinho faz partindo de Iberê Camargo e seu esplêndido “Tudo é falso e inútil”. Noções que antes eram fixas e consagradas, e que hoje se instabilizam, como a verdade e a mentira nas mãos hábeis de Iberê. “Eu pinto porque a vida dói”, disse certa vez Iberê. Dizia não ter nascido para brincar com figuras, nem para enfeitar o mundo, mas para confrontar a dor. “B.”, o personagem de Moutinho, como num relato de Cortazar, amanhece com a idéia fixa de que cupins iriam tomar conta de seu armário. Uma fotografia desaparece de sua cortiça de parede. Não só as fotos, objetos continuam a desaparecer, a evaporar-se, sem explicação. “A paisagem descosturava-se em ausências e ausências e ausências”, idéia que repete a idéia de Iberê de que tudo é falso, não só falso, mas transitório, não só transitório, mas ilusório _ quer dizer, tudo o que o homem faz é produzir ilusão. Tudo mentira, real, arte, escrita, tudo no mesmo desvão.
Nelson de Oliveira, em seu “Senhora aos domingos”, dialoga com o “Retrato de Ruth Leão”, do pintor Candido Portinari, falecido em 1962. Um artista que se pautou pelo antiacademicismo, e que se dirigiu para a temática social. O resultado não é menos tenso. Madalena, a personagem de Oliveira, é uma mulher comum que, no entanto, se deixa abalar por pequenas vertigens. Mulher de passos “leves, porém decididos”, ela expressa a alma burguesa, na qual a suavidade é só uma máscara da objetividade, ou melhor dizendo, da crença inabalável no objetivo. No parque, ela se delicia com as miudezas da vida, toma pequenos sustos com banalidades, observa o movimento do mundo. Até que esbarra com outra mulher, uma estranha, que tem “os passos de uma mendiga”, que parece em tudo o oposto dela e que, no entanto, ali se oferece, como desafio. “Madalena, sufocada de tantas sutilezas, sente vontade de gritar”, Oliveria descreve. É nesse choque de sensibilidades que o escritor acessa o que há de súbito e de provocador em coisas que parecem, em geral, serenas e resolvidas. Para isso servem a arte e também a literatura: para mostrar que o mundo não é nada confiável.
Em “De viés”, Pedro Sussekind se propõe a rever a arte do pintor, desenhista e gravador Milton Dacosta, falecido em 1988. Um artista que viveu em Paris, onde conheceu Pablo Picasso, e que se notabilizou por seu interesse pela figura de Vênus. Dele, Sussekind escolheu a tela “Encontro II”. Seu personagem faz a travessia de barca entre o Rio e Niterói _ onde Dacosta nasceu. Um trajeto rotineiro, que começa a mudar quando ele encontra uma menina loura, “com olhos grandes, quase desproporcionais”. Uma Vênus? É a moça quem o apresenta ao trabalho de Milton Dacosta. Guarda consigo o telefone da mulher, mas não consegue mais procurá-la, “como se nosso encontro fosse uma linha pequena, de viés, um encaixe de peças num plano menor e diferente, à parte, num grande plano do mesmo tom”. Está a um passo da beleza, mas tudo o que tem é esse passo anterior, esse “quase” que torna o real, por definição, inacessível.
A fenda em que o personagem de Sussekind experimenta sua aflição, que é ao mesmo tempo sujeição às fronteiras justas do mundo e descoberta de um breve espaço pessoal e inconfundível, repete a experiência da arte, e também da literatura. Parece que, inspirados pela força dos quadros, os escritores reunidos em Contos sobre tela conseguem chegar a um estado de introspecção e de elevação, de delicadeza e de fúria, espaço instável, mas potente, que anda escasso em nossa literatura. Certamente, os contos aqui reunidos são mais exercícios, sem a esperança do acabamento e do bem feito, escritos com o mesmo espírito de aventura e até de irresponsabilidade com que os artistas se põem a trabalhar em seus ateliês, experimentando cores, traços, perspectivas, atirando fora e recomeçando, sem nunca saber onde chegaram, ou mesmo se já chegaram. Eles abrem sendas, apontam direções, descortinam horizontes, tudo ainda vago e incompleto, tudo precário e sempre a fazer. Exatamente como faz a literatura, quando ela é feita com vigor e sem afetação, como um risco pessoal e não uma tola consagração. Como um ato de vida ou morte. Ele se expressa na idéia de Francis Bacon: “A pessoa tem sua própria maneira de transmitir o sentimento e a sensação da vida, e só existe uma maneira de fazer isso. Se a maneira é boa, eu não sei, mas é levada às últimas conseqüências”.
Traços, tintas e instalações em 16 escritos inéditos
“Há um mês, a escritora e jornalista Bianca Ramoneda foi à casa do artista plástico Waltercio Caldas e entregou-lhe um texto. Ele pediu que ela o lesse em voz alta. Com ansiedade, Bianca pronunciou suas próprias palavras escritas, inspiradas pela instalação “Einstein”, de Waltercio. Nada de crítica de arte, nada de descrição da obra, nada de reportagem. Apenas um conto, cuja única referência em comum com a instalação é o nome, “Einstein sobre Einstein”.
A tarefa de escrever ficção a partir da obra de um artista plástico brasileiro lhe foi atribuída pelo também escritor e jornalista Marcelo Moutinho, que propôs o mesmo desafio a si e a outros 14 escritores. Em apenas 45 dias, todos tiveram que escolher uma obra e escrever, sem a obrigação de citá-la ou contextualizá-la no conto. A obra poderia ser só inspiração. O resultado, o livro “Contos sobre tela”, com prefácio de José Castello, será lançado hoje, às 19h, pela Editora Pinakotheke, na galeria Pinakotheke Cultural, em Botafogo. As obras estão reproduzidas no livro.
Bianca foi a única que escolheu uma instalação. Para ela, a dificuldade foi usar como suporte uma obra que essencialmente não precisa de palavras. Um problema solucionado por diferentes vias dentro do livro, dando um caráter de diversidade literária que acompanha a variedade das obras — dos modernos Di Cavalcanti e Guignard aos contemporâneos Adriana Varejão e o próprio Waltercio.
— A graça da literatura é criar imagens na cabeça do leitor. E a graça das artes plásticas é não usar as palavras para se comunicar de maneira poética. Não queria empobrecer as artes nem prender o leitor a uma imagem — diz Bianca. — Mas a tela tem um enquadramento, e queria dizer coisas que estão além da moldura. E assim cheguei ao Waltercio. Não há moldura possível para ele. Waltercio fala do espaço e a partir do espaço. E o que é mais rico: não explica.
A solução de Bianca foi usar a idéia de convívio entre as diferenças que a imagem — um alfinete de frente para uma bola de bilhar — sugeriu-lhe para criar uma narrativa independente. Assim também fizeram autores como João Paulo Cuenca, no conto “A sala dos pássaros”, baseado na obra “Ampla visão”, de Leonilson, que ilustra a capa; e Arnaldo Bloch em “As pedras”, inspirado na obra homônima de Gonçalo Ivo. Nesses textos, a imagem é como um sopro que percorre as palavras. Já no conto “Menino no escuro”, de Moutinho, estão ali um menino e sua bicicleta, como na tela “Tudo é falso e inútil”, de Iberê Camargo.
— Minha relação é maior com cinema e música, mas as artes plásticas dão mais liberdade de criação. Elas têm menos um conceito fechado. Fiquei impressionado com os autores que escolheram quadros mais clássicos, porque é difícil sair da imagem. É o mesmo que uma narrativa em poesia — diz Moutinho, que está organizando o livro “Verso em prosa”, com contos inspirados em poetas.”
Suzana Velasco
A escrita das imagens
Coletânea de narrativas a partir de obras de arte sugere um exercício lúdico de leitura
“No romance de José Saramago, Manual de pintura e caligrafia, o narrador-personagem transita do mundo da pintura para o literário, relatando algumas fronteiras marcadas pelas diferentes necessidades de representação. Ao refletir sobre essa transcendência, afirma: ”Brinco com as palavras como se usasse as cores e as misturasse ainda na paleta. Mas em verdade direi que nenhum desenho ou pintura teria dito, por obras de minhas mãos, o que até este preciso instante fui capaz de escrever, e atrever”. A comparação indica que retrato pode, ainda que com suas limitações diante da escrita, sugerir de uma história – ou mais de uma -, como o instantâneo de uma linha contínua que o observador pode, a partir de seu conjunto internalizado de narrativas, puxar e reconstruir.
E quando quem observa é um escritor, essas possibilidades tendem a ser exploradas das formas mais inusitadas. É o caso da coletânea Contos sobre tela, que acaba de sair pelas Edições Pinakotheke. O escritor carioca Marcelo Moutinho convidou outros 15 autores de diversas partes do país com o desafio de escreverem um conto baseado numa pintura ou escultura de um artista plástico brasileiro. Como em toda antologia desse tipo, são fornecidas amostras da literatura que vem sendo produzida pela geração atual, ainda que dentro dos limites de uma temática pré-estabelecida.
Como já afirma José Castello no prefácio, ”os contos são acima de tudo um exercício dos jovens autores”. Ao associar esses textos às imagens do início do livro, o leitor recria uma parte desse mesmo exercício. Os diferentes modos de escrita – pois estamos falando de uma geração cuja peculiaridade é o desprendimento de um todo, seja cronológico, seja de estilo, seja de temática – permitem uma leitura também diversificada no que se refere ao estabelecimento de relações entre o conto e o respectivo quadro.
Desse modo, alguns contos têm um fio sutil e alegórico que os liga à obra de arte correspondente, como no poético ”A sala dos pássaros”, de João Paulo Cuenca, numa narrativa docemente trágica acerca da morte, a partir da obra do pintor cearense Leonilson. Em outros casos, como no ótimo ”Enquadramento”, de Adriana Lunardi, a tela de Pedro Weigärtner funciona apenas como o retrato de uma situação narrada. Já em ”A carioca”, de Antônio Mariano, a história é justamente sobre a suposta modelo que posou para o quadro homônimo de Pedro Américo, em 1882. Esse tipo de relação, na qual a descrição das imagens se integra à narrativa, ocorre em boa parte dos contos. Desse grupo, merece destaque ”A muda carne das coisas”, de Luciano Trigo, que criou a partir de ”Azulejaria em carne viva”, da carioca Adriana Varejão, uma narrativa na qual a carne, numa representação dos conflitos humanos, salta por detrás dos das calmarias ilusórias: ”Mas de dentro vem o cheiro das tripas do azulejo: a carne, o sangue que palpita por trás das cerâmicas impolutas, que se racham e deixam ver a vida, o esforço, a dor”. O texto de Marcelo Moutinho, baseado em ”Tudo te é falso e inútil”, de Iberê Camargo, apresenta uma história na qual todos os objetos desaparecem diante dos olhos do protagonista: ”Porque o precário é escuro, e B. cismou que precisava do escuro para, por contraste, ter luz própria”. Ao lançar mão desse recurso, a narrativa se converte num tipo inverso de simulação, da qual a perspectiva da realidade é revelada – no sentido de ser descoberta e velada novamente.
O conto de Flavio Izhaki, ”Apenas eco”, escrito a partir do quadro ”Moças”, de Di Cavalcanti, é o que encontra a mais equilibrada realização da proposta do livro, ao estabelecer uma dança imagético-textual ao longo da narrativa sobre as reminiscências sexuais da vida de uma mulher: ”Crescer foi borrar-me aos poucos, desatar o laço que as mãos fazem com os joelhos, desapegar de mim para outro, para outros. Romper os limites negros da fronteira com o mundo, inundar de vermelho o branco enevoado da vida adulta”. O início da história, em que o desassombro da narradora é transmitido a partir das suas sensações cromáticas, pode representar, por metonímia, a idéia de toda a coletânea.
É muito comum encontrar personagens de ficção recriados em quadros, esculturas ou em instalações. Mas o oposto também é possível. Contos sobre tela é um exemplo de que a arte da escrita pode beber de outras fontes, sobre as quais repousa ou se esconde uma história a ser narrada. Trata-se, portanto, de uma possibilidade de transfiguração de manifestações artísticas em que a que a literatura, com sua concisão e abertura simultâneas, estabelece com o leitor uma espécie de jogo de imagens e palavras.”
Henrique Rodrigues
Quando as artes se misturam
Contos sobre tela” apresenta 16 histórias baseadas em pinturas ou esculturas
“Desafiando o clichê de que uma imagem vale mais do que mil palavras, 16 escritores contemporâneos tentam mostrar no livro Contos sobre tela que um determinado número de palavras pode valer tanto quanto a obra de grandes mestres das artes plásticas.
Contos sobre tela (144 páginas, R$ 39) é um lançamento da editora carioca Pinakotheke, com organização do jornalista e escritor Marcelo Moutinho e prefácio do crítico e jornalista José Castello. Nele, autores contemporâneos de vários estados do Brasil foram desafiados a criar um conto inspirado por uma pintura ou escultura de algum grande nome brasileiro. A história resultante deveria ser uma obra autônoma que dialogasse com sua inspiração original.
Como as telas e esculturas que deram origem às histórias, os contos apresentam grande diversidade de estilos. Alguns textos aproveitam a sugestão da imagem evocada pela tela, outros buscam uma aproximação complexa entre a linguagem usada no conto e ideário artístico de cada pintor ou escultor.
O gaúcho Fabrício Carpinejar, por exemplo, pertence ao primeiro grupo. Exercita seu lado contista sem abandonar a poesia no jogo de espelhos Leite empedrado, conto sobre duas duplas de gêmeas inspirado no retrato duplo que o modernista Alberto Guignard pintou de duas mulheres também gêmeas.
Adriana Lunardi parte de Barra do Ribeira, bucólica cena de pescaria pintada no estilo acadêmico do gaúcho Pedro Weingärtner para criar uma delicada história de infância vazada em uma linguagem também clássica. O organizador da antologia, Marcelo Moutinho, inspira-se na sombria pintura Tudo te é falso e inútil, de Iberê Camargo, para criar a história de um menino que vê seu mundo sumir aos poucos.
O livro traz reproduções das 16 obras que inspiraram os contos, favorecendo mesmo quem não é versado em artes plásticas. Um diálogo tão rico que poderia ser retomado em novos volumes. Este repórter, por exemplo, fica imaginando como seria um conto de ação baseado em alguma das aquarelas da série Farrapos de José Lutzenberger.”
Carlos André Moreira
“Contos sobre tela” (Edições Pinakotheke), organizado por Marcelo Moutinho, promove o encontro entre 16 autores e seus quadros favoritos. É um livro pequeno, que pode não chamar sua atenção na vitrine. Mas é uma preciosidade criativa: os textos trabalham com a percepção, alguns são mais diretos, outros mais oblíquos, mas todos jogam com essa relação entre arte e literatura, entre pintura e percepção do mundo. Cada autor tenta dar conta da sua própria forma de enxergar a realidade, e assim lembrar ao leitor que nunca haverá narrativa capaz de capturar o que está num quadro, da mesma maneira com que não se pode dar conta do que vai na realidade. Temos e compartilhamos apenas nosso olhar particular sobre o fatos. O mundo, assim como os quadros e os contos sobre tela, é impreciso.
“A literatura dialoga com as artes plásticas e com a música em Contos sobre tela (Pinakotheke) e Aquela canção (Publifolha). No primeiro, 16 autores de diferentes estados tiveram a pintura ou escultura como ponto de partida para suas narrativas. “Foi uma experiência riquíssima para todos os que participaram do projeto. Alguns optaram por atrelar de modo claro o conto à obra escolhida.. Outros mergulharam na mais pura abstração”, explica Marcelo Moutinho, organizador e um dos autores do livro.
No conto que escreveu, ele se inspirou na obra Tudo te é falso e inútil 1, de Iberê Camargo. “Procurei encontrar, na narrativa, aquela espécie de fantasmagoria, de amargura expressionista e funda que marcou a obra de Iberê. A idéia do livro é tentar refletir, na literatura, as sensações que nos dominam ao observar um quadro e tentar levá-las para outro campo, mas preservando-as”, diz Moutinho. (…)”
COMMENTS ARE OFF THIS POST