“O Paulo escreveu à mão!”. A frase, exclamativa, referia-se ao texto da orelha do livro O meu lugar, que a editora Mórula encomendara ao compositor Paulo César Pinheiro e recebia naquele exato momento. O espanto de Marianna ao telefone se justificava. Trabalho direta ou indiretamente com livros há quase 20 anos e nunca havia me deparado com um manuscrito digno do nome. Desconfio que nem ela.
O texto estava registrado numa folha pautada, dessas de caderno escolar. Em letra arredondada, miúda, o poeta falava dos bairros onde morou ao longo da vida. Ramos, Jacarepaguá, São Cristóvão, Leblon, Jardim Botânico, Recreio, Laranjeiras. O traço irregular, que teima em não acompanhar a linha, humanizava o relato. Ao fugir do desenho impecavelmente delineado da fonte do computador, tornava-se mais pessoal, íntimo.
Nos meus tempos de escola, escrever à mão era o usual. Cheguei, ainda bem pequeno, a tentar o caderno de caligrafia. Um bloco que lembra pauta musical e no qual você deveria reproduzir textos, sempre no limite entre as linhas. À minha letra, diziam, faltava harmonia. Equilíbrio estético. Vá lá: beleza. E o tal caderno iria resolver o problema.
O esforço não durou. Primeiro, porque era chatíssimo copiar frases, as mesmas frases, que perdiam o sentido na esteira da redundância. Ademais, na minha arrogância de moleque, achava que a pouca legibilidade significava distinção. Mérito, portanto.
A verdade é que sempre impliquei com caligrafias muito certinhas. Aquela espécie de letra que serve à perfeição ao propósito do entendimento, mas à qual falta, sobretudo, originalidade. Não entendo de grafologia, a arte da análise da escrita, mas nessa seara não mudei tanto. Ainda hoje, quando se trata de manuscritos, prefiro a imprecisão ao pragmatismo.
Penso nos traços de Vinicius de Moraes, o “r” e o “l” de bordas incompletas, o “d” que nunca se fecha em si mesmo. Nas palavras em desalinho de Clarice, cujos originais guardam rabiscos, desistências, trocas. Em Machado de Assis e os caracteres que parecem se evitar, manter certa distância entre si, mesmo na escrita cursiva.
Com o passar dos anos, e a prática cada vez mais constante do computador, minha caligrafia ficou ainda mais intransponível. É, hoje, quase um código secreto, cuja senha guardo comigo.
Nos lançamentos de livro, quando inevitavelmente preciso recorrer à caneta, procuro escrever com capricho e vagar. Quero que as pessoas compreendam o teor de cada dedicatória, possam decifrar meus rabiscos. De tão fora de forma, a mão chega a doer.
Não sei como é a letra da grande maioria dos meus amigos. Se os vocábulos se equilibram, caudalosos, sobre um fio imaginário ou insistem em dançar em sincopado, ignorando o trilho. As curvas, a cadência, as hesitações, estão todas escondidas sob a forma fixa da tipografia.
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