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- Editora Rocco
- 2011
- ISBN 9788532527097
- Português
- Capa Tipo Brochura
- 120 Páginas
Um ônibus que circula pela zona sul do Rio; a cabine telefônica de uma associação de moradores; o exíguo boxe de um banheiro. É em espaços assim, onde as dimensões mais corriqueiras articulam o ímpeto de microcosmos sempre surpreendentes, que se desdobram alguns dos contos de A palavra ausente, novo livro do escritor carioca Marcelo Moutinho.
Por esses cenários triviais – e, por isso mesmo, tão ardilosos – circulam personagens para os quais a perda, ou a ausência, está sempre à espreita. Aliás, o título do livro já sugere a questão que vai pairar, como uma sombra, sobre as dez histórias. Em dupla acepção semântica, pode aludir à carência da palavra, mas também expressar uma simples menção ao vocábulo “ausente”, à falta de algo, ou de alguém.
Algumas vezes, essa ausência se impõe forma de uma falta intransponível – como em “Àgua”, no qual um filho dá banho no pai doente, antecipando o vazio do fim, ou “Folia”, em que um mestre-sala vê o seu cotidiano redimensionado pela partida da companheira. Noutras, surge como a aparição da ideia da morte, pela primeira vez, no universo infantil – casos de “Jogo-contra” e “Dindinha”. Há, também, a aflição da perda nas relações amorosas; a espera ainda oclusa pelo surgimento de um filho na rotina de um casal; o silêncio atordoante de um telefone que não toca.
E nem sempre a ausência se refere à distância de uma pessoa. No fio que une os contos de A palavra ausente cabe, ainda, o sentimento de perda impulsionado pelo desejo não-realizado da própria literatura: caso de “Dona Sophia”, no qual a camareira de um hotel em Manaus é assaltada pelo fascínio da leitura, após o encontro com uma autora célebre.
Passando inteiramente ao largo dos lugares-comuns atrelados ao tema, o autor reforça neste novo trabalho o estilo que já havia marcado sua obra anterior, Somos todos iguais nesta noite, também publicada pela Rocco. Os pequenos dramas encenados no espaço urbano são narrados com uma prosa ao mesmo tempo lírica e objetiva, que, como destacou Cíntia Moscovich na orelha do livro, realiza um “mergulho corajoso e solidário na densidade humana”. Com maestria literária, Marcelo Moutinho perscruta os meandros da ternura, em histórias que revelam: a delicadeza nunca é simples.
Júlia já havia parado de chorar quando ela bateu suavemente na porta do quarto.
– Abre, querida, é a Dindinha.
A menina acabou de enxugar os olhos com a palma das mãos e caminhou, esvaziada, até a porta.
– Oi, Dindinha – e a madrinha a enlaçou num abraço em que a demora não se nota.
Sentadas na cama, a porta já fechada, Dindinha alisava os cabelos negros de Júlia enquanto falava que a mãe logo iria esquecer o assunto, que a mãe era nervosa mesmo, e que esse negócio de fingir dor de barriga para faltar à escola não estava mesmo certo.
– Mas você vai ver. Depois de um dia ruim vem sempre um dia bom.
Júlia nunca tinha pensado nisso. Que pudesse existir alguma lei, segundo a qual haveria sempre um revezamento nas coisas que aconteciam com a gente.
– É uma questão de justiça divina, Julita – e a Dindinha sabia de tudo. Era a mais estudada da família, fez até faculdade. A mãe às vezes dizia que a Dindinha se achava e Júlia ficava pensando que faltava algo aí. Se a tia se achava, se achava o quê?
O som agudo soou logo cedo. Dindinha apertava a buzina do carro para acordar a manhã e expulsar qualquer sujeira que restasse da noite passada. Júlia reconheceu o barulho, e correu para o quintal a tempo de ver a tia ainda batendo a porta do Chevette dourado.
Ao entrar na casa, Dindinha ouviu os muxoxos da mãe de Júlia, que reclamava daquela algazarra antes das oito. Mas não ligou:
– Julita, vamos pra Petrópolis!
– Vamos?
– Vamos. Você tem que conhecer o Museu Imperial. Pra entrar lá, a gente tem que botar uns sapatos grandões.
– Como assim, Dindinha?
– É pra não arranhar o chão. São umas pantufas imensas. E você vai conhecer também a casa do Santos Dumont.
– Aquele do avião?
– É!
– Posso ir, mãe?
– Vai, mas quero ela aqui antes de anoitecer, viu, Dona Beth?
– Fechado.
Ao entrar no carro da Dindinha, a mochila da Mônica colada às costas, Júlia carregava uma vastidão de ansiedades, que haveriam de morrer à medida que o dia transcorresse.
– Eu não disse que depois de um dia ruim vem sempre um dia bom?
E ela não tinha como discordar da tia, que dirigia fazendo um dueto com Roberto Carlos, cujas canções tocavam sem parar no toca-fitas.
– Você sabia que a sua mãe sonhava em casar com o Roberto Carlos?
– Minha mãe? Mas e o meu pai?
– Sonho é sonho, Julita.
– Eu não queria que meu pai fosse o Roberto Carlos. – E a Dindinha riu do resmungo da menina.
Na parada da Casa do Alemão, as duas comeram brioches e bolinhos de carne, e compraram biscoitos amanteigados para na volta amansar a mãe. Já em Petrópolis, depois de visitar o museu e brincar de limpar o piso arrastando os sapatos, foram à casa de Santos Dumont, onde Júlia se divertiu com a escada projetada para se começar a subida com o pé direito – canhota, ela não entendia por nada essa mania de as pessoas acharem que tem que começar tudo com o pé direito. Até o Santos Dumont, meu Deus.
Foram ao Quitandinha, à Casa da Princesa Isabel, ao Palácio de Cristal, e passearam pelas ruas antigas da cidade, as mãos entrelaçadas dizendo mais do que as palavras, Júlia maior por dentro do que por fora. Quando enfim almoçaram, um canelone ao molho branco, com direito a torta alemã de sobremesa, a tarde já começava a se despedir com o vento frio da serra.
– Vamos embora. Senão, já viu – e Dindinha pagou a conta, tocando Júlia até o carro.
Pegaram a estrada. Enquanto desciam, Júlia dançava com as curvas, deslizando de um lado a outro no banco de trás. Só pararam para comprar banana-ouro.
– Você já provou?
– Nunca!
– É docinha…
Comeu praticamente todo o cacho, que ficou a seu lado até a chegada ao Rio.
Júlia passou mal no dia seguinte, e teve ainda mais certeza: depois de um dia bom vem um dia ruim, e vice-versa. Dor de barriga, enjoo, o corpo pesado como chumbo. O que valia era Petrópolis latejando na lembrança.
Quando prendeu o dedo na cadeira de praia, e a mãe jogou vinagre, santo remédio caseiro, sem contudo evitar a dor e a rouxidão, que permaneceu por dias;
Quando Aline não quis emprestar o livro sobre a menina que virava rosa, e Júlia achou que ela não era mais a sua melhor amiga;
Quando o pai não deixou que ela fosse para a colônia de férias da escola, e todas as outras garotas foram;
Quando jogaram fora a Luluzinha, boneca de que mais gostava;
Quando o bloco passava na rua, e ela não podia ir ver as fantasias;
Quando a mãe montou uma festa no quintal, e choveu.
Nessas, e em tantas outras ocasiões, vigorou a frase da Dindinha, que Júlia tomou como regra. Confortava a certeza de que tudo de ruim, e grande, poderia vir seguido de algo bom do mesmo tamanho.
E foi à frase da tia que ela recorreu, mais ou menos um ano depois de ouvi-la pela primeira vez, ao ver Dindinha recostada na cama do hospital. Exames de rotina, contou a mãe, e aquela visita não fez medo em Júlia.
– Quando a gente vai de novo a Petrópolis?
– perguntou ela, sapecando um beijo na testa da tia.
– Logo que eu sair daqui.
– E vai demorar?
– Acho que não, Julita. É só acabarem os exames.
– E a gente vai poder ir de novo no museu?
– Claro!
– E na casa do Santos Dumont? E comer canelone?
– Vai, meu amor.
– E comprar banana-ouro na volta?
– Só se você prometer não comer o cacho todo para não passar mal. – E o gracejo rasgou um sorriso no rosto de Júlia.
Na semana seguinte, estava de volta ao hospital.
– A tia precisou fazer mais exames, Júlia.
– A essa hora da noite?
– Mudaram o horário de visita.
– Mas ela tinha falado que ia pra casa logo! E que a gente ia de novo para Petrópolis.
– Por favor, filha, não comenta isso lá de jeito algum.
Júlia não comentou. Ao olhar para a tia, parecia que não, aquela não era a Dindinha. Os cabelos, agora ralos, abriam pequenas falhas. Estava magra, um fiapo em roupas brancas. A expressão, abatida, mentia sobre quem estava ali.
Dindinha tomava café com leite com a ajuda de uma enfermeira, que erguia a colher, levava até sua boca e voltava a mergulhar na xícara. Júlia pediu que ligassem a TV para ver o programa da Hebe, o preferido da tia.
Viram juntas.
Quando o programa terminou, a mãe chamou Júlia para irem embora.
– Não esqueci de Petrópolis, viu, Julita?
Na semana que vem, tá combinado?
– Combinado, Dinda – a menina respondeu, reencontrando no semblante da tia uma nesga de serenidade.
– Vamos embora, Júlia – a mãe apressou.
Antes de ir, Júlia voltou até a cama, aproximou os lábios do ouvido da tia e disse, sem acreditar, que depois de um dia ruim sempre vem um dia bom.
Este A palavra ausente, terceiro livro individual do escritor e jornalista Marcelo Moutinho, é, em essência e a bem dizer, uma reunião de contos de formação. Todos os textos têm por temática as perdas e as faltas: as ausências que cavam na alma o buraco onde vai se moldando a idade madura de um ser humano. Não por acaso, Moutinho abre seu volume com Água, conto concentrado numa única cena, bela e tristíssima, que gira em torno à maior e mais exasperante de todas as perdas ordenadas ao homem pela natureza.
Melancólico sem jamais ceder aos apelos fáceis da emotividade, o autor revela uma escrita precisa aliada a uma qualidade superior de sentimentos, testando (e conseguindo) representar com talhe realista o assombro dos lugares vazios. Valendo-se algumas vezes de um narrador-menino, Moutinho consegue cunhar contos surpreendentes, caso de Jogo contra, em que articula a alegria do futebol, a frustração da derrota e a perspectiva da morte, e Dindinha, em que a lógica da doença se impõe a uma criança. Em pelo menos dois outros contos, Folia e Um cartão para Joana, há uma espécie de luto perene, linhas de sombra que fazem parte do cotidiano de todos os que já passaram por experiências de drama ou tristeza.
Falando sobre o exercício de tolerar a perda e a morte, o autor não deixa de lado a violência dos morros, a brejeirice das praias cariocas ou a estranheza de uma camareira num hotel de Manaus. Tudo parece ser motivo para desenvolver a temática a que se propôs e para exercitar sua prosa, chegando a um nível superior de domínio técnico e, muito importante, a um mergulho corajoso e solidário na densidade humana que vai, texto a texto, compondo.
Cíntia Moscovich
A tristeza poética na dor do viver
Em comum, os personagens de A Palavra Ausente (Rocco), livro de contos que o carioca Marcelo Moutinho lança hoje em São Paulo, têm aquela dor que é própria do viver, do estar, ou querer estar, só, e do esperar – um gesto, um sinal, um carinho, uma palavra qualquer.
“Eles têm uma tristeza que eu qualificaria como benigna, poética. A beleza das coisas levemente tristes num tempo de ditadura da alegria”, comenta Moutinho. São, de fato, histórias bonitas e simples que retratam pessoas comuns que esperam que a vida entre nos eixos depois de uma perda ou que só se acostumam a viver mais ou menos bem, mais ou menos felizes.
É o caso do filho, adulto, que dá banho no pai doente e ausente no conto Água, que abre o livro. Ou da idosa Dalva em Interlúdio, que ainda espera, como sempre esperou, o toque do telefone. Em Jogo-Contra, um garoto reluta em convidar o pai para assistir ao campeonato de futebol do bairro com medo de fracassar. Supera a insegurança, faz o convite, perde a partida e ainda deixa um prejuízo para o pai, que não liga e está feliz só por estar ali. Morte, separação, demissão são alguns dos temas da obra.
Quando Moutinho viu que a questão da ausência marcava tudo o que vinha escrevendo espontaneamente, tratou logo de criar outras histórias para fechar o livro, que lança agora, dez anos depois de sua estreia com Memória dos Barcos (7Letras). Isso porque ele prefere, como diz, a ideia de “contos orgânicos”, que estão na obra por algum motivo, a uma mera coletânea de textos escritos de forma aleatória.
Nesses dez contos, as relações familiares são quase onipresentes. E todas as histórias se desenrolam em ambientes nem tão ricos nem tão pobres, algo que o autor vem buscando desde seu título anterior Somos Todos Iguais Nesta Noite (Rocco) por achar que a classe média baixa seja pouco retratada pela literatura contemporânea.
“Me incomoda um pouco essa concentração de histórias no universo da classe média alta ou da favela e periferia, ignorando um mundo que há no meio e a vida dessas pessoas com seus amores, suas dores e epifanias.”
Outros dois temas pouco presentes na literatura contemporânea, apesar de impregnados no imaginário brasileiro, na opinião de Moutinho, são o futebol e o carnaval. Aliás, duas paixões do escritor.
Império Serrano roxo, foi num dos ensaios da escola carioca que ele viu, no banheiro, o senhor responsável pela limpeza dançando com o rodo enquanto empurrava a urina ralo abaixo. “Foi comovente ver a estupenda e contida alegria daquele homem naquela situação, num banheiro com cheiro de mijo, suor e desinfetante barato. Ver a forma como ele, sem nunca ter lido Calvino, intuitivamente, procurou, dentro do inferno, o que não é inferno.”
Moutinho, que é também jornalista, deixou o lado repórter para lá e só imaginou como poderia ser a vida desse faxineiro. Criou então Silas, protagonista do conto Folia, que não chega exatamente a dançar com o rodo no banheiro – talvez o faça na imaginação, mas que prepara o uniforme cinza, sem graça, como se fosse dia de desfile e ele ainda fosse o mestre-sala. É nessa rotina que ele procura um sentido para sobreviver aos dias sem Áurea, sua porta-bandeira.
Alguns dos textos já haviam sido publicados em outras coletâneas. Cavalos-Marinhos, por exemplo, foi escrito para Como Se não Houvesse Amanhã (Record), de contos inspirados em músicas da Legião Urbana, e narra o dia da mudança de um casal gay recém-separado.
Embora esteja escrevendo um romance pela primeira vez, Marcelo Moutinho é um grande defensor do conto e receia que o gênero tenha o mesmo destino da poesia dentro das editoras brasileiras, ou seja, pouco espaço e interesse editorial.
Maria Fernanda Rodrigues
Quando o Carnaval passar
Marcelo Moutinho contraria estereótipos sociais ao conferir densidade subjetiva a personagens suburbanas
O título do terceiro livro de contos de Marcelo Moutinho, “A Palavra Ausente”, não corresponde a qualquer dos textos da coletânea, mas indica seu tom geral: relatos sob o signo da perda -do pai, do amante, das ilusões.
Moutinho tem uma percepção afinada com o imaginário da música popular brasileira e, em especial, do Rio de Janeiro. São enredos de esperas e desencontros, em que mazelas sociais fornecem o quadro geral de uma melancolia que não deixa de ter suas razões objetivas, mas cujas carências se tornam mais agudas na querência afetiva.
Bom exemplo é “Para Ver as Meninas”, em que o narrador, após ser despedido, embarca num ônibus e faz um inventário de suas mágoas amorosas, enquanto escuta a canção de Paulinho da Viola que nomeia o conto.
A velha solitária que espera um telefonema enquanto amarga o esquecimento diante da televisão (“Interlúdio”) e a menina que vê definhar a madrinha que lhe dera lições de esperança (“Dindinha”) são narrativas que caminham no fio da navalha que separa o lirismo da pieguice.
Mas é justamente por enfrentar os riscos da gramática sentimental que Moutinho consegue realizar algo raro: dotar personagens do subúrbio carioca de uma densidade subjetiva que vai na contramão dos estereótipos sociológicos.
O faxineiro do conto “Folia” -que tem lampejos de seu passado de mestre-sala enquanto limpa as latrinas da quadra da escola de samba- é ainda uma figura vista à distância pela narrativa em terceira pessoa. Já o protagonista de “Um Cartão para Joana” -funcionário incumbido de criar mensagens natalinas e de Ano-Novo, mas que não consegue renovar os votos de um casamento agonizante- é um desses momentos em que a imaginação literária encontra abismos nas existências mais banais.
Há na prosa de Moutinho um projeto oculto, cuja realização é o belíssimo “Dona Sophia” -encontro imaginário, em Manaus, de uma camareira de hotel com a grande poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que presenteia a serviçal com um livro que traduz afinidades silenciosas.
As personagens de Moutinho estão sempre se guardando para quando o Carnaval chegar. Como a folia logo passa, deixando um travo amargo de nostalgia do futuro, resta uma sensibilidade que rompe barreiras sociais e literárias.
Manuel da Costa Pinto
Quando o conto é poesia
Mesmo sem mercado, o conto continua encantando as novas gerações de escritores, tanto pela brevidade, marca de quem está entregue às urgências de viver, quanto pela proximidade com a poesia. Ele dá a impressão de ser mais literatura do que o romance, esse monstro flácido, pois permite um trabalho de linguagem muito mais eficiente, mais minucioso.
Tal contiguidade entre conto e poesia pode ser encontrada no terceiro livro de Marcelo Moutinho – A Palavra Ausente (Rocco, 2011), em que o escritor carioca cuida de cada frase de seus textos breves. O volume já abre com duas citações poéticas – uma delas vinda da letra de uma música –, antecipando o seu território criativo.
Centro deste campo, a história final trata da visita à cidade de Manaus da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andersen, narrada por uma moça simples que nunca havia lido um livro. Depois de momentos de intensidade com a autora, a jovem recebe como presente uma antologia de seus versos e faz a primeira leitura literária de sua vida. Este é um conto com grande significação na estrutura da coletânea por aproximar a poesia hermética de uma neoleitora, que encontra uma imagem da própria condição mesmo em textos com tantas palavras inalcançáveis. Há uma identificação plena entre seres culturalmente distantes e a poesia passa a ser uma música comum: “Mas depois eu li o livro de novo, e de novo, e vi que, apesar de a gente ser tão diferente e de eu não ter encostado nem ao menos meu dedo na água salgada, pareço muito com Dona Sophia” (p.118). Geralmente tida como inadequada para gostos mais populares, a alta literatura se mostra aqui sedutora também para esta faixa de (não) leitores.
Parece ser esta sobreposição de universos a marca dos contos de Moutinho. Seus temas são, no geral, bem cariocas (futebol, praia, samba, habitantes do morro, motoristas de ônibus…), enfim, a experiência urbana de quem olha o mundo a partir do Rio de Janeiro, sem recair nas tentações naturalistas de linguagem ou de enredo, numa opção pelo lirismo desencantado e pela ambiguidade sutil.
Por conta disso, as histórias surpreendem sem serem estapafúrdias. Dois homens entram no banheiro, e um começa a lavar o outro (“Água”). Cria-se um clima de encontro sexual, mas, aos poucos, sem que a cena seja totalmente revelada, descobrimos uma dolorosa rotina familiar. Esta indução do leitor a um erro de compreensão, levando-o a perceber isso na sequência, é um recurso refinado, do qual Moutinho se vale para desconstruir os chavões narrativos.
Não há um conto que não nos comova, e mesmo temas festivos como o futebol e o samba aparecem dentro de uma visada trágica da condição humana. Em “Jogo-contra”, as partidas de futebol disputadas em campinhos pelos meninos não funcionam como celebração do jogo, da vitória ou da amizade entre os jogadores, mas da união de um pai e de um filho, num momento em que este percebe que o outro começa a desaparecer. As relações familiares, principal pano de fundo dos contos, nunca tendem para o dramalhão dado o projeto do autor de não dizer tudo, de criar espaços de ausência no interior da linguagem. Já quanto ao universo do samba, e contrariando o título, o relato “Folia” quer antes mostrar a tristeza de um marido que ocupa os afazeres da esposa ausente. Ele participa da rotina de uma escola de samba como serviçal, um serviçal principalmente da memória pessoal.
Assim, seus personagens, sejam eles filho, namorado gay, sobrinho, marido, estão passando por experiências de confronto com a fragilidade da vida. Com esta percepção profunda, tratando de questões comuns do cotidiano urbano e com um domínio poético da estrutura narrativa, Marcelo Moutinho reafirma a qualidade do conto brasileiro.
Miguel Sanches Neto
Além dos sentidos da máquina de lembranças
No ensaio “The art of short story”, Ernest Hemingway afirma que o grande aprendizado sobre a técnica do conto consiste em exercitar a omissão. Algo que o próprio autor sabe sobre a história, mas não compartilha com o leitor. É preciso que o conto assemelhe-se ao iceberg; isto é, mostre apenas sua “ponta”, mas que ainda guarde submersa parte significativa da narrativa. Em “A palavra ausente”, de Marcelo Moutinho, nota-se, em grande parte dos contos, a mesma preocupação em silenciar o que poderia ser explicitado ao leitor. A palavra ausente, nesse sentido, refere-se ao que falta ser dito, mas também à incompletude dos personagens que transitam pelas dez narrativas desse terceiro volume de contos do autor. Há, realmente, uma última palavra a ser dita diante da perda, da separação do companheiro, ou da imagem do pai que se desfigura diante do olhar do filho? É nesse cenário de experiências comuns, onde a palavra impera sob o signo do fracasso, que os personagens de Moutinho parecem se perder entre estas perguntas.
Independentemente da idade, classe social, histórias pessoais, eles configuram a impossibilidade de comunicação plena com o outro, por isso é sempre necessário recorrer à “máquina de lembranças”, metáfora que percorre as narrativas do livro, na tentativa de aproximar-se da sombra do que foi um dia vivido. “É possível que em alguns anos fique apenas a imagem dele, a voz de quem se vai sempre desaparece mesmo.”
Sem o interlocutor, vive-se “nesse hiato entre o que foi e o que virá”, como afirma a narradora de “Cavalos-marinhos” diante da consumação da separação. Talvez, por isso, a recorrência, por vezes excessiva, ao monólogo interior, à visão introspectiva que privilegia o personagem à ação. A voz autoral de Moutinho, como já se afirmava em “Somos todos iguais nessa noite”, detém-se na investigação entre os personagens e seus fantasmas, esse momento de paralisia, quando os sujeitos cristalizam-se durante a espera angustiosa do telefonema que nunca vem, ou em uma viagem de ônibus que cruza a cidade sem parecer sair do lugar.
Emparedados no tempo presente, os personagens lançam mão do arquivo infindável de lembranças e as remontam constantemente, oscilando entre um futuro precário e o desejo de vivenciar o passado ainda por mais um instante.
Em “Folia”, um dos mais belos contos, conhecemos Silas, ex-mestre-sala e atual faxineiro de uma escola de samba. No passado, a mulher, Áurea, era seu par como porta-bandeira. Hoje, sozinho, envelhecido, sua rotina resume-se ao ir e vir entre a casa e a quadra. Ambos espaços remetem à imagem da mulher inesquecível. Dói-lhe “deixar a casa, Áurea, sozinha”, para ir “ver a bandeira em outras mãos — e achar bonito”.
Assim, se a casa guarda todas as marcas de Áurea, o tempo exige de Silas a confrontação com o presente. Não por acaso, é justamente quando o estandarte sobe ao palco nas mãos da jovem porta-bandeira, que ele refugia-se nos banheiros, empurrando “ralo abaixo aquele misto de mijo e desinfetante.” Não é permitido a Silas aventurar-se pelo presente sem, de alguma forma, abandonar ou trair o passado.
No entanto, é no conto que fecha o livro, intitulado “Dona Sophia”, que compreendemos que a proposta de “A palavra ausente” estende-se para além da exploração dos sentidos da “máquina de lembranças”. A protagonista deste conto, uma arrumadeira de um hotel em Manaus, é presenteada por uma hóspede com uma antologia poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. O espanto só não é maior por saber que a hóspede atendida era a própria escritora portuguesa. A partir da leitura dos poemas, a protagonista é levada a ressignificar o mundo à sua volta. “Rio é a mãe chamando a gente para o almoço, é o pai entrando na canoa para ir trabalhar (…). Antes de ler o livro de Dona Sophia eu nunca tinha pensado nisso, não. Antes, o rio para mim era só rio.” A literatura surge aqui em sua potência utópica. Incapaz de preencher a falta, plena em provocar novos sentidos para a paisagem ordinária de nossas vidas.
* Giovanna Dealtry é professora da PUC-Rio e autora de “No fio da navalha — Malandragem e literatura no samba” (Casa da Palavra/Faperj)
A tristeza poética na dor do viver
Mesmo sem mercado, o conto continua encantando as novas gerações de escritores, tanto pela brevidade, marca de quem está entregue às urgências de viver, quanto pela proximidade com a poesia. Ele dá a impressão de ser mais literatura do que o romance, esse monstro flácido, pois permite um trabalho de linguagem muito mais eficiente, mais minucioso.
Tal contiguidade entre conto e poesia pode ser encontrada no terceiro livro de Marcelo Moutinho – A Palavra Ausente (Rocco, 2011), em que o escritor carioca cuida de cada frase de seus textos breves. O volume já abre com duas citações poéticas – uma delas vinda da letra de uma música –, antecipando o seu território criativo.
Centro deste campo, a história final trata da visita à cidade de Manaus da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andersen, narrada por uma moça simples que nunca havia lido um livro. Depois de momentos de intensidade com a autora, a jovem recebe como presente uma antologia de seus versos e faz a primeira leitura literária de sua vida. Este é um conto com grande significação na estrutura da coletânea por aproximar a poesia hermética de uma neoleitora, que encontra uma imagem da própria condição mesmo em textos com tantas palavras inalcançáveis. Há uma identificação plena entre seres culturalmente distantes e a poesia passa a ser uma música comum: “Mas depois eu li o livro de novo, e de novo, e vi que, apesar de a gente ser tão diferente e de eu não ter encostado nem ao menos meu dedo na água salgada, pareço muito com Dona Sophia” (p.118). Geralmente tida como inadequada para gostos mais populares, a alta literatura se mostra aqui sedutora também para esta faixa de (não) leitores.
Parece ser esta sobreposição de universos a marca dos contos de Moutinho. Seus temas são, no geral, bem cariocas (futebol, praia, samba, habitantes do morro, motoristas de ônibus…), enfim, a experiência urbana de quem olha o mundo a partir do Rio de Janeiro, sem recair nas tentações naturalistas de linguagem ou de enredo, numa opção pelo lirismo desencantado e pela ambiguidade sutil.
Por conta disso, as histórias surpreendem sem serem estapafúrdias. Dois homens entram no banheiro, e um começa a lavar o outro (“Água”). Cria-se um clima de encontro sexual, mas, aos poucos, sem que a cena seja totalmente revelada, descobrimos uma dolorosa rotina familiar. Esta indução do leitor a um erro de compreensão, levando-o a perceber isso na sequência, é um recurso refinado, do qual Moutinho se vale para desconstruir os chavões narrativos.
Não há um conto que não nos comova, e mesmo temas festivos como o futebol e o samba aparecem dentro de uma visada trágica da condição humana. Em “Jogo-contra”, as partidas de futebol disputadas em campinhos pelos meninos não funcionam como celebração do jogo, da vitória ou da amizade entre os jogadores, mas da união de um pai e de um filho, num momento em que este percebe que o outro começa a desaparecer. As relações familiares, principal pano de fundo dos contos, nunca tendem para o dramalhão dado o projeto do autor de não dizer tudo, de criar espaços de ausência no interior da linguagem. Já quanto ao universo do samba, e contrariando o título, o relato “Folia” quer antes mostrar a tristeza de um marido que ocupa os afazeres da esposa ausente. Ele participa da rotina de uma escola de samba como serviçal, um serviçal principalmente da memória pessoal.
Assim, seus personagens, sejam eles filho, namorado gay, sobrinho, marido, estão passando por experiências de confronto com a fragilidade da vida. Com esta percepção profunda, tratando de questões comuns do cotidiano urbano e com um domínio poético da estrutura narrativa, Marcelo Moutinho reafirma a qualidade do conto brasileiro.
Miguel Sanches Neto
A palavra ausente
O título dessa antologia de contos do escritor carioca Marcelo Moutinho remete na verdade a situações marcadas por ausências diversas, que podem ser físicas, e portanto explícitas, ou psicológicas, mais sutis e insinuadas com intensidade, por gestos ou palavras interrompidos.
Moutinho opta pela narrativa em tom menor, sem rebuscamentos e tramas pretensiosas, para chegar às cenas que passam despercebidas, aos sentimentos que se dispersam, e flagrar o ponto crítico em que as relações pessoais, os desejos, as frustrações e mesmo os hábitos recorrentes estejam prestes a se diluir na rotina, ou no esquecimento.
Nos contos, há o afeto da madrinha doente com a afilhada; a eterna espera de Dalva diante do telefone; as histórias de vida que se cruzam numa viagem de ônibus; o desencontro entre pai e filho, mediado por jogos de futebol no campinho do bairro, só para citar alguns exemplos.
Avaliação: BOM
Reynaldo Damázio
‘A Palavra Ausente’ não revela excelência, mas confirma o talento de Moutinho
Num mercado saturado de lançamentos como é o nosso de hoje, é bem difícil discernir, já durante o voo, o valor de algum autor iniciante.
Em parte porque a literatura anda bem profissional e autores muito jovens já dominam técnicas e repertórios sofisticados, porque aprenderam na faculdade ou acompanharam alguma oficina.
O ponto de partida costuma ser bom, ou mesmo ótimo, mas isso não garante muita coisa durante o correr do processo.
Tendo isso ao fundo, vejamos o caso de Marcelo Moutinho, com seu “A Palavra Ausente”. Livro de contos bem escritos, pouca imperfeição formal dá a ver.
Mas também há: em um conto realista, chamado “Céu”, a cena crucial, um telefonema, acontece por volta das 15h; mas o personagem que vai ao telefone se deslocava “ao sol poente”.
Para este leitor, certo preciosismo vocabular e descritivo incomoda um tantinho, e pode ser que seja sintoma de um formalismo que não raro vem junto com a estética das oficinas.
No enunciado, os contos se ocupam de gente pobre, o que dá ao conjunto um ar de estudo, de coleção de cromos.
O tema não é recente e tem conseguido aparecer com grande qualidade em alguns autores, mormente em Rubens Figueiredo.
Pobreza da Alma
Em “A Palavra Ausente” temos, entre os pobres de dinheiro, um faxineiro de quadra de escola de samba, o rapaz do telefonema às 15h e uma camareira de hotel.
E temos também, entre os pobres de espírito, uma velha solteirona, um rapaz que redige textos de cartões de saudação e um menino que quer a todo custo agradar o pai ao jogar futebol.
Tudo certo nessas escolhas; mas o caso é que Moutinho pesa a mão, imprimindo no texto menos a humanidade dos personagens e mais um certo ar de compaixão, que está no ângulo da abordagem do livro.
Os melhores contos lidam com a morte. O primeiro, um relato delicado e preciso da relação de um filho com seu pai já com dificuldades de movimento, na hora de um banho.
O jovem, que é o narrador, deduz que o velho estava pensando que, tempos antes, ele é que dera banho no outro.
O outro conto narra a relação de uma menina com sua dinda; esta, numa hora, proporciona uma maravilhosa viagem para compensar a tristeza da pequena, mas na outra não pode poupar a afilhada do espetáculo de sua doença.
O livro vale, mas no conjunto não revela excelência.
Luís Augusto Fischer é professor de literatura na UFRGS e autor de “Filosofia Mínima” (Arquipélago Editorial).
Avaliação: BOM
Impuro silêncio
Depois de Memórias dos barcos, de 2001, e Somos todos iguais nesta noite, de 2006, o carioca Marcelo Moutinho acaba de lançar, pela Editora Rocco, o livro de contos A palavra ausente. Já no título, o autor deixa pistas sobre a essência de sua busca. O seu estilo remete a perdas, que descortina um sentido de ausência e espanto que paira, como nuvem carregada, como sombra, às vezes indesejada, sobre as comoventes pequenas histórias.
Os contos de A palavra ausente são curtíssimos. Marcelo aponta para alvos improváveis e, sem querer saber de certos e errados, acerta na mosca. Ele não deixa brechas nem para um respiro. Depois de um conto, outro conto. Quando tudo fica grande demais, quando tudo pode ficar, de uma hora para outra, carregado de cargas extremas: uma pessoa que circula, de ônibus, pela cidade; o banheiro, um banho que causa comoção ao sugerir uma verdade; o encontro entre duas simples mulheres, a poeta (mar) e a faxineira (rio), duas almas que se cruzam, que se reconhecem diante do mistério, diante da beleza da vida.
Marcelo oferece uma espécie de oportunidade para o homem comum, para os seus personagens, para as coisas do cotidiano. Moutinho, através de pequenas pessoas, através das aflições, das angústias, das mágoas, quer, talvez, dialogar, quer chegar, quer alcançar o coletivo, quer atingir (e talvez modificar, para melhor) o que causa angústia: a falta de sentido, o sentimento de desamparo, e o amor, que tudo permeia e faz tudo crescer. Entretanto, não há fuga possível. Chega um tempo em que cai a nossa máscara, chega um tempo em que surge a descoberta irremissível: a vida nos recebe a tiros.
O lugar de Marcelo Moutinho são vários lugares. São os sítios e são, principalmente, as dores de seus personagens. Há uma enorme urgência em cada situação apresentada, e há um sentido de entrega e atenção por parte do autor que empresta aos textos uma verdade que chega dos breus dos abismos. Verdades que pulam das profundezas, que avançam como cães, que surgem com expectativa da morte, como nos contos “Jogo-contra” e “Dindinha”. Contudo, existe um fio, luminoso, de vida, que une todos os textos de A palavra ausente.
A sensibilidade de Moutinho cria uma espécie de nevoeiro, de ponte, que nos leva ao cerne de outras realidades, que por sua vez descortina, sempre talvez, a verdadeira face das coisas. Mesmo quando tudo é provisório, mesmo quando tudo é também sinônimo de um nada permanente. O grau máximo de coisa nenhuma, para o além do zero, às vezes rende poemas e bons textos.
As tais palavras ausentes de Marcelo remetem a descanso, é mais que silêncio, é puro pensamento, é pura promessa e mera possibilidade. Os contos do livro apontam para os contrários, para os avessos. Eles revelam perdições, sujeiras, abismos. Sem o nada, nada acontece, parece óbvio. A alma é vento de nada. O primeiro ímpeto para dizer deve surgir quando (ainda) não existem palavras. Tudo, na íntegra, continua ali, naquele estado de ânsia e espera, quando (ainda) inexistem histórias e signos. Existe uma força que impulsiona para o verbo. Pois o nada, para Marcelo, é também sinônimo de plenitude.
Desamparo
É exasperante, é constrangedor descobrir nas dobras, nas situações, antes especiais, um gosto súbito de desamparo, súbitas prescindibilidades. Berço e estação (destino), o vazio, a ausência, o vácuo é o verdadeiro ápice. É fonte para formulações, é combustível para as existências necessárias. Os contos de A palavra ausente revelam, acima de tudo, a força que existe em cada pessoa. Não cabe nos textos o meio-termo. Cada palavra modula um grito, prepara um soco, Marcelo dispara tiros certeiros, numa espécie de resposta a algo surdo e quase mudo.
De quebra, para preencher certos vazios, Marcelo inventa “fichas para a máquina da lembrança”. Ainda que, no conto “Interlúdio”, esquecer seja sinônimo de pura necessidade. No conto “Jogo-contra”, um tapa: “Ainda não sabia, então, que a tragédia se disfarça, ardilosa, é no interior do otimismo”. No conto “Folia”, a urgência de ar, abafamento, aflição, angústia. Os personagens de Moutinho, contudo, “aprendem a respirar no vácuo da ausência que ficou”. Marcelo aponta, delata a inutilidade, a insuficiência dos “apreços compulsórios”. No conto “Um cartão para Joana”, o Natal não é um tempo de renascimento. A beleza pode ser brutal.
Moutinho persegue, não sem um certo fascínio, “aquele acúmulo de nadas que no fim resulta em coisa alguma”, “a mesma sucessão de nadas”, “uma nova e inútil paisagem”. Mas, atente-se para isso, não há rancor nos contos de A palavra ausente. Marcelo tem, apenas, compaixão. Pois todos os gestos que denunciam partidas são sempre amplos por demais. São tristíssimos os contos de A palavra ausente. Marcelo repassa o que viu e ouviu, um tipo de música aguda, dissonante, e busca a profundidade do silêncio para captar “a cadência perfeitamente harmônica dos sinais”.
Marcelo embaralha, desmonta, com os seus contos, uma espécie de quebra-cabeça, quase adivinhando, naquele cotidiano de asperezas, a dureza e o sofrimento que surgem dos acontecimentos banais. O autor de A palavra ausente articula e (re)monta, a partir daí, uma engrenagem, uma engenhoca feita de forças extremas, inigualáveis: as derrotas, o não, que se sobrepõe ao Sol e ao sim, a doença, o medo. A alma, as sobras, e as sombras, da Lua e das ruas, tudo isso que os olhos captam. Tudo é ardiloso, mas no que essa palavra carrega de afago. Às ocultas, o coração dos homens vive cheio de astúcia, porque assim tem que ser, porque assim exige, na surdina, o mistério da vida em movimento.
André Di Bernardi Batista Mendes
Tema: Dez contos que repisam as ideias sugeridas no título. O ato de dar banho no pai doente, um ex-mestre sala remoendo a saudade da porta-bandeira, a morte a povoar a vida de crianças e a separação no amor são algumas situações destes contos curtos.
Por que ler: Pelo retrato de experiências de perda e de ausência sem apelo ao sentimentalismo. E pela escrita de aparência simples que guarda novos achados e frases de efeito a cada conto.
Preste atenção: Em “Dons Sophia”, pensado para encerrar o livro: na relação entre uma camareira e uma renomada escritora, vê-se a descoberta das palavras, antes latentes que ausentes.
Poética da ausência
A recém-lançada antologia de contos de Marcelo Moutinho, A palavra ausente, apresenta flagrantes sutis do cotidiano, girando ao redor da temática das perdas existenciais, em que, como afirma o próprio autor, os personagens carregam uma “tristeza benigna, poética”, “a beleza das coisas levemente tristes, num tempo de ditadura da alegria”.
De fato, o constrangimento que acomete o filho adulto que dá banho no pai doente; a frustração do menino que sofre por desapontar o pai numa partida de futebol de campo; o vazio que invade o autor de mensagens padronizadas de cartões artificiais de Natal que, em verdade, nada dizem; ou o susto da menina que, subitamente, perde a inocência ao se deparar com a grave doença de sua querida madrinha revelam, no todo, uma espécie de melancolia, em que o desespero jamais se explicita ou transborda.
É exatamente dessa gestualidade contida e velada que se nutre a força do narrar de Moutinho. Trata-se de uma escrita que investe nas amplas possibilidades do não-dito, da entrelinha, da latência que pulsa como resíduo subjacente a todas as coisas, das lacunas da existência, feita de silêncios e vazios.
A palavra que não quer nomear, que não quer dar conta de tudo, é eleita como a que o autor persegue, obstinadamente, na precisa construção de uma verdadeira poética da ausência, em que a concisão e a economia de recursos procedimentais da narrativa dão o tom.
Transfigura-se poeticamente a dor e as pequenas mortes do cotidiano, das situações corriqueiras em que as perdas se acumulam, mas não se corre o risco de extrapolar as tendências exageradas do melodrama fácil, tampouco, no extremo oposto, o da total aridez do sem sentido niilista.
A construção da ausência empreitada pelo autor parece encontrar seu ponto de apoio na dimensão dialética do que se materializa pela incompletude, plenamente traduzível pela forte presença do que falta, pelas marcas, símbolos, ícones do que se perde, pelo subentendido, pela sombra do que não se concretiza, nem vem a ser.
Contenção
No belíssimo conto Água, que abre o livro, a precisão, a contenção de elementos sobre os personagens informa pouquíssimo, o estritamente necessário para que se perceba que o que se apresenta é a situação de um filho dando banho no pai doente. Eles são anônimos, não há nenhum detalhe a mais, o circunstante é dispensado. É pelo viés do foco detalhado na cena do banho que se delineiam os traços de um narrar que tangencia o impressionismo, carregado das lacunas e ausências, mestras da sugestão:
Ele entrou no banheiro completamente nu, em um silêncio áspero. Apenas a toalha vermelha pesava sobre os ombros, dando algum colorido às costas envergadas. Conduzi-o até o boxe, procurando firmar a lenta caminhada em passos estáveis.
Ampará-lo.
Não havia espaço para nós dois. Fiquei do lado de fora; ele, no de dentro. Foi preciso deixar a cortina aberta, mas fiz questão de fechar a porta do banheiro, embora não houvesse mais ninguém no apartamento.
Os azulejos do banheiro suavam, ele mal me olhava. Mantinha a cabeça inclinada para baixo, a nuca parecendo maior, e eu tentando reverberar seu constrangimento em palavras singelas […]
Ele plantou as mãos — imóveis — sobre a parede, como se estivesse sob séria ameaça, como se eu lhe apontasse um revólver, uma faca, algo assim. A cortina, inquieta, tocou meu rosto. Insistia em fechar, ainda que eu a arrastasse cada vez que se soltava e corria no trilho.
Insistia em fechar.
Guiada por mim, a toalha passeou: cabeça, pescoço, tronco, braços, pernas, pé. A toalha molhada explorava o corpo, sugava o suor e a sujeira, acarinhava.
E ele permanecia imóvel, embora as mãos não pudessem deter o tremelique. Não era por causa do frio, e nós dois sabíamos. Eu esfregando a toalha, ele com os olhos cerrados num breu misterioso. Talvez, no fundo de si, lembrasse: “Um dia, há muito tempo, dei banho neste menino” […]
Talvez pudéssemos resumir a cena toda na delicada tentativa do filho em “amparar” o pai. Um único verbo e a força de tudo que nele se concentra, que aí está, sem que se precise acrescentar mais nada. Além disso, há o que “os dois sabiam” e que não precisa ser nomeado. Observamos assim, o efeito obtido por meio da densidade da sugestão do que se confirma pelo não revelado, por uma omissão de palavras que, provavelmente, se usadas nesse contexto, diluir-se-iam ou escorreriam em vão, como a água que escorre durante aquele banho, “do qual não há como se sair limpo…”.
Conto de formação
Ainda envolvendo a relação pai-filho, em Jogo-contra, subdivido em Primeiro jogo,Revanche e Melhor de três, percebemos a travessia de crescimento do narrador-menino que a princípio quer brindar o pai com a vitória de seu time no campinho de futebol de um bairro de subúrbio. Nessas três fases muito sucintas de um simples jogo, vislumbra-se um quê do processo de formação do protagonista, que parte da idealização: “só pensava em chegar em casa e contar: — Pai, fiz o gol. O gol da vitória, pai.”; passa pela derrota: “ainda não sabia, então, que a tragédia se disfarça, ardilosa, é no interior do otimismo” e chega à fase da maturação, que inevitavelmente, explicita-se pela dolorosa constatação de alguma perda:
— Você está maior, filho. Quase do meu tamanho — ele interrompeu a caminhada.
Eu não achava. Minha altura parecia a mesma. Pude sentir, porém, que algo de fato mudara em mim, embora não soubesse definir exatamente o quê. Algo que mais tarde, já sob a sombra de um corpo de homem, ganhou absoluta limpidez: na imagem baça daquele vidro, o pai começara irremediavelmente a desaparecer.
Na esteira da ausência
As perdas que se referem ao fim de relacionamentos amorosos — seja pela morte ou pela separação —, no momento em que agonizam, apelam a símbolos, ícones, objetos que evocam a presença do ente querido como tênues fios que insistem em sustentar o imenso peso da memória do outro que, afinal, esvanece. É o que notamos, por exemplo, neste trecho dePara ver as meninas (título inspirado em canção de Paulinho da Viola):
Pouco a pouco, a imagem de Luiza se desintegrou, sem que eu sentisse. Não foi uma navalhada. Não. No decorrer dos dias, a face dela desfez-se nos pontos de uma pintura impressionista e, nas raras ocasiões em que nos esbarrávamos por aí — amigos em comum, aniversários, casamentos — dois beijos na bochecha e um boa-noite resolviam tudo.
Analogamente, no conto Cavalos-marinhos (que remete à canção Vento no litoral de Renato Russo), o vazio da separação do casal de amantes se instaura ao redor de caixas que se amontoam na sala do apartamento, indicando a mudança e a saída de um deles, após a separação. É a marca da ausência dos objetos, roupas, móveis que antes preenchiam espaços — e que no momento da narrativa passam a ser encaixotados e embalados — que revelam o não-dito. É também o presente mais significativo que um deles dera ao outro (um cavalo-marinho) que, sendo deslocado do lugar onde sempre estivera guardado, preenchendo um determinado espaço, para ser jogado ao mar, acabará sinalizando mais uma das potentes marcas da ausência, que vai sendo construída ao longo da narrativa:
Agora é descer todas aquelas caixas, carregá-las comigo. “Minha máquina da lembrança” —ao recordar a frase, esboço o sorriso possível. Levo as mãos até o mar e devagar, bem devagar, solto o cavalo-marinho, que começa a deslizar sobre as ondas salgadas, dançando no ritmo intenso da maré, distanciando-se da margem, ficando cada vez menor.
Simplesmente indo, indo, indo.
Em todas as situações, e conforme afirma um de seus personagens, neste A palavra ausente, Moutinho escreve como quem tenta “aprender a respirar no vácuo da ausência que ficou”.
Ode à poesia
O último conto é uma homenagem à poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner, e aqui é inevitável não lembrar do filme O carteiro e o poeta (Il postino – 1994), dirigido por Michael Radford, baseado no livro Ardiente paciencia, de Antonio Skármeta, sobre a amizade entre o poeta chileno Pablo Neruda e um humilde carteiro que deseja aprender a fazer poesia. Também no conto Dona Sophia, dá-se a aproximação da famosa poeta com uma simples camareira do hotel, no Amazonas, em que Sophia se hospeda, e que narra a história.
Nesse conto — diferentemente dos demais que compõem a antologia — temos uma verdadeira ode à poesia enquanto revelação epifânica do autêntico, em que as diferenças sociais são minimizadas, território livre onde todos têm voz, assim como vem a provar a moça que recebe, de presente, um livro da poeta e se põe, também, livremente a poetar:
E rio é diferente, é água doce. Rio eu já vi. No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde menina. Negro, Solimões, Amazonas. Rio para mim é travessia de barco. Lugar de pescar piranha, pirarucu. Ou de tomar banho. Rio é a mãe chamando a gente para o almoço, é o pai entrando na canoa para ir trabalhar, é brincadeira de briga de galo, é gosto-azedo de cupuaçu.
Antes de ler o livro da Dona Sophia eu nunca tinha pensado nisso, não. Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes mais limpo, às vezes mais sujo, mas só ele mesmo, o rio.
E confesso que da primeira vez que li o livro não consegui entender muito bem as coisas que ela escreveu sobre o mar. Acho que para a gente sentir tem que ter encostado na coisa, cheirado, pelo menos visto de perto.
Assim, seja pela minuciosa construção da tristeza benigna, tão necessária em tempos de efusiva e forjada alegria, seja pela precisão com que constrói e materializa a ausência, que passa a ser palpável em seus textos, Marcelo Moutinho, sem ceder a certas tendências contemporâneas, notadamente marcadas por excessos e reflexões muitas vezes tautológicas sobre a literatura e a arte, impõe-se pela autenticidade do poético que sabe, acima de tudo, ser denso, delicado e contido.
Maria Célia Martirani
* Escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé. Vive em Curitiba (PR).
A palavra ausente, de Marcelo Moutinho
Com exceção dos jogos do Brasil nas Copas do Mundo, tenho pouco ou nenhum interesse em futebol. O que sempre fez a alegria de meus colegas nas aulas de educação física, quando o professor decidia organizar uma pelada, para mim era um suplício. E não queiram por favor assistir a uma demonstração do que consigo fazer com uma pobre bola. Não levo jeito para a coisa, e nem para qualquer outro esporte. Isso não me impediu de eleger um conto que tem o futebol como tema o meu preferido da coletânea A palavra ausente, do escritor e jornalista carioca Marcelo Moutinho, há pouco lançada. Essa é uma dentre tantas surpresas que a boa literatura proporciona: ver de um modo diferente aquilo que sempre nos pareceu banal e que portanto jamais nos despertaria um particular interesse.
O conto em questão chama-se Jogo-contra e é uma das dez histórias breves que compõem o livro. Nele, o guri meio balofo e sem velocidade em campo comete o azarão de marcar o gol da vitória de seu time em uma disputa de bairro. Mas aquele sucesso fortuito vai gerar expectativas que não têm como se concretizar, uma em especial a de o garoto conseguir que o pai se orgulhe de seu talento. Nada mais banal, nada que não se tenha visto inúmeras vezes em filmes da Sessão da Tarde. O leitor já sabe o que vai encontrar quando é anunciada uma revanche. Depois dela, uma terceira e última disputa chamada “melhor de três”. Mas, ao contrário do que acontece com o personagem, o talento do autor vai conduzir um desfecho que se afasta do corriqueiro e leva quase a uma epifania, que não tem nada a ver com o futebol e seus sortilégios. Gol de placa, para seguir o contexto.
Outra belíssima história é a que abre o livro. Água se desenvolve em duas páginas e meia de uma única cena, comum mas sempre tocante, do filho amparando a decrepitude do pai no final da vida. Talvez Isaac B. Singer não aprovasse a estratégia de condensar tanto uma história a ponto de torná-la uma “fatia da realidade”, como ele dizia. Mas os tempos são outros, a realidade virou algo tão rarefeito que faz sentido hoje captá-la num instante que subverte penosamente a lógica da natureza.
Do excelente Dindinha, escolhi um pequeno trecho que conta um passeio a Petrópolis, presente da dinda à sua afilhada, e onde o encantamento infantil conduz a narrativa:
Na parada da Casa do Alemão, as duas comeram bricohes e bolinhos de carne, e compraram biscoitos amanteigados para na volta amansar a mãe. Já em Petrópolis, depois de visitar o museu e brincar de limpar o piso arrastando os sapatos, foram à casa de Santos Dumont, onde Júlia se divertiu com a escada projetada para se começar a subida com o pé direito — canhota, ela não entendia por nada essa mania de começar tudo com o pé direito. Até o Santos Dumont, meu Deus.
Foram ao Quitandinha, à Casa da Princesa Isabel, ao Palácio de Cristal, e passearam pelas ruas antigas da cidade, as mãos entrelaçadas dizendo mais do que as palavras, Júlia maior por dentro do que por fora.
A palavra ausente, de Marcelo Moutinho, Editora Rocco, é minha dica de hoje. Até segunda-feira e boas leituras a todos.
Luiz Paulo Faccioli
De palavras e não palavras faz-se o conto
De pequenas ausências se faz a boa literatura. A ausência de palavras, por exemplo. A arte literária se elabora a partir não do que está na superfície do signo, mas sim dos espaços em branco. “Que é poesia?/Uma ilha cercada de palavras por todos os lados”, escreveu o grande e ausente poeta Cassiano Ricardo.
O mais recente livro de contos do carioca Marcelo Moutinho leva no título essa premissa. A palavra ausente (Rocco, 120 p.) reúne 10 histórias curtas que revelam não revelando as faltas e as perdas que acontecem em nossas vidas: da dignidade, do respeito, da tolerância, do amor, do jogo, do emprego, da esperança, do que dizer.
Moutinho ausentou as palavras para escrever prosas poéticas. Ele sugere e não diz. Ou simplesmente silencia. Não sabemos o destino do pai doente do primeiro conto, “Água”, tampouco para onde vai o casal homossexual de “Cavalos-marinhos”, conto inspirado em uma música da Legião Urbana. Também não ficamos sabendo quem liga para a casa de Dalva quase todas a noites, no conto “Interlúdio”, procurando por uma tal de Márcia. Da mesma forma nos é negado saber se o menino vai um dia ganhar um jogo de futebol a que seu pai esteja assistindo, o que não acontece no relato “Jogo-contra”. Não ficamos sabendo se a Dindinha do conto homônimo terá um dia bom depois de um ruim. Não sabemos, mas podemos imaginar, criar, completar a obra do artista.
Não há nada mais ausente do que aquele que limpa os banheiros numa quadra de uma escola de samba (“Folia”), principalmente depois de ter sido, no passado presença marcante como mestre-sala. Nada mais ausente do que o autor de frases em cartões de Natal ou Páscoa (“Um cartão para Joana”). No conto “Dona Sophia”, invisível é a empregada de um hotel que recebe uma grande poeta. Por sinal, somente essa escritora, com a sensibilidade de quem vive as ausências na sua escrita, notou a presença daquela que a servia. Marcelo Moutinho torna visíveis essas personagens, lhes dá um lugar de “estrelas riscando o céu, como se abrissem fendas para a noite passar” (“Céu”).
“Sempre detestei chavões”, diz o narrador-personagem de “Para ver as meninas”, enquanto ouve a música de Paulinho da Viola dentro de um ônibus. O lugar-comum, no entanto, é o que vem à mente do resenhista. Faltam palavras para fechar um texto que fala sobre outros textos que por sua vez tratam da falta. Resta apenas dizer que os contos de Marcelo Moutinho preenchem uma ausência de outros textos de qualidade na nossa literatura. Resta esperar também que livros como esse não faltem mais nas nossas estantes.
Cassionei Niches Petry é mestrando em Letras e bolsista do CNPq. Quinzenalmente trabalha com a ausência das palavras no Mix e mantém o blog cassionei.blogspot.com, de onde se ausenta frequentemente.
Dois grandes contistas brasileiros
O conto parece não ser uma forma narrativa devidamente valorizada no Brasil. Poucos são os contistas que conseguem publicar por editoras importantes e ter seus trabalhos avaliados, o que é lastimável, já que o país tem escritores especialistas na forma curta, como Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e Marcelino Freire, só pra citar três clássicos exemplos, já me desculpando por todos os outros que não mencionei.
Na contramão dessa tendência, vale ressaltar dois autores contemporâneos. O primeiro é Marcelo Moutinho, que acaba de lançar A palavra ausente, pela editora Rocco. Em suas histórias, Moutinho explora cenários corriqueiros para se aprofundar na angústia dos personagens. Todos os contos têm a perda, a espera ou o silêncio como fio condutor, o que justifica o título da obra. Este é o terceiro livro de contos de Marcelo, que também é autor de Memória dos barcos (editora 7 Letras, 2001) e Somos todos iguais esta noite (editora Rocco, 2006). Além disso, Moutinho foi organizador de diversas coletâneas de escritores nacionais e internacionais, o que comprova sua predileção pela narrativa curta, já que é um de seus principais divulgadores.
O segundo contista cuja obra quero ressaltar é João Anzanello Carrascoza, que, no ano passado publicou Espinhos e alfinetes, pela editora Record, livro que foi indicado a diversos prêmios em 2011. Os onze contos reunidos neste volume confirmam o gosto pela carpintaria estilística presente na literatura de Carrascoza. Entretanto, ao contrário de outros escritores contemporâneos, Carrascoza não tem na construção linguística o único objetivo de sua narrativa. Embora a preocupação com linguagem ocupe grande parte da obra, seu foco principal ainda é na precariedade da condição humana.
Este é o quinto livro de contos do autor, que também escreve para o público infanto-juvenil. Aliás, tal atividade parece ter forte influência nas histórias de Espinhos e alfinetes, pois o olhar sobre a infância está presente em quase todos os textos. Carrascoza carrega na dramaticidade das relações entre pais e filhos de maneira poética, através de um encantamento peculiar, que é, ao mesmo tempo, sensível e preciso: “O pai voltou à sala, abotoado em seus silêncios. O menino sabia que era hora de não perturbá-lo, de só admirá-lo a ponto de se esquecer dele, num falso esquecimento”.
Os contos de Carrascoza estão repletos de lirismo, mas não de sentimentalismo. Com muita habilidade, o autor consegue se equilibrar entre o ambiente onírico da fantasia e a dura percepção da realidade. Não seria exagero apontá-lo como um dos melhores contistas do país.
Felipe Pena, jornalista, escritor e professor da UFF, é doutor em literatura pela PUC, com pós-doutorado em semiologia pela Sorbonne, e autor de onze livros, entre eles o romance ‘O verso do cartão de embarque’ (editora Record, 2011)
A narradora-camareira do conto “Dona Sophia”, de Marcelo Moutinho, escreve a partir (depois) do contato transformador que ela teve com Sophia de Mello Breyner Andresen. Designada para cuidar da estadia da escritora no hotel em que trabalhava em Manaus, a narradora (sujeito “comum”, anônimo) primeiro conhece a mulher (o humano) e só depois, quando a hóspede vai embora, é que ela descobre a poeta. E isso tem muita importância.
“Uma senhora de cabelos cacheados e grisalhos, olhos claros, bem magra. Era dona Sophia. (…) Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala, mas com um som diferente, sei lá. Tive que me segurar para não rir”, descreve a narradora.
Publicado na antologia Escritores escritos, é guardado no livro A palavra ausente que o conto “Dona Sophia” produz mais sentido: abre-se a novas possibilidades de entradas. Aqui, fechando um livro que começa com um conto intitulado “Água”, “Dona Sophia” traduz o lugar onde a zona de contato entre leitor (ouvinte) e escritor (cantor) se liquefaz, precede preconceitos e instrumentos teóricos.
Sophia de Mello Breyner Andresen revela-se muito próxima da camareira-narradora. A única diferença é que enquanto uma – Sophia (poeta: “como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer”) – escreve motivada pelo canto da musa (a poesia), a outra – camareira (anônima – mulher “comum”) – escreve motivada pela sereia (a poeta/escritora). “Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala”. Ambas irmãs na terra: ambas signos de elemento água em uníssono com a vida.
“Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho”, observa a narradora. Sophia intervem na vida da camareira pela chave do lugar desta no mundo: o trabalho. “Era uma escritora famosa (…) ia receber um prêmio no Teatro Amazonas (…) o teatro é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é”. A narradora não conhecia a hóspede, mas se o patrão diz que ela é importante é porque é.
O que poderia ser lido aqui como um discurso da resignação do subalterno, eu leio como uma potencialidade em movimento: “Eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele [o patrão] repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira”, anota para mais adiante dizer: “Apesar de a gente ser tão diferente (…) pareço muito com a dona Sophia (…) no ritmo secreto que só nós duas conhecemos”.
Uma sereia de água doce (de rio): a camareira – que escreve depois de tocar (e ser tocada por) o mar. A outra sereia de água salgada (de mar). Cada uma em mundo e tempo frequenciais únicos, singulares. Como Guimarães Rosa, anotou, e sabemos: “O mundo do rio não é o mundo da ponte”. É a travessia – de ambos – o que se insinua interessante.
Salvo as proporções dos meios, observo na camareira do conto de Marcelo Moutinho um gesto semelhante ao engendrado pelo sujeito da canção “Onde eu nasci passa um rio”, de Caetano Veloso. Ambos sabem que “dentro do mar tem rio, dentro da dor a canção, dentro do guerreiro flor”, como canta o sujeito de outra canção.
Porém, mesmo desaguados no mar, preservam a força criadora e genésica que o rio (doce, menor, mais íntimo que a imensidão salgada marinha) serpenteia na estrutura – humana e estética – de cada um. “O que eu herdei de minha gente e nunca posso perder”, parecem dizer nas entrelinhas.
Regravada pela médium das sereias – Maria Bethânia – no disco Pirata (2006), “Onde eu nasci passa um rio” registra o sujeito que canta a partir do canto: “Nasceu junto com o rio / o canto que eu canto mais”, diz. Cantado, ele canta – experimenta a saída-de-si.
Sempre passando (“passa no igual sem fim”), atravessando, nunca o mesmo, o rio é o motor da luz na vida do sujeito da canção e da narradora do conto. O rio intervem na vida do sujeito da canção: “O rio da minha terra / Deságua em meu coração”. Assim como intervem na vida da camareira: “No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina”.
Há uma promoção concentrada de conhecimento: “Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada”. Enriquecimento: “Igual, sem fim, minha terra / Passava dentro de mim”. E o saldo cognitivo é digno de notas. “Hoje eu sei que o mundo é grande”, diz o sujeito da canção. “Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes limpo, às vezes sujo, mas só ele mesmo, o rio”.
O rio – berço e memória – do sujeito da canção deságua, “como se não desaguasse”, no mar. “Já tanta coisa aprendi / Mas o que é mais meu cantar / É isso que eu canto aqui”, diz. Dito de outro modo, sujeito e narradora mudam para permanecer os mesmos: eterno retorno (em diferença) íntimo.
“O tempo voa mais do que a canção”, diria outro sujeito cancional. No conto e na canção arte e vida se tocam de forma complexa e delicada, apontando o que elas são e em que se diferem. “Mesma língua, mas com um som diferente”. “O rio só chega no mar / depois de andar pelo chão”.
“Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água”, desaguasse no mar, anota a camareira depois de ler o livro deixado por Sophia. Seja como for, enquanto duram, conto (canto) e canção singularizam narradora e sujeito no mundo. Ambos querendo permanecer presença no leitor/ouvinte, mesmo depois de fechado o livro e de finda a canção.
Leonardo Davino
Não costumam faltar palavras ao escritor Marcelo Moutinho, mas elas podem lhe calar fundo. O sentimento de perda permeia os dez contos de “A palavra ausente” (Rocco), livro que o autor de “Memória dos barcos” (7Letras, 2001) e “Somos todos iguais nesta noite” (Rocco, 2006) lança hoje, às 19h, na Livraria Travessa de Ipanema (Rua Visconde de Pirajá, 572). Faltou dizer isso:
Que palavra é esta que se ausenta?
Na verdade, o título tem uma dubiedade proposital. Em dupla acepção semântica, pode aludir à carência da palavra, mas também expressar uma simples menção ao vocábulo “ausente”, à falta de algo, ou de alguém. É essa a questão que paira sobre as dez histórias do livro.
Que tipo de necessidade lhe levou a escrever sobre ela?
Nos últimos anos, muitas pessoas próximas se foram, das mais variadas formas. Os sentimentos decorrentes dessas perdas acabaram desaguando em histórias. Esses contos podem tratar mesmo da perda maior, a morte, mas também de outros tipos de falta: a perda amorosa, a espera por um filho que não vem, o silêncio de um telefone que não toca.
Há uma falta ontológica em cada um dos narradores dos 10 contos que compõem o livro A palavra ausente, de Marcelo Moutinho (Rocco, 2011). Essa falta é o motor da escrita, a força da travessia, o estado de liquefação de um sentido único para cada acontecimento. A palavra ausente produz presenças no lugar exato em que cada narrador se revela ao leitor. De “Água” até “Dona Sophia” há um dispêndio radicalmente humano, porque inútil, cuja finalidade é preencher tempos e espaços da memória afetiva e concreta, engendrar efeitos especiais que permitam à apreciação da existência.
Cada conto guarda um método particular de convivência com a inexistência da angústia de sentido, mas é no conto que fecha o livro – “Dona Sophia” – que quero centrar minhas observações. A narradora do conto escreve a partir (depois) do contato transformador que ela teve com Sophia de Mello Breyner Andresen. Designada para cuidar da estadia da escritora no hotel em que trabalhava em Manaus, a narradora (sujeito “comum”, anônimo) primeiro conhece a mulher e só depois, quando a hóspede vai embora, é que ela descobre a poeta. E se reconhece.
“Uma senhora de cabelos cacheados e grisalhos, olhos claros, bem magra. Era Dona Sophia. (…) Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala, mas com um som diferente, sei lá. Tive que me segurar para não rir”, descreve a narradora. E já aqui podemos perceber que a zona de contato entre narradora e poeta se materializa para além de preconceitos e instrumentos teóricos. Sophia de Mello Breyner Andresen revela-se muito próxima da camareira-narradora. A única diferença é que enquanto uma – Sophia (poeta: “como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer”) – escreve motivada pelo canto da musa (a poesia), a outra – camareira (anônima – mulher “comum”) – escreve motivada pela sereia (a poeta/escritora): “Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala”. Ambas irmãs na terra: ambas signos de elemento água, com o livro de Marcelo Moutinho, em uníssono com a vida, atentas àquilo que mina e escorrer sem que tenhamos – nós, humanos – a competência para a apreensão.
“Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho”, destaca a narradora. Sophia intervém na vida da camareira pela chave do lugar desta no mundo: o trabalho. “Era uma escritora famosa (…) ia receber um prêmio no Teatro Amazonas (…) o teatro é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é”. Do mesmo modo, a narradora-camareira não conhecia a hóspede, mas se o patrão diz que ela é importante é porque é. O que poderia ser lido aqui como um discurso da resignação do subalterno, eu leio como uma potencialidade em movimento: “Eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele [o patrão] repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira”, anota a narradora para mais adiante dizer: “Apesar de a gente ser tão diferente (…) pareço muito com a Dona Sophia (…) no ritmo secreto que só nós duas conhecemos”. A identificação desse ritmo (secreto) é a resposta perfeita da camareira à poeta.
Uma é sereia de água doce (de rio): a camareira – que escreve (canta sua história) depois de tocar (e ser tocada por) o mar. A outra é sereia de água salgada (de mar): Sophia. Cada uma em mundo e tempo frequênciais únicos, singulares. A epifania reside na tradução que a camareira produz e no nivelamento, pelo Humano, das duas personagens.
Salvo as especificidades das linguagens, observo na camareira do conto de Marcelo Moutinho um gesto semelhante ao vivido pelo sujeito da canção “Onde eu nasci passa um rio”, de Caetano Veloso. Ambos sabem que “dentro do mar tem rio, dentro da dor a canção, dentro do guerreiro flor”, como canta o sujeito de outra canção. Porém, mesmo desaguados no mar, preservam a força criadora e genésica que o rio (doce, menor, mais íntimo que a imensidão salgada marinha) serpenteia na estrutura – humana e estética – de cada um.
Sempre passando (“passa no igual sem fim”), atravessando, nunca o mesmo, o rio é força na vida do sujeito da canção e da narradora do conto. O rio interfere na vida do sujeito da canção: “O rio da minha terra / Deságua em meu coração”. Assim como intervém na vida da camareira: “No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina”. Há uma promoção concentrada de conhecimento: “Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada”. De enriquecimento: “Igual, sem fim, minha terra / Passava dentro de mim”. E o saldo cognitivo é digno de notas. “Hoje eu sei que o mundo é grande”, diz o sujeito da canção. “Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes limpo, às vezes sujo, mas só ele mesmo, o rio”, anota a camareira-narradora.
“Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água”, desaguasse no mar, anota a camareira depois de ler o livro deixado como presente por Sophia. Seja como for, enquanto duram, conto (canto) e canção singularizam a narradora e o sujeito no mundo estético. Ambos querendo permanecer presença no leitor/ouvinte, mesmo depois de fechado o livro e de finda a canção. E é aqui que o trabalho de Marcelo Moutinho ganha outras novas dimensões: na artesania de construir pela linguagem verbal uma voz narrativa feita de delicadezas, desprovida de vontade de sentido, que apenas deseja estar no mundo.
“Antes de existir a voz existia o silêncio”, canta Arnaldo Antunes. A impronunciável e/ou silenciada palavra é prenhe de conteúdos: do velho pai diante do filho que lhe banha (“Água”), da separação de dois bons amantes (“Cavalos-marinhos”), dos dedos apertando a xícara de chá (“Interlúdio”), do ex-mestre-sala que agora faxina os banheiros da quadra da Escola querida (“Folia”), do menino feito homem que se assemelhando ao pai perde (a figura de) o pai (“Jogo-contra”), por exemplo. Há sempre uma nervura líquida e tesa atravessando A palavra ausente e dizendo ao leitor que algo se quebrou e está minando. Mas sempre em direção ao mar, à poética da existência.
- Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção:http://lendocancao.blogspot.com
Um ônibus que circula pela zona sul do Rio; a cabine telefônica de uma associação de moradores; o exíguo boxe de um banheiro. Por esses cenários triviais — e, por isso mesmo, tão ardilosos — circulam personagens para os quais a perda, ou a ausência, está sempre à espreita. Esse é o tema que permeia os contos de A palavra ausente (editora Rocco), do escritor carioca Marcelo Moutinho. Após cinco anos sem publicar, ele nos brinda com um livro emocionantemente bem escrito. Leia a entrevista com o autor.
Por que tanto tempo sem publicar?
Somos todos iguais nesta noite, o livro anterior, foi publicado há exatos cinco anos. Mas, nesse período, lancei uma antologia — o Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa — e uma coletânea de ensaios sobre as músicas que trataram, ao longo da história, da cidade — Canções do Rio. Além disso, participei de outras duas antologias. Então, não estava totalmente parado como autor. Acontece que não acredito nessa necessidade tão contemporânea de colocar um livro por ano no mercado. Uma pressa que muitas vezes resulta em livros ruins, sem rigor. Cada livro pede seu tempo.
Os contos do livro tem uma unidade?
Sim. A questão da “ausência” paira sobre os dez contos, amarrando-os tematicamente. Essa ausência pode espelhar a morte, mas também a falta de alguém que se foi em uma relação amorosa, ou um telefone que não toca. Pode, ainda, se dar no âmbito da própria literatura, como no conto que narra o encontro de uma camareira de hotel com uma escritora consagrada.
Você obteve muitas boas críticas com seu primeiro livro de contos, Somos todos iguais nessa noite (Rocco, 2006). O que espera alcançar com este novo livro?
Depois de publicado, o livro é do mundo. Claro que, como todo autor, espero boas críticas. Mas, além disso, gostaria é de chegar ao leitor não especializado, transcender um pouco o mundo restrito da literatura, que anda muito auto-centrado. Tomara que o livro consiga isso. Sei que é difícil.
O livro tem contos cujo cenário é o mundo do samba no Rio de Janeiro. O samba te inspira? Qual é a importância da música na sua vida?
Total. Sou apaixonado pela música brasileira, sobretudo pelo samba. Além disso, desfilo religiosamente no Império Serrano, que transformei em cenário de um dos contos do novo livro: a história de um ex-mestre-sala que hoje trabalha na limpeza da quadra da escola de samba. É curioso que o carnaval, tão impregnado no imaginário brasileiro, apareça tão pouco na nossa produção literária. Modestamente, venho tentando dar a minha contribuição.
Como a ausência marcou a sua própria vida?
Como escreveu o Ferreira Gullar em um dos poemas de seu livro mais recente, “estou cercado de cadáveres”. Perdi uma irmã, ainda bem nova, e perdi meu pai. Nos últimos anos, partiram uma tia-avó e um tio-avô que, na prática, significaram, para mim, as figuras possíveis de avó e avô. Logo depois, uma prima… Não é à toa, portanto, que A palavra ausente aborda essa questão. Mas não se trata de lamento, longe disso. Até porque concordo com Drummond quando dizia que “as coisas findas / muito mais que lindas / essas ficarão”. Felizmente, ficam mesmo.
Calar é saber
No mais recente livro de contos de Marcelo Moutinho, A palavra ausente, as histórias são contadas com um surpreendente equilíbrio entre o que se expressa e o que apenas fica sugerido. Aquilo que se cala é uma descoberta dolorosa demais para ser dita abertamente. A palavra se ausenta da enunciação, mas seu sentido contamina todas as outras e estabelece o clima de um lirismo verdadeiro, sofrido.
São dez os contos explorando aspectos do cotidiano. Momentos de simplicidade, corriqueiros, mas que acabam por levar às grandes descobertas do sentimento de perda e falibilidade. Como bem aponta Cíntia Moscovich na orelha do livro, são contos de formação. Episódios da infância que revelam a mais dolorosa de todas as descobertas: a da morte. Mesmo quando as personagens ingressam na vida adulta, é com olhos infantis que percebem que o fim é inevitável, que o luto permanece e permeia a vida dos sobreviventes, condenados à solidão mesmo quando num relacionamento, ou no meio da multidão.
Se é possível aceitar a perda, o rompimento, a violência, é porque tentamos, como a criança, achar que no dia seguinte o mundo se reinaugura, tal como uma nova página permite criar uma nova história. Nas páginas dos contos de Moutinho, porém, a ausência da palavra fatal não impede a dor, construtora de uma melancolia sem amargor, mas estruturadora.
O sentimento que transborda e emociona se apresenta contido, sem exageros, mas escorre como a água que unifica as histórias. Desde o magistral Água, em que o banho nunca poderá livrar as personagens da mancha dessa palavra propositadamente calada, passando por Cavalos-marinhos, Folia e Dona Sophia, a água atravessa os episódios, seja água encanada, água suja, ou potencializada na imensidão do mar ou no ímpeto do rio. Mesmo quando se ausenta, a água se manifesta na lágrima que nunca escorre, ou em seus correlativos – vidro, trânsito, ligações telefônicas, texto.
Manejando com perícia diversos registros, usando a linguagem das comunidades ou de pessoas cultas, as palavras sempre trabalham suas omissões. No conto final, Marcelo Moutinho cria um tour de force, e coloca a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen interpretada pela simplicidade da camareira do hotel em que se hospeda, em Manaus. Com sabedoria ele revela o rio poético nascido da observação de quem nem sequer sabe conceituar poesia, mas que conhece o ritmo secreto das coisas.
Com a limpidez elíptica de sua prosa quase poética, Moutinho preenche os recantos sombrios da alma humana, contaminada por essa dura certeza da finitude. Mas termina com um aceno de esperança, com o exemplo da poeta que deseja ser mar e areia, mas que contempla o rio, ou mesmo a piscina de sua possibilidade. Isso não impede que o poema alce vôo, que a alma se liberte e, mesmo sem o conhecimento, se eleve “bem fina, leve, solta no ar.”
Lúcia Bettencourt
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