Emblema da ruptura com o academicismo e da afirmação de uma identidade brasileira, a Semana de 22 transformou-se em paradigma canônico e acabou por solapar outras expressões que, fora do âmbito de São Paulo, também exibiam cores modernas. Alguns pesquisadores têm colocado em perspectiva a posição central que o evento conquistou, lembrando diferentes facetas (e locações) do fluxo modernista.
— Uma coisa é o modernismo, outra é ser moderno. O sufixo “ismo” entra em cena para legislar as manifestações modernas, ou seja, um grupo formaliza um tipo de manifestação transformando-o num movimento e, a partir daí, passa a dizer quem pode ou não fazer parte dele — argumenta a fotógrafa e designer gráfica Julieta Sobral.
Professora da PUC-Rio e autora do livro “O desenhista invisível” (Editora Folha Seca, 2008), sobre J. Carlos, Julieta afirma que essas manifestações foram “varridas para debaixo do tapete” e só agora começam a ser devidamente resgatadas. Ela se refere, sobretudo, ao trabalho desenvolvido por cartunistas, diagramadores e escritores em revistas semanais como “Para Todos…”, “Fon Fon”, “Careta” e “D. Quixote”, que circularam no Rio de Janeiro no começo do século passado.
— Essas publicações desempenharam papel-chave na constituição do modernismo — concorda a historiadora Monica Pimenta Velloso. — Tanto no discurso verbal como no pictórico eram extremamente modernas, inaugurando uma nova estética da visualidade que aglutinava elementos da cultura art nouveau com influências do futurismo e do surrealismo, mas também dialogando com as tradições do romantismo e do simbolismo.
No livro “Modernismo no Rio de Janeiro” (Editora FGV, 1996), Monica estudou especialmente a “D. Quixote” (1917-1927), que reunia nomes como Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Raul Pederneiras e J. Carlos. A revista apresentava uma diagramação de vanguarda para a época, com recortes e colagens. Trazia, também, charges e escritos satíricos, dicas do jogo do bicho e receitas amorosas. A chave, como em quase todos esses periódicos, era o humor.
— Ao contrário dos livros, que perduram, eram publicações feitas para durar uma semana. Daí seu frescor e a capacidade de trazer à tona o espírito de um tempo — pondera Julieta, citando a “Para Todos…” (1919-1932), que tratava a mancha gráfica de modo original, valendo-se do branco como configurador de ritmo.
Segundo ela, o design ficou de fora do cânone porque os modernistas estavam preocupados com formas mais “duradouras” da arte, como a arquitetura, a pintura, a literatura e a música:
— Os modernistas se queriam eternos, e o design não oferecia, aos olhos deles, nenhuma garantia de eternidade.
A ensaísta e professora da UFRJ Beatriz Resende chama atenção para outra expressão moderna que frutificou no Rio: o art déco. Presente principalmente na arquitetura, o estilo influenciou também a escrita de autores como Théo Filho e Benjamin Costallat.
— Eles eram popularíssimos, mas terminaram ficando sem espaço em nosso cânone literário, dominado por um espírito excludente, herdado do futurismo, que marcou o modernismo como princípio — observa ela.
Beatriz lembra que a Semana de 22 foi, por muito tempo, uma referência distante para os cariocas. Só mais tarde o evento se tornaria uma espécie de “marco zero” do modernismo:
— Como Mário de Andrade bem diz, na capital não cabia um acontecimento com a visibilidade do que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo. A Semana seria mais um evento dentre outros.
Houve, porém, intercâmbio entre os artistas paulistas e cariocas. Em 1921, uma “bandeira futurista” composta por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Armando Pamplona viajou de São Paulo para o Rio, onde encontrou Villa-Lobos, Ronald de Carvalho e Sérgio Buarque de Holanda, além de Manuel Bandeira e Ribeiro Couto. Foi na casa de Ronald de Carvalho que Mário leu os versos de “Pauliceia desvairada”. E o próprio Ronald esteve na Semana de 22, na qual declamou “Os sapos”, de Bandeira. Assim como Villa-Lobos, que regeu duas composições.
No ensaio “As distintas retóricas do moderno”, Monica mostra a importante função que Sérgio Buarque e Prudente de Moraes Neto, jovens amigos de Mário, tiveram na direção da revista “Estética”, no Rio:
— Eles não foram meros representantes da extinta “Klaxon”, conforme se declarava. Produziram uma reflexão original, apontando as especificidades da cidade e da cultura, e destacando a complexidade da herança africana, o que constituía um tabu para as elites.
O Rio, observa Monica, foi palco de encontro entre intelectuais de classe média, como Bandeira, Villa-Lobos, Prudente de Moraes, Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, e artistas ligados à chamada cultura popular, caso dos músicos Donga e Pixinguinha.
— A condição de capital estabelece diferencial importante. Aqui, o oficialismo foi levado a conviver com uma gama rica de tradições populares — diz ela. — Regionalismos de distintas origens, traços arcaicos das culturas africanas e indígenas misturavam-se às tradições portuguesa, francesa e inglesa, que, por sua vez, mesclaram-se ao cosmopolitismo das vanguardas europeias. Essa mistura conformou um repertório particularmente rico. São Paulo também dispunha de uma rede complexa de influências, mas a forma de lidar com a diversidade foi outra.
A tese do modernismo no Rio de Janeiro, apressa-se em alertar Monica, não é uma contra-argumentação à hegemonia paulista. O que ela e outros pesquisadores propõem é repensar a arquitetura complexa de configurações que se formaram naquele momento decisivo da cultura brasileira. Aproveitar a efeméride dos 90 anos para lançar luz, por reflexo, numa produção igualmente moderna e que ficou soterrada sob os códigos firmados na Semana de 22.
*Texto publicado no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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