Tudo começou com um pedaço de guardanapo, que entreguei a ele já meio bêbada, depois que dançamos duas músicas juntos na festa do namorado da Claudinha; havíamos conversado um pouco, ele arquiteto e interessado em design, essas coisas, eu dizendo que adorava arquitetura mas detestava o modernismo, e o papo correu para Itaipava por causa da Lota de Macedo Soares, e eu falei que sonhava morar naquela casa em que ela morou com a Elizabeth Bishop e tinha lido o livro sobre a vida das duas, aí ele riu e brincou: “mas aquela casa é em estilo modernista”, eu fiquei sem graça mas não dei bandeira não, fui logo retrucando que na casa delas, mesmo sendo modernista, eu moraria feliz, por causa da história de amor entre as duas; ele me chamou de romântica e perguntei se ele não se considerava romântico; “mais ou menos”, respondeu, um pouco vermelho, envergando o rosto para baixo; então eu toquei com meus dedos bem perto da orelha dele e acariciei até o pescoço; senti que ele arrepiou o corpo todo e ficou ainda mais envergonhado, mas apesar disso pediu meu telefone porque precisava ir embora; eu consegui uma caneta com a Claudinha e anotei no guardanapo de papel ainda com a gordura da bolinha de queijo que acabara de comer porque era o que de mais perto havia, e de repente comecei a sentir uns fogos de artifício estalando dentro de mim, bem no lugar onde havia a bolha branca que parecia só crescer crescer crescer crescer sem que nunca explodisse de vez; e depois do guardanapo nos falamos e resolvemos ir ao cinema, e fiquei feliz à beça quando soube que ele também adorava o Woody Allen e que Manhattan era um dos filmes de sua vida, assim como é da minha, e ficamos quase três horas falando sobre Woody Allen e tomando cerveja de garrafa na mesa de um boteco perto do cinema; dali fomos para a casa dele sob o pretexto de um café que nunca bebemos, porque logo ao entrar naquela sala amarela eu pulei em cima dele como um cachorro pula em cima do outro, envolvi minhas pernas em volta da cintura dele e comecei a lamber aquela boca carnuda; ele tinha uns lábios grossos que me despertavam tesão, mordi o seu pescoço até machucar, enquanto esfregava os pés na bunda dele, e as pernas nas pernas dele, que tirou a blusa de forma meio desengonçada, e depois as calças, e depois a cueca, eu já completamente nua porque eu era o bicho e ele, a presa, e transamos ali mesmo, na sala, deitados sob o tapete que espetava as costas, pois não ligávamos para essas mumunhas; o que importava era a língua dele girando dentro de mim e eu quase virando água, depois ele me comendo como nunca ninguém havia comido e o corpo tremendo sozinho quase meia hora depois de ele ter gozado, espasmos curtos e sucessivos, enquanto me olhava com cara de cabotino; e dormimos juntos ali mesmo, sobre o tapete que espeta; era como se estivéssemos dormindo no mais caro colchão já fabricado, no mais macio, no mais cheiroso; e o cheiro do colchão se misturava ao cheiro dele, cheiro de homem, sabe como é?, e potencializava o perfume Calvin Klein que saía do alto do pescoço, naquela região onde eu mais gostava de me aninhar e ainda não sabia, e onde me aninhei naquele dia pela primeira vez, no chão da sala amarela do apartamento dele, os livros em volta, os quadros em volta, os papéis de arquiteto em volta, acordando com um beijo leve na testa e a pequena bandeja com café, pão francês, queijo branco e geléia de amoras, não sei como ele descobriu que gosto de geléia de amoras, talvez eu tivesse dito na festa, já meio bêbada, e tomamos o café-da-manhã juntos, agarradinhos, depois fomos caminhar nas Paineiras, e depois almoçar num bistrô charmoso “que só ele conhecia”, e então voltamos para o apartamento dele precisando de ouvir música, Caetano, Edu, Francis, algum jazz e umas coisas que ele trouxe, todo pimpão, da Europa, e transamos transamos transamos, como iríamos transar quase que diariamente a partir dali, no apartamento dele, no meu apartamento, depois no nosso apartamento, onde ele aparecia todo dia seis com flores, porque foi num dia seis que eu falei “eu te amo” pela primeira vez para ele; eu lembro que a gente estava deitado vendo um filme qualquer no vídeo e do nada eu falei “eu te amo”, assim, sem nenhum glamour, e ele achou mais bonito ainda por causa disso, e decidiu que seria a “nossa data”, eu concordei, porque também achei bonito isso de festejarmos o primeiro “eu te amo”, ainda mais porque ele não me veio com um banal “eu também”, ele se virou para mim e falou “Garota, você me transforma num louco”, e abri um sorriso por dentro que quase me estourou inteira, mais uma vez aqueles fogos de artifício explodiram e soltaram suas luzes lilases; foi parecido com o que aconteceu quando ele soube que ia ser pai e começou a chorar, e eu chorava também com o exame nas mãos, e ele me abraçou de um jeito terno, me beijou na bochecha, ali era carinho não era tesão, e sussurrou que eu ia ser a mãe mais linda desse mundo, ia ter o filho mais lindo desse mundo, e modéstia à parte acho o Bruno o filho mais lindo desse mundo mesmo, inclusive agora, quando ele já está casado e nos deu a Bia, que, claro, claro, claro, é a neta mais linda desse mundo, e foi concebida lá em Itaipava, não na casa da Lota e da Bishop, mas no sítio que nós compramos ao completar vinte anos juntos e hoje não temos mais, embora permaneça nas fotos da gente por lá, bebendo vinho em torno da lareira, fazendo churrasco, vendo o Bruno ainda pequeno tomar banho na água geladíssima da piscina natural, como se estivesse morna, e acenando para que nós entrássemos também, e nós acabávamos entrando, e ele e o Bruno jogavam pólo aquático, e ele e o Bruno saíam para fazer expedições pela mata, e ele e o Bruno saíam para andar a cavalo, e o Bruno cresceu e conheceu a Monica, que curtia muito o sítio, até que numa época eles passaram a ir mais para lá do que nós, e ela também sentiu uns fogos de artifício espoucarem dentro dela, e esses fogos agora estão lá dentro da Bia, à espera de uma fagulha, parecida com aquela que se acendeu dentro de mim quando ele, tímido, me pediu o telefone na festa do namorado da Claudinha.
Poxa, ele bem que podia ter ligado.
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* Este conto integra o livro Somos todos iguais nesta noite (Rocco, 2006)
José Roberto de Souza Aguiar
27 janeiro
Ótimo conto, retratando um imaginário de uma suposta realidade. Angústia, sonhos e perspectivas.
Geraldo Cavalcante
12 novembro
Conto excelente. Um fim surpreende de forma positiva.