Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, pobrinha como buraco na sola do sapato.
Caio Fernando Abreu
Abraçado à privada, o homem lança em jatos o resto azedo da noite. Hesito em abordá-lo, perguntar se precisa de alguma coisa. Alguns segundos apenas. Decido ficar em silêncio, deixá-lo ali, abandonado por si, por mim, pelos outros, na dorzinha besta que cabe num banheiro apertado às três da manhã.
Cigarro, lá fora, alguém sugere. Choveu há pouco e o letreiro treme na poça d’água que margeia a calçada. Ao fim da poça, a menina. Agachada, mão no rosto, pernas dobradas como tripé, em xis. Uma flor murcha.
A fumaça me entope as narinas, abro o botão da camisa, próximo ao pescoço. Sinto a tonteira feliz dos copos a mais acarinhando os cortes recentes, como a pomada que anestesia as aftas, fecha uma, abre outra, e bota o remédio, e sara, e bota o remédio de novo. Busco o ar com a respirada longa, lenta.
No outro lado, próximo ao poste, duas botas compridas. Os cadarços escalam as panturrilhas e o corpo musculoso marca o vestido, sugere formas. O cabelo é louro e liso, escorre pelas costas, desce até a cintura. Do ombro direito, pende a minúscula bolsa prateada. Os saltos finos pinçam a calçada molhada. E os carros passam.
Vez por outra, um deles freia. A janela se abre. Sem demora: palavras, propostas, caô. As botas entram no carro, ligeiras, levam a solidão pro motel. E as solidões se agarram, lambem, mordem, até gozar, despejando suas dorezinhas, pelo menos até amanhã.
As botas, de volta. Cigarro. Tem um?
Há, então, o choro franco por quem se foi (ou está indo), pelo amor largado alhures, lembrança de algum rasgo nessa vida-papel.
A dor da menina.
Ela se levanta. Busca algo na bolsa. É possível ver o rosto inchado, as bochechas rubras. A flor murcha ganhou caule e sobe no ônibus, decidida.
Dores ordinárias, comezinhas, doravante uma outra dor.
Que passa, às vezes passa, no sacolejo da condução vazia, a caminho de casa.
NO COMMENT