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Da insuficiência das palavras

Da insuficiência das palavras


Como disse certa vez Antonio Callado, Clarice Lispector era, em essência, uma estrangeira. Não por ter nascido na Ucrânia, ou não apenas por isso. “Clarice era estrangeira na terra. Dava impressão de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há uma greve geral de transportes. Mesmo quando estava contente ela própria, numa reunião qualquer, havia sempre, nela, um afastamento”, observa.

Ao me debruçar sobre as correspondências da autora, 129 textos reunidos em livro pela editora Rocco, a frase de Callado ressoa. As cartas datam do período compreendido entre as décadas de 1940 e 1970, quando Clarice lançou livros que se tornariam clássicos, como Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. e Laços de família. Foram selecionadas pela pesquisadora Teresa Montero nos arquivos da Casa de Ruy Barbosa, resultando num conjunto que contempla também mensagens que recebeu de familiares e amigos.

A autora que se descortina nas correspondências não se resume à fiandeira dos densos territórios da alma, à hábil investigadora das zonas abstratas da sensibilidade. Para além de enigmas metafísicos, a Clarice missivista está mais próxima das idiossincrasias do cotidiano. Nas cartas, ela trata de temas comezinhos, como a pintura de uma geladeira ou o dinheiro escasso.

E, claro, de literatura. O processo de criação e as inseguranças diante da crítica ocupam boa parte diálogo postal com alguns de seus pares, como Lúcio Cardoso, João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira e Fernando Sabino. É uma riquíssima troca de impressões de leitura. Sabino, por exemplo, elogia em determinada passagem a maturidade da amiga: “Você está escrevendo bem, com calma, estilo seguro, sem precipitação. Talvez porque agora já não esteja sofrendo muito; o que é preciso é sofrer “bem”, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já e iniciado em sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo”.

Em outro texto, Clarice defende o título do romance O lustre ante reparo feito por Lúcio Cardoso, que argumentara: “Acho meio mansfieldiano e um tanto pobre para uma pessoa rica como você”. A escritora retruca: “Nunca convenci você mesmo de que eu sou pobre; infelizmente, quanto mais pobre, com mais enfeites me enfeito”.

A seleta de cartas foi publicada em 2002. Me deparei novamente com o livro na terça passada, quando procurava outro título na estante. Ao folheá-lo, pude observar as marcações feitas à primeira leitura. Lá se vão 13 anos. Os cantos das páginas estão repletos de anotações à caneta, de que são exemplos os fragmentos destacados nesta crônica. Mas não há apontamento, sequer um grifo, no trecho que mais me chamou a atenção ao reencontrar a obra. Curiosamente, formulado não por Clarice, mas por sua comadre, Maria Bonomi. “A gente começa a viver de tal maneira que as palavras se tornam precárias para a vida. Para falar do que se está vivendo”, comenta ela. Peguei emprestado. Diante da truculência e do barbarismo que povoaram a cidade na última semana, o sentimento é mesmo de escassez.


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