Esticava os lençóis quando ouvi a porta abrir atrás de mim. Me virei no susto e o Dr. Fernando olhou com cara feia. Achei que ele fosse comentar que o trabalho já era para estar todo feito, mas não disse palavra. Do seu lado, estavam Severino, o carregador de malas, e uma senhora de cabelos cacheados e grisalhos, olhos claros, bem magra. Era Dona Sophia.
Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho, nem sei se o Dr. Fernando ouviu. Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala, mas com um som diferente, sei lá. Tive que me segurar para não rir.
Depois que saímos do quarto, o Dr. Fernando reclamou comigo da demora e contou que a nossa nova hóspede era uma escritora famosa, de Portugal. Que ela ia receber um prêmio no Teatro Amazonas e por isso estava em Manaus. O Teatro Amazonas é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é.
A entrega do prêmio seria dali a dois dias, o Dr. Fernando me falou. E eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira.
***
Quando a Dona Sophia chegou, eram quase onze da noite. Pensei que fosse ficar no quarto, até por causa da idade, mas me enganei. Pouco antes da meia-noite, ela apareceu no hall – eu estava limpando os elevadores – e perguntou se o hotel tinha algum sítio ao ar livre para descanso. Pedi que esperasse e fui perguntar para o Dr. Fernando o que diabos era sítio. Ele me disse que era como se fala lugar lá em Portugal. Então mostrei a ela a parte da piscina, que fica virada para o rio Negro – o pessoal aqui chama de deque. Antes de ir para lá, ela perguntou se eu podia, por favor, lhe servir um chá. Sim, senhora, claro que sim, só um minuto. De que sabor a senhora prefere?
Ah, e um copo de vinho. Branco. Gostaria que viesse fresco.
***
Só voltei a ver Dona Sophia na manhã seguinte. Por volta das nove horas, ela pediu que me chamassem. Esse tipo de coisa nem sou eu que resolvo, mas acho que a Dona Sophia gostou de mim porque faço questão de ser sempre bem-educada com os hóspedes. Queria que eu regulasse a temperatura do ar-condicionado. Aqui em Manaus faz muito calor, e a gente deixa o ar bem gelado. Deve ter passado frio na madrugada, coitada. E acho que se deitou tarde, porque o Dr. Fernando disse para os recepcionistas que aquele era um caso especial, o café podia ser servido a qualquer hora. Ela então avisou que ia descer para comer alguma coisa e perguntou se eu faria o favor de lhe fazer companhia no elevador. Sim, senhora, claro que sim.
Devia ser importante mesmo, a Dona Sophia. E eu estava toda boba de poder servir, ainda mais porque foi ela quem exigiu que eu fosse pessoalmente. Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada. O Dr. Fernando disse que ela ganhou muitos prêmios lá na Europa e que era uma honra para a cidade de Manaus receber uma pessoa conhecida no mundo inteiro.
E o Dr. Fernando sabe de tudo, é muito inteligente, vive lendo. Ele me falou que, dos dez livros mais vendidos da lista do jornal, sempre lê pelo menos três. Mas não perguntei se já tinha lido alguma coisa da Dona Sophia. Fiquei com vergonha, porque o Dr. Fernando é muito sério. Aliás, a Dona Sophia também. Pelo que eu senti logo de cara, não é de falatório, não.
***
Esse rio denso, mudo, olha bem, dá para ouvir a respiração da noite, ela disse, quando levei o vinho branco na noite do segundo dia. Fiquei espantada com a frase e Dona Sophia continuou. Queria pousar o meu amor neste silêncio como uma rosa sobre o mar. Ela ficou na parte da piscina, como na véspera, sentada numa cadeira voltada para a margem, observando as águas escuras e fazendo algumas anotações num caderno marrom.
Eu me afastei e me escondi atrás da cortina do restaurante, olhando de longe. Às vezes parecia que falava sozinha. Que tinha alguém ali, uma amiga, sei lá, conversando com ela. Chegava a mexer os braços. Aí se virava novamente para o caderno e riscava as páginas com a caneta.
Já me preparava para ir dormir quando ela se levantou da cadeira. Colocou o caderno e a caneta na mesa, e começou a se mover de um lado para o outro, bem devagar, como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer. Estava dançando, a Dona Sophia.
Por ordem do Dr. Fernando, no dia seguinte logo cedo fiquei à disposição. Era o dia da entrega do tal prêmio, e ela tinha que estar pronta às dez, porque o motorista passaria no hotel pontualmente. Não achei Dona Sophia animada com o prêmio, não. Parecia mais alegre nos momentos em que ia para a parte da piscina com seu chá, ou com seu vinho, do que quando tinha que sair para os compromissos da viagem.
Durante o café, dei parabéns, ela sorriu, e só encontrei nossa hóspede novamente no fim da tarde. Eu saía do serviço e ela chegava da cerimônia. A cara era de cansaço, de quem quer um bom banho e cama. Enquanto eu saía, me acenou com a cabeça e dei um tchauzinho com a mão. Também merecia descanso.
***
A escritora deixou um embrulho para você, o Dr. Fernando me disse logo que botei os pés no hotel. Hã? Para mim? É isso mesmo, a escritora lhe deixou um presente, está na recepção.
Bati o ponto e corri para o hall.
Me entregaram um envelope pardo. Dentro tinha um livro, grosso, de capa dura. “Antologia”, dizia o título, e debaixo dele aparecia um nome: Sophia de Mello Breyner Andresen. Não sabia o significado da palavra antologia e fui perguntar para o Dr. Fernando. Ele me falou que era uma seleção dos melhores textos. É como no futebol. Na seleção brasileira não estão os melhores jogadores do Brasil?
Entendi.
Daí ele quis saber por que me interessei por aquela palavra, e eu contei do presente. Ela te deu um livro?, perguntou, com jeito de quem ia rir, e disse que talvez eu não fosse entender os poemas. Que se eu não entendesse, ele podia me ajudar.
Nunca tinha lido um livro, mas fiquei tão feliz, tão surpresa com o presente da Dona Sophia, que me prometi que ia ler aquele, sem precisar pedir arrego para o Dr. Fernando. E li mesmo.
Não foi fácil, não. Primeiro, porque achei estranho. Eu achava que poesia tinha que ter rima. Mas se na capa estava escrito poesia e dentro não tinha rima, era porque era poesia mesmo. Nem precisei perguntar isso para o Dr. Fernando. Desconfio que, se perguntasse, ele ia me gozar.
E o livro tinha umas palavras estranhas à beça. Creta, cedros, Cacela, Kronos, amphora, Pérgamo, rododendros, toiro. Delphos, cupidez, nereides, Knossos, tença, oleado, manuelino, nardos. Não estavam nem no dicionário que o Dr. Fernando me emprestou, e que ele falava que era o melhor. Mas algumas eu consegui entender.
Ela escreveu no livro que um dia quer ser o mar e a areia. Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água, ou arranhasse que nem areia, levada pelo vento, sem nada que prenda ao chão. Será que a Dona Sophia vira areia quando dança sozinha?
Eu nunca entrei no mar. Nunca nem vi. Só escutei as ondas. Lembro bem: era pequenininha quando minha mãe trouxe uma concha e pediu que eu colasse na orelha. Um barulho tão bonito.
No livro da Dona Sophia tem também sol, onda, árvore, lua, flor, selva, essas palavras da natureza. Mas o que tem mais mesmo é mar. Engraçado ler tanta poesia sobre mar e saber que a Dona Sophia ficava um tempão na parte da piscina, sentada, olhando o rio.
E rio é diferente, é água doce. Rio eu já vi. No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina. Negro, Solimões, Amazonas. Rio para mim é travessia de barco. Lugar de pescar piranha, pirarucu. Ou de tomar banho. Rio é a mãe chamando a gente para o almoço, é o pai entrando na canoa para ir trabalhar, é brincadeira de briga de galo, é gosto doce-azedo de cupuaçu.
Antes de ler o livro da Dona Sophia eu nunca tinha pensando nisso, não. Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes mais limpo, às vezes mais sujo, mas só ele mesmo, o rio.
Confesso que da primeira vez que li o livro não consegui entender muito bem as coisas que ela escreveu sobre o mar. Acho que para a gente sentir tem que ter encostado na coisa, cheirado, pelo menos visto de perto.
Mas depois eu li o livro de novo, e de novo, e vi que, apesar de a gente ser tão diferente e de eu não ter encostado nem ao menos meu dedo na água salgada, pareço muito com a Dona Sophia. Sei que nunca vou receber um prêmio, nunca vou escrever um livro, nunca vou ser famosa como ela. Também nunca pensei em ser mar. Mas em rio, sim. Tem horas em que eu quero ser rio. E areia. Bem fina, leve, solta no ar. Para poder dançar sozinha, que nem a Dona Sophia, no ritmo secreto que só nós duas conhecemos.
* Conto publicado no livro A palavra ausente (Rocco, 2011)
Lya Gram
30 abril
Que conto maravilhoso! O personagem se revela através de outro de forma branda, suave. Há tanta profundidade nas reflexões da humilde camareira que a eleva ao maior grau de importância no enredo sem perder sua essência. Parabéns pela obra!
Pablo Casarino
29 janeiro
Magnífico. Lí aqui de Lisboa. Criei uma imagem tão gostosa de dona Sophia e da garota que ganhou o livro. Grato por melhorar minha noite.
Abraços
isabela
24 junho
Que conto lindo! A camareira , tão humilde, descobrindo o prazer da leitura. A escritora abrindo novos horizontes para a camareira. Encantador a forma como foi escrito. Parabéns!
carlos placido pita filho
18 agosto
esse conto me fez lembrar a minha Mainha quando trabalhou em um hotel na praia do farol da barra aqui em salvador, e das conversas que ela tinha em casa com agente nos falando sobre o dia a dia do trabalho e no trato com os hospedes e da educação que a grande maioria deles demonstravam aos funcionários.
dos variados tons de pele,das diferenças culturais e alimentares, uns mais sisudos outros alegres num entra e sai descomunal naquela pequena babel de linguás estranhas.
óbvio que tinha aqueles insuportáveis e mal-educados como em todo o lugar.
Almor
21 agosto
Gostei muito. Continue o bom trabalho.
Ana Venturelli
4 fevereiro
Dona Sophia. Inspirador, cativante e leve como finos grãos de areia suspensos por um sopro sutil. Parabéns!