Ao anoitecer de cada domingo, reúnem-se num minúsculo boteco de Copacabana alguns dos mais talentosos músicos cariocas. Eles chegam com seus instrumentos, se ajeitam em torno da mesa principal e passam algumas horas tocando e cantando, sem cobrar couvert artístico e pagando do próprio bolso a cerveja que consomem.
A tradicional roda de samba do Bip Bip, porém, tem suas regras. Sob o olhar rigoroso do proprietário do estabelecimento, Alfredo Jacinto Mello – ou simplesmente Alfredinho -, os participantes devem falar baixo e evitar pedidos ou aplausos. Além disso, só os músicos sentam-se nas cadeiras de ferro do bar. Os demais ficam de pé.
Boa parte dos desavisados que chegam à Rua Almirante Gonçalves estranham e juram nunca mais voltar. Outros se encantam com o ambiente e acabam por se tornar assíduos, embora não saibam exatamente nomear o que os move a cada domingo em direção ao apertado boteco.
Os mistérios do Bip Bip são muito próprios e já renderam três livros. Mas o rígido ordenamento que rege sua roda de samba se assemelha, em conceito, ao de muitas
outras ao longo da cidade. Da Zona Norte à Zona Sul.
Como mostrou o pesquisador Roberto M. Moura em estudo sobre o assunto, as
rodas precedem as escolas e mesmo o próprio samba. Moura destaca que elas vieram favorecer e proporcionar uma “ambiência sonora” que desembocaria no surgimento do gênero, já que representam sua “matriz física”, a célula original.
Partindo da casa de Tia Ciata, na Praça 11, no início do século passado, as rodas tomaram forma no bairro do Estácio e se espalharam pelos subúrbios cariocas por meio das escolas. Estão aí, firmes, até hoje. Quem circula pelo Rio sabe: não há bairro da cidade que não tenha uma.
Às vezes, de modo improvisado – o cavaquinho e o tantan se esbarram na calçada e vão atraindo gente e garrafas de cerveja. Outras, com organização e dia marcado. É assim, por exemplo, nos Escravos da Mauá e no Trapiche Gamboa. Talvez a maior delas, a roda do Clube Renascença chega a reunir duas mil pessoas a cada edição. O nome do encontro organizado pelo cantor e compositor Moacyr Luz é pura gaiatice: Samba do Trabalhador. Isso, numa segunda-feira à tarde.
Nas zonas de interseção entre as mais distintas configurações há duas marcas, aparentemente paradoxais. De um lado, a constante saudação ao passado, que um samba de Moacyr, Aldir Blanc e Luiz Carlos da Vila sintetizou num verso com feições de norma: “A tradição é lanterna”. De outro, o fato de constituírem o lugar por excelência de “legitimação” de novas canções, já que os compositores costumam apresentar ali, entre seus pares, as criações inéditas. É a memória servindo de combustível para a chama que vem atualizá-la e, processada em cinza, virar memória também.
Entre os músicos e os demais participantes – o coro -, laços de amizade e sangue são construídos, dores individuais são maceradas em ritmo e álcool, diluídas no canto forte que, numa feliz incoerência, embala o lamento característico de boa parte das letras de samba.
E a dor que se canta não é só aquela mais comum e profunda: a dos amores que se foram e não se sabe se voltarão. Canta-se também a grana pouca, a nostalgia de um momento, a falta de alguém que já se foi. “É como se o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora”, escreveu Moura, que enquanto esteve por aqui experimentou na prática seu objeto de estudo (saudade, professor…).
Certa vez, o site Agenda do Samba e do Choro perguntou aos leitores por que afinal saem do conforto de suas casas para se apertar entre tantos outros, ouvir (e cantar) samba numa roda. André Dantas, historiador e morador de Niterói, respondeu: “Vou às rodas porque preciso mesmo. Não é frescura, é necessidade. Sai do plano individual e vai para o coletivo. É como se todo mundo se olhasse e dissesse: – A vida é foda, mas é boa pra cacete”.
E não é mesmo?
Martha Côrtes
15 outubro
Sou mineira de nascimento, mas carioca de coração. Meu marido é carioca, mas eu me sinto muito mais carioca do que ele. Eu conheço Rio melhor do que ele, mas não conheço nem um milésimo do que gostaria de conhecer. Ah! Como eu queria conhecer esse Rio que você descreve! Como eu queria, numa tarde de segunda-feira, participar do Samba do Trabalhador! Sim, participar, pois numa roda de samba não consigo não cantar. Ah! Como eu queria morar no Rio!!!