A cada novo disco, um espelho se ergue diante de Chico Buarque. Porém, como um Dorian Gray às avessas, é a imagem do artista jovial e engajado da década de 1970 que se reflete no aço. Nesse confronto consigo mesmo – promovido não pelo cantor, mas por parte do público e da crítica –, o gongo costuma soar rápido: vitória por nocaute do Chico de outrora.
Cinco anos depois de Carioca e dois após publicar o quinto romance (Leite Derramado), o músico reaparece com o disco Chico (Biscoito Fino). O trabalho segue a linha inaugurada em 1998, com As Cidades, que marcou a virada ensaiada desde o início da década, quando começou a ser taxado de decadente, apesar de ter composto, no período, uma pérola como Futuros Amantes. O artista-símbolo da resistência à ditadura mudava era de assunto. Paralelamente, buscava outros caminhos melódicos e harmônicos, evocando de forma mais cristalina a influência de Tom Jobim, o Antônio Brasileiro que lhe sopra toadas, como salientou em Paratodos.
No caso de Chico, as comparações começaram antes mesmo de o álbum chegar às lojas. Assim que a primeira música vazou na internet, o compositor virou alvo de críticas pesadas. Querido Diário traria, segundo alguns sites, “o pior verso da MPB”: “Amar uma mulher sem orifício”. A expressão, que não destoa quando compreendida no corpo da canção, acabou descontextualizada e serviu de munição inclusive para piadas sobre a sexualidade do compositor.
Outros ataques vieram, confirmando o que Chico comentara em vídeo anterior ao episódio: “O artista geralmente acha que é muito amado. Faz o show, é aplaudido e tal, mas olha na internet e vê que é odiado”. Se os excessos, como a acusação de ser “um bêbado”, configuram apenas o núcleo mais radical desse território livre para maledicências que é a grande rede, os apontamentos sobre a decadência criativa do compositor irrompem como sintoma de outra ordem.
Trata-se, mais uma vez, do espelho. Quando se procuram, no Chico de hoje, as canções de ontem, impõe-se uma frustração de contornos nostálgicos. A saudade de uma época na qual o tipo de música feita por ele e seus colegas de geração, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, ocupavam um posto privilegiado na cultura brasileira, funcionando como ponto de interseção de utopias e terreno para a purgação dos malogros da classe média urbana.
“Ao longo dos anos 80, a MPB perdeu sua centralidade”, resume Fernando de Barros e Silva, autor do livro Chico Buarque (Publifolha). O próprio compositor já afirmou que “a canção, como a conhecemos, é fenômeno próprio do século passado”. Na esteira da sedimentação da indústria cultural e da crescente democratização do consumo, o modelo formatado por Noel Rosa nos anos 30, e depois redesenhado pela bossa nova, tornou-se apenas mais um entre tantos.
No novo CD, prevalecem canções de amor, como Rubato, parceria de Chico com Jorge Helder, e Se Eu Soubesse – essa já gravada por Thais Gulin, com quem o cantor volta a duetar. O lirismo contido das letras é valorizado pelos arranjos de Luiz Cláudio Ramos, mais sutis que em discos anteriores. Os ritmos variam: samba, valsa, marcha, blues, baião.
Com o apuro habitual, o compositor dialoga com a própria obra em músicas como Essa Pequena, na qual aborda a diferença etária de um casal, renovando o contraste que, em Ela É Dançarina, dava-se no âmbito da profissão. Ergue pontes, igualmente, com o legado de seus mestres, como em Sou Eu. No samba com levada de gafieira que fez sucesso na voz de Diogo Nogueira e que, no novo disco, ganha o auxílio luxuoso de Wilson das Neves, a mulher que “espalha/ Seu fogo de palha/ No salão” lembra o clássico Sem Compromisso, de Geraldo Pereira, já gravado por Chico. Só que, em vez de reclamar da companheira que dança com os outros, o homem agora transborda autoconfiança: “Quem brinca na área sou eu”.
Sem Você 2 ecoa a Sem Você de Tom e Vinicius de Moraes. Mas o lamento original dá lugar à resignação (“Pois sem você/ O tempo é todo meu/ Posso até ver o futebol”). Chico também atualiza temas, identificando, por exemplo, o filtro do computador nas relações amorosas. Na divertida Barafunda, com os versos “Gravei na memória/ Mas perdi a senha”. Em Nina, com a paixão a distância mediada pelo Google Maps.
A consciência sobre a mudança dos ventos é nítida. Seu último álbum com essência marcadamente política é Chico Buarque, que trazia Pelas Tabelas e Vai Passar. Sintomático que tenha saído em 1984, ano-chave no processo de abertura democrática, graças ao movimento pelas Diretas Já. Em Chico, mesmo quando o viés é de crítica social – caso de Sinhá, parceria com João Bosco –, não há a aspereza de Pedro Pedreiro e Cálice. Os tempos são outros, os registros também.
Sinhá descreve o episódio em que um negro é açoitado por supostamente ter visto a mulher de seu “dono” tomando banho, nua, no açude. “Eu choro em iorubá/ Mas oro por Jesus/ Para que que vassuncê/ Me tira a luz”, lamenta o personagem antes de dar voz a seu autor, que se confessa “herdeiro sarará/ Do nome e do renome/ De um feroz senhor de engenho/ E das mandingas de um escravo/ Que no engenho enfeitiçou Sinhá”. Em poucos versos, uma síntese poética e dorida da escravidão, seus recalques e suas heranças, e da gênese de nosso sincretismo – questão, aliás, referida no livro Leite Derramado.
Em Tipo um Baião, Chico brinca com a expressão recorrente entre os mais jovens, repetindo-a (“tipo para a vida inteira”, “tipo me adora”) nas estrofes. A canção suscita belas imagens, como a do vestido que tremeluz através da fogueira de são João, e, citando Luiz Gonzaga, traz uma poderosa metáfora: o coração como fole de acordeão, que a moça infla ou esmaga. Na reverência ao passado, o compositor não tira o olho do futuro, em uma peleja sem derrotados. Como disse Caetano certa vez, Chico arrasta a tradição, mas anda para a frente.
* Texto publicado na revista Bravo!
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