Dona Ivone Lara, a baluarte do samba


A sambista entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de sua época

MARCELO MOUTINHO

Tão característica do universo das escolas de samba, a palavra baluarte continua a ser classificada como substantivo masculino nos dicionários da Língua Portuguesa. Mas Dona Ivone Lara viveu para desdizer os manuais. Impossível pensarmos nos sentidos do termo — seja quando denota fortaleza, seja na conotação de referência ancestral — sem que venha imediatamente à lembrança o nome da cantora e compositora. Sim, a baluarte. Do Império Serrano, do samba, da música de forma irrestrita.

Em 96 anos de vida, Dona Ivone construiu um enredo improvável. Vinda de uma infância pobre e de uma família em que a perspectiva de chegar à universidade não passava de sonho distante, formou-se assistente social e enfermeira. Trabalhou com a médica Nise da Silveira na aplicação das terapias que revolucionaram, na década 1970, o tratamento psiquiátrico. Como artista, experimentou de forma radicalmente íntima o encontro entre popular e erudito que daria contornos singulares à música brasileira.

Dentro de casa, aliás, a música sempre esteve presente. O pai tocava violão de sete cordas, a mãe era pastora de ranchos como o célebre Ameno Resedá. Ainda menina, Ivone estudou canto orfeônico, disciplina que fazia parte do programa da rede municipal. Na Escola Orsina da Fonseca, foi aluna da pianista Lucília Guimarães, esposa do maestro Heitor Villa-Lobos, e da soprano Zaíra de Oliveira, mulher do sambista Donga. “Ia pro colégio interno, via um mundo diferente. Voltava pra casa, via outra coisa. Saía de novo, e mais uma coisa”, contou ela à biógrafa Mila Burns, quando indagada sobre o contraste entre o cotidiano familiar e o dia a dia na escola.

A estreia como compositora aconteceria aos 12 anos, com “Tiê”. A canção teve inspiração no passarinho que os primos mais velhos, Hélio e Fuleiro, lhe deram de presente. Seria mantida no repertório da cantora até os últimos shows. Fuleiro, que mais tarde se notabilizou como mestre de harmonia do Império Serrano, acabaria se transformando num dos principais responsáveis pela trajetória artística de Dona Ivone. Foi ele quem começou a cantar as músicas da prima nas rodas de samba do subúrbio.

Ivone gostava de frequentar essas rodas, ainda que de forma discreta. Uma delas acontecia na casa de seu Alfredo Costa, o comandante da Prazer da Serrinha. Quando um grupo dissidente deixou a agremiação e fundou o Império, em 1947, ela foi junto. Algumas décadas depois, passaria a integrar oficialmente a ala dos compositores da nova escola.

A primeira gravação, contudo, só veio em 1970. A coletânea “Sambão 70” apresentava também Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro. Naquele mesmo ano, por sugestão dos produtores Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves, a Yvonne Lara da certidão de nascimento se tornou Dona Ivone Lara. Não sem protesto. “Dona? Pra quê Dona? Não quero isso, não, sou nova, ainda. Não tenho nem 50 anos, imaginem!”, respondeu aos dois ao ouvir a proposta.

Inicialmente, o sucesso se deu a outras vozes. “Alvorecer” – parceria com Delcio Carvalho – estouraria nas paradas de 1974 com Clara Nunes. Quatro anos depois, Maria Bethânia e Gal Costa gravaram “Sonho meu”, outra dobradinha com Delcio. Só então Dona Ivone pôde estrear em disco solo.

“Samba, minha verdade, minha raiz”, lançado em 1978, trazia sambas de terreiro do Império e da Portela, além de oito composições próprias. Seis delas tinham a assinatura Ivone Lara/Delcio Carvalho, que ficaria consagrada como sinônimo de qualidade.

O encontro com Delcio data de 1972, temporada em que Ivone andava abatida com a morte do amigo Silas de Oliveira. Angustiado pela tristeza da companheira, o marido, Oscar, pediu ao jovem letrista que escrevesse alguns versos para ela. Três anos depois, era Oscar quem partia. O abismo parecia se ampliar, poço sem fundo. E o recém instituído parceiro conseguiu, com seu talento, transformar aquela dor funda em poesia. “O Delcio fazia letras tristes porque olhava para mim e sabia o que eu estava querendo dizer com as minhas melodias”, comentou certa vez a compositora.

Nos 12 álbuns da carreira, Dona Ivone criou uma impressionante sequência de pérolas em forma de canção. “Acreditar”, “Minha verdade”, “Doces recordações (com Delcio), “Mas quem disse que eu te esqueço” (com Hermínio Bello de Carvalho), “Enredo do meu samba”, ‘Tendência” (com Jorge Aragão), “Alguém me avisou”. Como se não bastasse, foi a primeira mulher a vencer o concurso de samba-enredo numa grande escola. E não se trata de um samba qualquer, mas de “Os cinco bailes da História do Rio”, o extraordinário hino feito em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau que o Império Serrano levou à Avenida em 1965 e integra sem favor o rol dos maiores de todos os tempos. Em 2012, ela própria viraria enredo do Império. As tais flores em vida.

Sem se encaixar em nenhum dos tipos que o mundo do samba ainda hoje costuma reservar ao gênero feminino — não era ‘tia’, nem passista, nem musa —, Dona Ivone entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de sua época. Foi esposa, mãe, enfermeira, assistente social, artista na mais plena acepção do vocábulo. A ponto de nome e ofício se amalgamarem, tornarem-se uma coisa só, como sugere o verso de Nei Lopes e Claudio Jorge. “Ivone Larararaia Lararaia”, nossa baluarte. Os dicionários que se virem.

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Artigo publicado no Segundo Caderno (O Globo)


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