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Bar com pronome pessoal

Bar com pronome pessoal


Trata-se de assunto da mais alta relevância e, portanto, providência a ser tomada assim que o indivíduo chega ao novo bairro: encontrar um bar para chamar de seu. Aquele recinto em que, vestindo apenas bermuda, uma camisa velha e chinelo de dedos, você poderá tomar sua cerveja em paz. De preferência, acompanhada de bom tira-gosto – e sem chatos por perto.

No tempo em que morava na Barra, nos anos 90, esse bar era o Maracujina. Preço baixo, comida digna e cerveja de garrafa formavam uma trinca irresistível para estudantes sem grana como eu. Muitos no bairro torciam o nariz porque o Maracujina era frequentado pelos “paraíbas” – a forma jocosa como os endinheirados chamavam aqueles que trabalhavam nas obras e portarias dos prédios da região. Como sempre achei que mistura é riqueza e segregação não está com nada, batia ponto por lá e dividia umas geladas com a turma.

O Maracujina tinha outra característica bem peculiar: era um bar do “antes” e do “depois”. Em razão da cerveja barata, o pessoal que se preparava para varar a noite nas festas ou boates da moda fazia o pit-stop para o aquecimento prévio. Algumas horas passadas, boa parte estava de volta. Esse regresso sinalizava quase sempre um plano frustrado. E vamos à saideira para purgar o fracasso.

Eu formava com o time do “durante”, ao qual eram permitidas certas intimidades. Trocar acompanhamentos nos pratos, dar o telefone do bar para o caso de alguma emergência. Certa vez, já animados pela cerveja, pedimos ao garçom que nos trouxesse um carpaccio. “Não tem carpaccio no cardápio”, ele respondeu. “É claro que tem”, e mostramos o item na página de petiscos. Nós mesmos havíamos incluído, a caneta, minutos antes.

Quando me mudei para a Urca, a escolha não demorou. O bairro não tem tantas opções e, ao ver a profusão de táxis estacionados no entorno do pequenino Flor da Urca, quis tirar à prova uma antiga lenda urbana carioca: se o lugar atrai taxistas, a comida é boa.

Era mesmo. Os pratos do dia, sempre acompanhados de feijão e arroz, davam a sustância necessária às ampolas cobertas por aquela maravilhosa película de gelo que, entre os do ramo, garante à cerveja uma especial denominação: “cu de foca”.

No Jardim Botânico, meu bar passou a ser o Jóia, ali ao pé da Rua Faro. Isso foi antes da reforma que o descaracterizou. Mais tarde, já em Laranjeiras, frequentei muitos botecos, mas – sei lá por que motivo – não cheguei a criar intimidade com nenhum deles.

Ao chegar à Lapa me revezei entre o Bar Brasil e o Gomes de acordo com o desejo da hora: cerveja de garrafa ou chope na pressão. No Gomes, tinha prerrogativas de freguês habitual. Mesmo à noite, podia pedir o prato executivo do almoço. E bastava me ver à porta que o garçom se encaminhava à geladeira para pegar uma Serramalte.

No ano passado, me mudei para Botafogo, onde vivo até hoje. Não precisei bater muita perna até ser apresentado ao Árabe. O nome que consta da placa é Flor de Botafogo, mas a cozinha libanesa logo fez valer o apelido, usado também por amigos que frequentam há mais tempo (e em relativo segredo). O apelido, diga-se, é uma das marcas de familiaridade que autoriza a aplicação do pronome pessoal.

Com mesas e cadeiras na calçada, o Árabe serve pratos com frescor e sem frescura. Tem um cardápio tão enxuto quanto barato. Além disso, a cerveja costuma estar no ponto. Há poucas semanas descobri que o Bira, o solitário e atencioso garçom, torce para o Império Serrano. O que poderia pedir mais?

Mas deixemos de lado por um instante a honestidade da comida, a temperatura da cerveja, a acolhida dos funcionários, a descontração do ambiente. No fundo, a maior virtude do bar que nomeamos como “nosso” é outra. Aquela que justifica de antemão qualquer infidelidade futura: ele fica perto de casa.


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