O primeiro dente


Ao ver a porta de casa se abrindo, Lia girou o pescoço em minha direção, as gengivas à mostra num daqueles sorrisos de que a palavra ternura não dá conta. Eu chegava do trabalho e, como sempre, fui saudá-la. Peguei-a no colo, beijei levemente suas bochechas, as irresistíveis covinhas. O sorriso permanecia estampado no rosto e, agora mais de perto, pude perceber um minúsculo feixe branco destoando na explosão de vermelho da arcada inferior. O primeiro dente.

Assim como no momento em que o umbigo cai, o bebê consegue se sentar sozinho ou enfim arrisca-se na elementar aventura de cruzar a sala engatinhando, o aparecimento do primeiro dente aciona nos pais um duplo sentimento. Alegria e alívio. É mais um entre os tantos signos de desenvolvimento no turbilhão de novidades – e sustos – daquela vida que começa a tatear o mundo. Literalmente.

Nesses dez meses fora da barriga da mãe, Lia me ensinou algumas coisas sobre bebês. Que o choro é um meio ágil e eficaz de comunicação. Que objetos não projetados originalmente para a fruição lúdica são mais interessantes que brinquedos. Que tudo, seja no universo da casa ou fora dele, está disponível para a condução até a boca. De preferência papéis velhos, como o recibo que dormiu por quase um ano esquecido na minha mochila do futebol e redescobri, já amarelado, em meio à saliva da mocinha.

Entre outros impressos, Lia comeu duas páginas de uma história infantil do Henrique Rodrigues, as provas do último romance do Fernando Molica, a carta que avó lhe dedicou junto a um presente, diferentes tipos de guardanapo.

Dia desses, confirmou a previsão de amigos meus que também têm filhos pequenos. Quando entrei no quarto, ela sugava com vontade o fio do carregador do celular – que, claro, estava conectado à tomada. Pelo que entendi, é algo que os bebês costumam fazer. Começo a desconfiar que vem daí toda a energia que são capazes de despender durante o dia, ou em meio à madrugada.

Mais lições de Lia: esfregar as mãos nos olhos significa sono, a testa franzida indica a iminência de um portentoso número dois. Que, diga-se, nunca vem sozinho. É invariavelmente uma soma (número um + número dois), cujo resultado se expressa na fralda.

Ultimamente, Lia descobriu as gatas. Sofia, a bela desconfiada, tenta se manter distante. A espaçosa Caramelo às vezes se aproxima, mas com cautela. Com a Mila, a relação é especial. Lia não pode vê-la por perto que tenta contato. Ensinei-a a fazer carinho passando a mão sobre o pelo preto. O problema é que há um rabo em permanente movimento. Capturá-lo parece irresistível.

Mila até hoje não reagiu mais fortemente. Pelo contrário. Sempre que tem chance, escala a parede, pula sobre a cômoda e deita-se no berço da bebê. Ainda não concluí se é caso de disputa de espaço ou mera demonstração de zelo felino, à semelhança de uma irmã mais velha.

Lia também aprendeu a falar “mamamama” – o tão esperado “papapapa” até agora nada – e a gritar, a plenos pulmões. Berra ao menor sinal de excitação, sem se preocupar com quem esteja à volta. O que confirma minha tese sobre a maior falha do projeto humano: a falta do botão de volume.

À medida que cresce, percebo seu rosto redesenhando os traços do meu. O ferro liquefeito a se refazer, em nova substância, novo corpo, sem a ferrugem do tempo transcorrido. É bonito.

Mas ela não se interessa, ao menos ainda, por questões metafísicas como essa. Prefere se concentrar na Galinha Pintadinha, cujas canções insistem em ecoar no lóbulo pré-frontal quando me encontro entre a vigília e o sono. “Mariana conta um / Mariana conta dois” – e Lia se remexe em frente à TV, numa dança desconjuntada, graciosa. Então nós, os pais, podemos almoçar, ler o jornal do dia, descansar alguns minutos. Agradecidos, repetimos em silêncio o refrão: “Viva a Mariana, viva a Mariana”.


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