Imagine se a Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, enfim avocasse a inconfessa vaidade e partisse, salto alto e cara pintada, para uma roda de bambas na Lapa. Ou se a Emília, saudada como esposa ideal por Wilson Batista e Haroldo Lobo, decidisse largar a tábua e o ferro de passar para curtir o Carnaval em Madureira. Nas canções de O Micróbio do Samba, disco que Adriana Calcanhotto acaba de dedicar ao gênero, as mulheres são assim: independentes, donas de si, implacáveis. Os homens que se cuidem.
Ao incursionar por uma tradição centrada fundamentalmente no discurso masculino, Adriana se manteve alheia à ortodoxia. Se o dialogo com o rock e a pegada bossa-novista de seu violão podem horrorizar os puristas, os temas clássicos do samba estão lá. Mas o malandro, a orgia, a boemia, a relação conjugal, são revisados com tintas contemporâneas. Os tempos mudaram, avisam as musas que inspiram (e protagonizam) as canções do CD.
Espécie de carta de intenções do disco, a faixa Mais Perfumado sinaliza que essa personagem tão presente na história do samba perdeu a inocência: “Quando reclama do meu vestido/ quando se zanga porque trabalho/ quando se mostra muito amoroso/ quando aparece não atrasado (…)/ Ele acredita que me engano/ pensa que sabe mentir o homem que eu amo”. Os versos, por contraste, lembram o sucesso Solteiro é Melhor, que animou o Carnaval de 1940 na voz de Francisco Alves. Na letra de Rubens Soares e Felisberto Silva, o marido cabotino fazia pouco da ingenuidade da mulher: “Eu consigo ludibriar toda a gente/ Eu afirmo e até garanto/ Nesse assunto sou primeiro/ Sou casado e no entanto/ Oi!Levo a vida de solteiro”.
Nos sambas de Adriana, é o homem quem suplica. “Por você largava tudo/ Arranjava o que fazer/ Até voltaria cedo/ Eu deixava de beber”, declara, em Vem Ver, o rapaz apaixonado. Que ainda se compromete, numa frase que assinala a profunda mudança comportamental, a “cuidar do bebê”. A imagem da esposa que zela pelo lar e pela família, em oposição à mulher da orgia, também é desconstruída por Adriana. ”Eu não sou mais/ quem você deixou/ amor/ Vou à Lapa/ decotada/ Bebo todas/ beijo bem”, canta a artista em Beijo Sem – música que, antes do lançamento do CD, já era sucesso em gravação de Marisa Monte e Teresa Cristina. A curtição da “lira da madrugada” e a liberdade de não ser de ninguém na manhã seguinte se expressam em versos: “Noite alta/ é meu dia/ E a orgia/ é meu bem”.
Essa mulher que, cheia de autonomia, desenha seus próprios caminhos ontem poderia ser chamada de “leviana”, como a protagonista da célebre composição de Zé Kétti. Pois o olhar machista que vigorou por tantas décadas no samba e que é objeto de inversão no disco de Adriana forja uma dicotomia de contornos bem definidos entre as mulheres da “casa” e da “rua”. A da casa “não deixa o lar à toa” e , “se o homem errar, perdoa”, advertia a música de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, curiosamente gravada por uma mulher: Dircinha Batista. Essa oposição foi bem resumida por José Baptista na canção que ganhou o timbre de Blecaute: “Uma é pra dentro de casa/ Outra é pro meio da rua/ Uma é pra dia de sol/ Outra é pra noite de lua”.
Em muitos casos, a fala vertical do homem chegou ao paroxismo, justificando até mesmo a violência. No samba O que É que Eu Dou, lançado em 1947 em gravação de Jorge Veiga, os compositores Dorival Caymmi e Antonio Almeida comentavam que “ela só vive cansada/ sempre de cara amarrada”, para em seguida questionar: “Será que ela quer pancada?” Bordoadas é o que prometem também Haroldo Torres e Geraldo Gomes na musica gravada pelos Namorados da Lua um ano depois: “Se essa mulher fosse minha eu tirava do samba já, já/ Dava uma surra nela, que ela gritava:chega!” Já Valfrido Silva e Pedro Caetano inspiraram-se na conhecida cantiga de roda para, entre a languidez romântica e a veemência, avisar: “Na mulher sei que não se bate/ Oh rosa do meu grande amor/ Mas se um dia eu for traído/ Bato em você, minha flor”.
Essa abordagem cheia de testosterona se estendeu às escolas de samba. Em seu primeiro desfile oficial, em 1932, a Portela desceu à Praça Onze com um samba de Alvarenga cujos versos diziam: “Lá vem ela chorando/ O que é que ela quer?/ Pancada não é, já dei/ Mulher da orgia quando começa a chorar/ Quer dinheiro…/ Dinheiro não há”. Cinquenta e quatro anos depois, quando já parecia aposentada a lente machista, a Unidos da Tijuca levou à Marques de Sapucaí uma incisiva defesa da poligamia masculina: “A hora é essa/ E vamos admitir/ Uma só mulher é pouco/ Deixa o homem no sufoco/ Com tantas que andam por aí” (Cama, Mesa e Banho de Gato, de Carlinhos Anchieta, Vicente das Neves, Manoelzinho Poeta e Azeitona).
Mais rara é a conversa entre marido e mulher, que Wilson Batista e Ataulfo Alves reproduziram em dois sambas com visões distintas sobre um mesmo episódio. Em Oh! Seu Oscar, de 1939, a dupla narra o infortúnio do protagonista ao chegar em casa e encontrar o bilhete da esposa, que se foi: “Não posso mais/ Eu quero é viver na orgia”. Enquanto isso, o marido abandonado desabafa: “Fiz tudo para ter seu bem-estar/ Até no cais do porto eu fui parar/ Martirizando o meu corpo noite e dia”. Apos o sucesso da canção com Ciro Monteiro, os compositores voltaram à carga com o ponto de vista da ex-cara-metade, cantado por Odete Lara: “Com que cara eu vou voltar pro seu Oscar!/ Eu sei que a vizinhança vai me reprovar”.
A preocupação da esposa do seu Oscar nem sequer arranharia a convicção da mulher concebida por Adriana na faixa que fecha O Micróbio do Samba. A voz feminina anuncia ao parceiro: “Da sua onipotência tratei com jeitinho/ E das chegadas de madrugada no sapatinho/ Agora tá na minha hora/ Eu vou passar uns tempos em Mangueira”. Sem prometer que ao fim do Carnaval retornará, ela deixa a geladeira cheia, pede com afeto que ele não chore, mas repete, como se proclamasse a nova estação: “Tá na minha hora, tá na minha hora”.
* Texto publicado na revista “Bravo!”
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