Machado de Assis desconfiava que a crônica nasceu de um papo trivial entre duas vizinhas. “Entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia”, relata. Reclamavam do calor que castigava a cidade. Do sol passaram à ceia de ontem, e da ceia às ervas, às plantações, aos moradores do bairro. Conversa fiada, que o próprio Machado ajudou a transformar em gênero literário.
Um gênero urbano. A crônica está umbilicalmente ligada à cidade. E, mais do que qualquer outra, ao Rio de Janeiro. Foi no Rio que José de Alencar, João do Rio, Coelho Neto e Rachel de Queiroz, entre outros, garimparam entre a crítica, a reportagem e o ensaio essa forma tão singular de registro. Leve, subjetivo. Carioca.
Dos 450 anos que a cidade completa, ao menos 150 foram relatados por seus cronistas. À margem das grandes narrativas, a crônica escreve a história do Rio em pedrinhas miúdas. A vida ao rés-do-chão, como bem definiu Antonio Candido.
A abolição da escravatura, a mudança do regime, a reforma de Pereira Passos, jogos de futebol, passeatas, nada passou imune ao olhar dos escritores. Com graça e sem solenidade, eles iluminaram personagens, valores, comportamentos.
Em 1907, João do Rio espantava-se ante as moças que, sentadas à mesa da confeitaria, pedem chope e uísque ao garçom. “Há dez anos tomariam sorvete, de olhos baixos e acanhados”, observa. Eram as “modern girls”.
Oitenta anos depois, João Antônio saudaria o Valete de Copos. Apelidado de Paçoca, ele vivia entre a Lapa e o Beco da Fome, “gostava de tango, era amigo de Nelson Cavaquinho, tratava marafona como princesa e havia consumido quase tudo de F. Scott Fizgerald”. “Matou-se de viver e beber”, resumiu o cronista.
Uma cidade é também a síntese de seus habitantes. E de suas cisões. No caso do Rio, fundadas sobretudo na tensão — recorrente — entre “memória” e “progresso”. Como mostra Benjamin Costalatt em 1923, ao reclamar da abertura da Avenida Central. “Uma calamidade! Os hábitos, os costumes, a moralidade, tudo sem exceção teve o mesmo destino das casas velhas derrubadas impiedosamente, sacrificadas pela picareta, para abrir alas à grande artéria da cidade”, bradou. Manuel Bandeira, por sua vez, saudava a “linda e brasileira” Avenida, que para João do Rio era “o poema das aspirações do Brasil moderno”.
O embate entre o Rio “bárbaro” e o Rio “civilizado”, aliás, teve na crônica seu palco principal. Em texto de 1922, Coelho Neto classificou o Morro do Castelo, que acabaria derrubado, como “um quisto no rosto da cidade, uma verruga monstro que está, há muito, pedindo exérese”. Dezesseis anos antes, Bilac horrorizara-se ante os romeiros da Penha que irrompiam nos bulevares do Centro: “Era a ressurreição da barbaria — era a idade selvagem que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da cidade civilizada”.
Do outro lado do ringue, Lima Barreto defendia o Rio agonizante. Em crônica de 1915, ele bateu forte na suntuosidade do prédio da Biblioteca Nacional, inaugurado à Av. Rio Branco: “O Estado tem curiosas concepções, e este, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é uma delas”.
Quando a barra pesa, na década de 1960, muitos cronistas valem-se do filtro do cotidiano para falar da repressão política. Entre eles, Carlinhos de Oliveira. Ao reportar o clássico no Maracanã, o escritor lamenta a tentativa de agressão a um vascaíno pela torcida alvinegra. “Por pouco não foi massacrado. Arrancaram-lhe a bandeira, vaiaram-no, jogaram em cima dele uma porção de bolotas de papel. Enquanto isso, o PARA-SAR poderia estar lançando um psicanalista no meio do Oceano Atlântico: ninguém notaria”, comenta. Na cena recortada do dia a dia, a analogia com a situação da cidade e do país.
“Gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”, anotou Machado em 1897. O pé na rua, sempre. Seja para colher ainda no nascedouro gírias como “bonde” e “otário”, à maneira de Orestes Barbosa. Ou, na esteira de Fernando Sabino, tentar definir o carioca, “para quem ‘pois não’ quer dizer ‘sim’, ‘pois sim’ quer dizer ‘não’; ‘com certeza’, ‘certamente’, ‘sem dúvida’ são afirmações categóricas que em geral significam apenas uma possibilidade”.
O crítico Eduardo Portella diz que o cronista tem um apego provinciano à metrópole. Vou além. Ele se confunde com a cidade, sente-se parte de seu calçamento, da argamassa dos muros, do burburinho da multidão. “Demoli-me com a Praça 11, fui incendiado com o Parc Royal”, afirmou Drummond, levando ao paroxismo essa relação já tão íntima.
Otto Lara Resende, ao lembrar de Rubem Braga, conta que em tempos difíceis o amigo “se punha a par das nuvens negras, mas não mantinha o olhar fixo no pé-direito alto da crise”. Foi assim no dia em que, ante a greve geral, Rubem telefonou para Otto e convidou-o a ir ao Bar Luiz: “Vamos ver a crise de perto”.
A rua, mais uma vez. Onde os brotinhos de Paulo Mendes Campos usam óculos como se fossem enfeite e Clarice Lispector sente uma folha seca tocar os cílios, em delicada epifania. Embora os jornais hoje prefiram artigos cheios de opinião e certezas, a crônica insiste em vagabundear pelo Rio. Praticamente expulsa dos impressos, encontrou refúgio na internet, de onde descreve a cidade nos mínimos movimentos. O homem que dá braçadas, solitário, no mar de Ipanema, os bares que morrem, o voo de uma borboleta amarela.
* Artigo publicado no suplemento Prosa (O Globo)
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